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João Maria Gusmão: Lusque-Fusque Arrebol

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José Marmeleira

 

 

Na obra de João Maria Gusmão e Pedro Paiva persistiu sempre uma tensão entre o pensamento dos artistas, que estava na origem das imagens, e a experiência livre dessas imagens pelo espectador. Afinal, este cedia ao espanto que as projeções e os filmes da dupla provocavam, esquecendo, pelo caminho, as questões que as determinavam. Elenquem-se algumas: a experiência do tempo, da ilusão e dos sentidos das imagens, a relação das imagens com a ideia de espectro ou fantasma. Sobretudo, a sua componente reflexiva e discursiva.

Ora, essa tensão (que também pode ser entendida enquanto dialética) regressa em Lusque-Fusque Arrebol, a primeira exposição individual de João Maria Gusmão, na Galeria Cristina Guerra. Composta por desenhos que são fotografias, por esculturas que se tornam imagens e projeções de lanterna mágica que são cinema, não abole a relação entre os dois domínios. Com efeito, a experiência não guiada e misteriosa — das peças — permite que o visitante não apenas olhe, mas também veja e observe aquilo que produz a imaterialidade, a espectralidade e a aparição da própria imagem: máquinas, objetos técnicos, a atividade de uma engenharia minuciosa e racionalmente concebida.

Em Lusque-Fusque Arrebol coexistem o prazer ótico que as ilusões despertam e os projetores, com o seu ruído mecânico e repetitivo. Estes continuam ali, a impedirem a sedução completa, o isolamento do espectador no reino dos fenómenos e das sensações. Mas a exposição não começa com as imagens em movimento. No primeiro piso da galeria, estão desenhos e esculturas que se transfiguram no espaço. Os primeiros vemo-los enquadrados em paredes/painéis que criam planos e zonas. As segundas surgem em discretos plintos, a uma escala quase miniatural. Uma cor, um alaranjado intenso e seco que replica a aparição do crepúsculo, envolve as peças, criando a ilusão de um cenário ou mesmo de uma cena. Afinal arrebol significa a cor avermelhada do crepúsculo. Um olhar mais demorado sobre os desenhos — que à primeira vista parecem formar uma caligrafia particular — revela um facto: são fotografias, ou melhor, são imagens fotográficas, reproduções ampliadas de desenhos a tinta da china. Ora, estes desenhos, por sua vez, sugerem um parentesco com a escrita caligráfica, pois têm um carácter ideogramático ou logogramático.

Na verdade, foram realizados por João Maria Gusmão enquanto esquemas para ideias cinematográficas. Não são pictogramas autónomos, mas desenhos-ideias: representam ideias e símbolos para o artista. Poder-se-ia acrescentar que fazem parte de uma linguagem particular, pessoal, que o artista sabe interpretar e usar. Todos, curiosamente, têm títulos que se referem a elementos, objetos ou situações que assomarão ao longo da exposição e no texto poético e paraliterário assinado pelo próprio artista. Com efeito, João Maria Gusmão volta a utilizar a escrita enquanto recurso paralelo ao da produção de imagens mentais, sendo que entre a primeira e as imagens se estabelece um nexo que cabe ao visitante construir e desconstruir. Parodiando e homenageando a literatura de As Mil e Uma Noites e de Fausto, o artista baralha as categorias artísticas, os significados e os significantes, as formas e as ideias, a literalidade e o simbólico.

De volta aos desenhos: são fotografias de ideias, mas também poderiam ser evocações de coisas, aparições que espoletarão coisas, obras a vir. De um ponto de vista próximo do domínio cinematográfico, poder-se-ia acrescentar que se assemelham a fotogramas de um filme animado. Adquirem um carácter abstratizante, mas não são abstratos, pois descrevem coisas, objetos, situações, sendo que tal elemento descritivo ou representativo pode ser encontrado na relação que se joga entre os seus títulos e o texto que acompanha a exposição.

