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Os animais que ao longe parecem moscas 

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João Maria Gusmão e Pedro Paiva. Vistas da exposição "Os animais que ao longe parecem moscas". Oliva Creative Factory. S João da Madeira. Fotos: André Cepeda. Cortesia dos artistas e Oliva Creative Factory - Colecção Norlinda e José Lima.

Sara Castelo Branco

Cumprindo-se numa moção que vacila entre a objectificação da película e o abrimento de uma síntese psíquica, o filme é um acontecimento que se realiza intrinsecamente numa ideia de diferimento – a manifestação de um original dobrado, multiplicado e fantasmático. Desempenhando esta circunstância posposta e duplicada da coisa fílmica, a exposição Os Animais que ao Longe Parecem Moscas (2017) de João Maria Gusmão e Pedro Paiva, parece simultaneamente volver os objectos ao seu aparente estado material, a um segundo baptismo das coisas, implicando-as numa existência duas vezes diferente: a passagem pela caverna platónica fílmica motiva uma supra-objectificação heurística das coisas, que se desvia aqui porém de uma devotada forma aurática, para activá-las antes numa abertura de índole subjectiva: “se as coisas eram reais, tornam-se agora presentes”.

Esta segunda comparência dos objectos parece vir assim não apenas sublinhar a têmpera fantasmagórica da exposição – assomada já no carácter assombrado das moções e motivos dos filmes –, como referendar essa diferença entre o ser e o não-ser dos seus artefactos. Detendo a sua génese numa experiência expositiva realizada nas minas de sal-gema, em Loulé, em 2008, Os Animais que ao Longe Parecem Moscas, exposição presente no Núcleo de Arte da Oliva (São João da Madeira), forma-se a partir da apresentação de uma série de objectos que haviam figurado como personagens principais ou adereços nos filmes criados por Gusmão e Paiva desde 2001 e que são aqui dispostos juntamente com projecções em 16mm, uma câmara obscura e um conjunto de esculturas cinéticas. Neste sentido, os objectos que formam o núcleo medial da exposição convocam não apenas os filmes que também a compõe, mas sobretudo a memória mais diferida de outros que, não estando presentes, realizam um retorno a si, um desejo de advento que se revê identicamente no facto de muitos deles se moverem magicamente como faziam no ecrã. Tratam-se, portanto, de presenças efectivas todavia intangíveis, simultaneamente reais e virtuais, que coexistem com o presente que foram (virtual) e com o presente que agora são (actual). A condição de possível fantasmagoria parece dar-se, portanto, neste diferendo temporal que se instala entre o ver e o visto, e que não se concebe apenas pela técnica, mas sobretudo na possibilidade diáfana da técnica fazer aparecer.

A partir de um enunciado indiscernível, formado além do que é falso ou verdadeiro, que se pronuncia de forma insólita, inquieta e enigmática, a obra de João Maria Gusmão e Pedro Paiva gravita em torno de uma realidade que existe contida na irrealidade – ou, melhor, na possibilidade da realidade mesma não desertar da sua ambivalência e mistério intrínsecos, algo que se reflecte intimamente numa acepção de Alberto Caeiro versada pela dupla de artistas: “As coisas não têm significado: elas existem e sua existência é o seu significado”. Trata-se, assim, de uma actuação sobre a consistência das existências simultâneas – uma corda pode tanto ser cobra, como simplesmente corda, ou, cobra-corda; sendo que, nesta exposição, é possível testemunhar directamente alguns destes fenómenos desconcertantes dos seus filmes, que sustêm uma tautócrona relação ontológica com as coisas do mundo.

Ao versar o carácter ambíguo e diferido da sua própria denominação, a exposição "Os Animais que ao Longe Parecem Moscas" inscreve-se portanto neste deslocamento para o simulacro; numa desconstrução e reconstrução lúdica, irónica, insondável e obscura do real, interpelando uma realidade que é cruzamento entre o que é e não é.

Deste modo, a partir desta desmontagem do real concebida na modulação entre o crer e o parecer, é possível sondar a existência de uma espécie de traição das imagens magritiana presente nos objectos desta exposição: isto é uma relativização da lógica, da verosimilhança e do hábito, a partir de sugestões inusitadas, fazendo assim visível o que no quotidiano é menos verosímil.

A força operante dos filmes e objectos de João Maria Gusmão e Pedro Paiva parece rever-se, portanto, no pressuposto de outros “abismos metafísicos” e, particularmente, no ideário da “metafísica recreativa” de Fernando Pessoa: o poeta concebeu existencialmente para cada heterónimo uma metafísica especifica, que se determina como tema particular da poesia de cada um. A heteronímia sucede assim como o processo da indefinição e do impróprio, contra a ordem das verdades estabelecidas, para dadivar a incoerência e a dispersão, pois para Pessoa: “O mistério do ser é indesvendável, por isso o homem só pode fabricar ficções, metáforas, contar contos que longinquamente captem qualquer centelha desse sol inatingível”. Da paraciência à patafísica, a obra de Gusmão e Paiva parece mover-se justamente dentro desta complexa matéria enigmática, errática e aleatória, que oscila entre o mito e a ciência, a pesquisa empírica e a especulação delirante, para se encontrar nos paradoxos e contingências insondáveis da realidade, da natureza e da percepção.

Encontrando-se disposta à fragmentação, à sucessão descontínua e ao reenvio, a forma instalativa de Os Animais que ao Longe Parecem Moscas organiza-se sobre condições oblíquas de visibilidade. O desenho espacial da exposição implica duas formas quase semi-circulares: um espaço orbicular mais interior, formado por quatro palcos-paredes, onde estão dispostos os artefactos dos filmes, que são parcialmente centrados por uma mosca de magnetismo centrípeto que sobrevoa rodando no ar. E, numa inversão entre o móvel e o imóvel, no espaço circular mais exterior, descobrem-se os filmes projectados na zona por detrás dos palcos, cujas imagens e dispositivos são também visíveis pelos interstícios destas paredes centrais, que deixam ver igualmente sombras e reflexos, bem como duas esculturas cinéticas. Apartados do seu espaço indicial e situados nestes palcos, os artefactos são assim impelidos a co-existirem entre si – e, mesmo mantendo-se autónomos, adquirem um sentido espacial em conjunto na constelação que os acolhe –, passando para o lugar mais iluminado e visível da exposição, enquanto as projecções que lhes davam antes visibilidade, reúnem-se lateralmente atrás.

A experiência dos filmes faz-se pelo desvio, passando do olhar hipnotizado do espectador de cinema para o de um visitante "sonâmbulo", na expressão de Elie During. A experiência já não se confunde com a duração das projecções, mas antes com a espacialidade da instalação das imagens que convida à mobilidade: da passagem da inércia hipnótica à deambulação onírica sonambular. Por outro lado, Os Animais que ao Longe Parecem Moscas parece realizar, igualmente, um entendimento da temporalidade a partir do som: a exposição é forjada sonoramente pelo murmúrio contínuo da constância rítmica e circular do som dos dispositivos de projecção dos filmes, bem como de um metrónomo e da mosca. Tratam-se de sonoridades que, remetendo para uma contagem de carácter díspar do tempo (que vai da temporalidade fílmica, à matemática e à orgânica), convocam uma sobreposição sonora de densidade temporal que, sendo em todos os casos mecânica, é também naturalmente anacrónica.

João Maria Gusmão e Pedro Paiva apresentam nesta exposição uma série de filmes potencialmente relacionáveis com diferentes campos como a etnologia, o primitivo, o alter-ego animal do homem, a mitologia ou uma reinvenção das convenções ligadas à História da Arte e à apresentação de objectos artísticos. Do realismo de Lumière à prestidigitação de Méliès – é a partir desta síntese de onde irrompeu o cinema que parecem também se cumprir os filmes de Gusmão e Paiva, volvendo-se numa ordem que, desempenhando-se no domínio do ilusionismo, embora num regime de verosimilhança, talvez encontre o seu maior vértice numa virtualidade do primitivismo cinematográfico, determinada pela estimulação directa da naiveté e do fascínio – não pelo real, mas pela imagem do real – do espectador: ou seja, pelo momento particular de uma imagem-movimento ainda em potência. Por outro lado, esta circunstância paralela entre ilusão e realismo parece anuir com uma ciência envolvida pelo sonho, praticada pelos inventores da fotografia e do cinema: ”Os fanáticos, os maníacos, os pioneiros desinteressados, capazes, como Bernard Palissy, de pegar fogo aos móveis em troca de alguns segundos de imagens tremidas, não são industriais nem homens da ciência, mas possessos da sua imaginação.” Envolvendo a fantasia e o devaneio num alinho de objectividade subjectiva, estes criadores de técnicas modernas – como a electricidade, a rádio, o avião ou o cinema – vieram assim reconstituir de maneira prática o “universo mágico onde reinam a acção à distância, a ubiquidade, a presença-ausência, a metamorfose”.

Numa revisitação destas experiências científicas iniciais, um dos filmes projectados na exposição, Entrar na Cama (2009), convoca os ensaios cronofotográficos praticados em Femme Nue se Couchant (1887) de Edward Muybridge. O filme parece circundar sobre o paradoxo próprio da máquina fílmica: embora se possa afirmar que as experiências de Muybridge se aproximam no plano formal dos fotogramas cinematográficos, e, neste sentido, o filme dos artistas poderia assomar como possível forma simbólica de materializar filmicamente as imagens de Muybridge, colocando-as no interior da virtualidade oculta dos fotogramas consumidos a favor da recriação do movimento; por outro lado, parecem convocar, similarmente, essa mesma função única de análise e decomposição do movimento do cronofotógrafo de Muybridge – que, aqui, em vez de reduzido a um diagrama estrutural, é implicado num outro tipo de decomposição e recomposição: através de uma moção distensível e irregular da imagem, que mesmo sendo desacelerada, ultrapassa a percepção natural sem a anular, assomando como possível refluência à origem e profundidade das coisas. Neste sentido, mesmo que dados a diferentes leituras, os filmes da dupla de artistas relevam-se porém numa improcedência do pensamento sobre o movimento, referida pela teoria do movimento da Abissologia, onde “pensar o tempo movente é insustentável, a imobilização é sempre o que resta de tal operação. De modo que, o que se afigura como possível é descrever o movimento enquanto somos transportados pela sua desaceleração, procurando a sua aproximação ao extático, revelando a intensidade dos movimentos mínimos, aqueles que sempre se afiguram como o incondicional do próprio movimento e do tempo.”