 

 

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Inspiradas no método do arqueólogo italiano Giuseppe Fiorelli (1823-1896), célebre pelo seu trabalho nas escavações de Pompeia e pelos gessos das vítimas do Vesúvio, as esculturas têm algo de mimético, como aliás os títulos deixam adivinhar. Isto é, parecem poder representar qualquer coisa. Contudo, o que deixam ver são proto-imagens que revelam o processo escultórico e a condição do aparecimento dessas formas. À semelhança do que acontece nos gessos de Pompeia, as esculturas de João Maria Gusmão são vazadas sobre um negativo escavado, neste caso, escavadas em barro e preenchidas com cera líquida que é depois passada a bronze. Os seus contornos são indistintos, os volumes sobressaem, mas também desaparecem no bronze. São imagens em decomposição, reveladas num estado limiar como o do crepúsculo. Por outro lado, não será despropositado interpretá-las enquanto dioramas improváveis ou imagens captadas ou imobilizadas nos seus movimentos fantasmáticos.

Os títulos, mais uma vez, assinalam o seu carácter representativo, mimético, a sua referencialidade: Entrada de túnel, Relógio de Sol, Farol Projetor, Bloco de Luz ou Moinho de Água. Aliás, este último título tem um significado metafórico e estrutural na exposição, dada a sua presença no desenho e na escultura. Tal como no cinema, ela sugere uma experiência estática do movimento. As águas, como as imagens, passam, avançam, mas o moinho, como o espectador não se desloca. O espectador é transportado, mas não participa do movimento. As imagens passam por ele e nele, mas ele não as acompanha.

É, em certo sentido, esta experiência que as instalações de lanterna mágica, iluminando o escurecido segundo piso, proporcionam. Candeeiro, Sombra de pera, Filme sobre um barco e Lusque-Fusque Arrebol sublinham a tensão acima descrita. Os espectadores contemplam as imagens em movimento, por instantes distraindo-se da manipulação técnica presente. Nas paredes, imagens aparecem e desaparecem, formas dão lugar a outras imagens. Um “desenho” delicado produz cenas prosaicas que evocam a história da arte e da pintura, mas há nelas movimento, um movimento que é real e não ilusório.

É tão real que pode ser observado sobretudo pelo efeito das lanternas mágicas. As imagens não se movem numa ilusão do movimento — como acontece no cinema — mas por meio da luz e de máscaras que, alternada e lentamente, apagam e revelam formas de fundo, de interior, de contornos.

Classifiquemo-las, provisoriamente, de cinema ou desenho animado em tempo real, as projeções são criadas pela presença de luz contínua, num exercício que espoleta prazer ótico e uma contínua interrogação sobre a ilusão e a condição cinematográfica. Filme sobre um barco é talvez o trabalho mais eloquente. Vemos duas pessoas paradas que, sem se mexerem, observam um barco que se movimenta pelos efeitos da luz (que faz imagens). Na verdade, todos se movimentam com exceção do verdadeiro espectador: aquele que está do lado de cá das imagens. É essa distância que João Maria Gusmão não abdica, mesmo quando as lanternas mágicas não cessam de produzir cores, formas, figuras, paisagens. Que se movem.

 

João Maria Gusmão

Cristina Guerra Contemporary Art

 

 

 

José Marmeleira é Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação (ISCTE), é bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) e doutorando no Programa Doutoral em Filosofia da Ciência, Tecnologia, Arte e Sociedade da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, no âmbito do qual prepara uma dissertação em torno do pensar que Hannah Arendt consagrou à arte e à cultura. Desenvolve, também, a actividade de jornalista e crítico cultural independente em várias publicações (Ípsilon, suplemento do jornal PúblicoContemporânea Ler).

 

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Outros artigos sobre o artista:

Terçolho por Susana Ventura

entrevista a João Maria Gusmão por José Marmeleira

— AnozeroBienal de Arte Contemporânea de Coimbra por Raquel Henriques da Silva

Um cão com uma cauda notável por Isabella Lenzi

— Haus Wittgenstein por Susana Ventura

— Estudos do Labirinto por João Seguro

Lua Cão por Isabel Nogueira

— Os animais que ao longe parecem moscas por Sara Castelo Branco

 


 

Imagens: João Maria Gusmão: Lusque-Fusque Arrebol. Vistas gerais da exposição na Cristina Guerra Contemporary Art, Lisboa, 2022. Fotos: Vasco Stocker Vilhena. Cortesia do artista e Cristina Guerra Contemporary.

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