A aptidão em ser corpo simultaneamente fixo e móvel revê-se neste próprio movimento assombrado dos filmes de Gusmão e Paiva que, a partir de um mecanismo enredado em velocidades distintas, são gravados em 16 mm, posteriormente captados por câmaras de vídeo de alta velocidade, para serem depois projectados no movimento arrastado da câmara lenta, estabelecendo uma relação remanescente do olhar com o transitório e o fantasmático.

Este movimento aberrante e ultra-perceptivo dos seus filmes parece rever-se no devir háptico da visão estabelecido com o aparecimento das imagens técnicas: além da sua qualidade comprimível ou dilatável, a temporalidade fílmica torna-se sobretudo reversível, estabelecendo uma relação directa entre o movimento e a forma. A extensão do mundo pode, enfim, dobrar-se, desacelerar ou acelerar – efeitos de movimento que, exercidos por Gusmão e Paiva nos seus filmes, ainda que paradoxalmente se inscrevem também no trânsito dos fluidos – no espaço intersticial entre as coisas, as acções e os instantes –, a fim de, como afirma Epstein, obrigar o espectador a ver o que até aí nenhum olho humano jamais vira: "que nada é imóvel no universo, que tudo se move e se transforma".

A primeira imagem que vemos em Os Animais que ao Longe Parecem Moscas é uma polaroide que hesita entre assemelhar-se à imagem da lente de uma câmara ou ser a inscrição do instante fugidio de um pneu que rola na neve – momento esse que, anuindo exteriormente com o seu entorno, aparece aqui efectivamente congelado de forma imagética. Entre o congelar e o descongelar, o passivo e o activo, esta passagem de estados convocada em Pneu de Inverno (2016) parece manifestar-se de forma geral na exposição – por essa espécie de congelação fílmica dos objectos-adereços pelos filmes que se vêm agora descongelados ao saírem da tela –, mas, mais particularmente, num outro constituinte da exposição que, à semelhança da imagem iniciática da exposição, detém um carácter mais fixo: a câmara obscura. No verso e reverso de uma parede: de um lado, vemos num dos palcos um frigorifico por trás, cuja luz parece imanar do seu interior, mas que é, na verdade, projectada para ele; e, do outro, a projecção da câmara obscura que apresenta a imagem interior desse mesmo frigorifico – uma inversão que ao convocar o próprio mecanismo invertido de funcionamento da câmara obscura, alude irónica e paradoxalmente à capacidade de congelação/fixação especifica deste objecto.

Neste sentido, acolhendo os paradoxos dos absolutismos do real, Os Animais que ao Longe Parecem Moscas inscreve-se nessa mesma ciência patafísica que tem orientado a prática de João Maria Gusmão e Pedro Paiva, onde todo o fenómeno é inesgotável e capaz de tolerar uma série infinita de operações. Através de aspectos indiscerníveis de natureza móvel, fugidia e singular – revistos nas coisas mágicas, latentes, vinculadas aos ventos e fumos, e ao limite visível da sua invisibilidade –, as suas obras acolhem a dupla condição de, tal como na nossa experiência do mundo, serem integradas e estranhas ao mundo. Afinal, “para que serve o misterioso se não puder continuar a sê-lo?”

João Maria Gusmão e Pedro Paiva

Oliva Creative Factory

Sara Castelo Branco

Doutoranda em Ciências da Comunicação/Arts et Sciences de L’Art na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas - UNL e na Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne. Mestre em Estudos Artísticos – Teoria e Crítica da Arte pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (FBAUP) e licenciada em Ciências da Comunicação e da Cultura (ULP). Na área da crítica e da investigação sobre as áreas do cinema e da arte contemporânea, tem colaborado regularmente com textos para revistas, catálogos e outras publicações de âmbito académico e artístico.

a autora escreve de acordo com a antiga ortografia

 

 

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João Maria Gusmão e Pedro Paiva. Vistas da exposição "Os animais que ao longe parecem moscas". Oliva Creative Factory. S João da Madeira. Fotos: André Cepeda. Cortesia dos artistas e Oliva Creative Factory - Colecção Norlinda e José Lima.

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João Maria Gusmão e Pedro Paiva. Vistas da exposição "Os animais que ao longe parecem moscas". Oliva Creative Factory. S João da Madeira. Fotos: André Cepeda. Cortesia dos artistas e Oliva Creative Factory - Colecção Norlinda e José Lima.

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João Maria Gusmão e Pedro Paiva. Vistas da exposição "Os animais que ao longe parecem moscas". Oliva Creative Factory. S João da Madeira. Fotos: André Cepeda. Cortesia dos artistas e Oliva Creative Factory - Colecção Norlinda e José Lima.

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