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João Maria Gusmão + Pedro Paiva: Um cão com uma cauda notável

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Isabella Lenzi

Ecos de antigas palavras

Em Um cão com uma cauda notável, exposição de João Maria Gusmão + Pedro Paiva, encontramos o que permaneceu, fossilizado e decomposto, de outro tempo e de outro lugar, de um ambiente pré-histórico, lunar ou de sonho. Com humor, absurdo e algum truque de magia, a mostra inaugurada no início de agosto no galpão da galeria Fortes D’Aloia & Gabriel, em São Paulo, transporta-nos, — como disse Chico Buarque — aos “vestígios de uma estranha civilização”.

Poucas semanas depois, a dupla inaugurou também sua primeira individual em Nova Iorque, na Andrew Kreps Gallery. Fotografias e uma instalação arquitetónica com filmes, rodados recentemente em Lisboa, tratam da tensão entre imagens estáticas e em movimento e suas habilidades para, ao mesmo tempo, descrever o mundo e sugerir a magia que está para além dele.

Em São Paulo, fragmentos e camadas geram uma reflexão sobre a construção da realidade a partir de sombras, imaginação e movimento. A mostra é composta por um complexo sistema, formado por esculturas, projeções e textos (presentes nos títulos das obras e no prefácio da folha de sala), que se entrecruzam e ecoam uns nos outros. Neste projeto, repleto de enigmas e rebatimentos, a sensação de engano constante convive com momentos de descoberta e iluminação.

O espaço expositivo está dividido em duas partes, uma escura e outra clara, uma matérica e a outra só de luz e cor. A entrada do galpão industrial da galeria é transformado numa gliptoteca. Uma sucessão de paralelepípedos brancos sustentam quinze esculturas escuras em bronze patinado. Muitas delas lembram a fase surrealista de Alberto Giacometti, outras parecem tridimensionalizar as pinturas metafísicas de Giorgio De Chirico ou as futuristas de Giacomo Balla. São recortes de cenas ou congelamentos de ações, como o Beam Drop (1984) de Chris Burden, obra na qual o artista norte-americano lançou vigas metálicas num buraco no solo com cimento fresco. 

As peças da dupla parecem maquetes de filmes de ficção científica mudos e aludem à compreensão do mundo a partir de imagens e aos primórdios do cinema: a alegoria da caverna de Platão e as primeiras técnicas e aparatos de sintetização da ação dos corpos no espaço. Como numa cronofotografia, Gusmão + Paiva decompõem o movimento e solidificam o intangível: o cone de luz, a fumaça que sai do trem.

As duas primeiras esculturas da mostra são introdutórias e representam uma bifurcação, um sistema formado por mais de um elemento. Um busto que parece humano é acompanhado por “um cão com uma cauda notável”. Porém, não vemos o cão, mas uma parte dele, uma metonímia do animal, que nos permite, com muito esforço, reconhece-lo. A peça dá título à mostra e abre o prefácio da exposição:

Um cão com uma cauda notável, um truque de circo indescritível com seres microscópios do espaço, um arco-íris, um calçado muito desconfortável mas eterno, os últimos dias de uma pulga minúscula num mundo fictício, uma melancia bidimensional que se parece com a lua de lado, a fonte da juventude, um pôr-do-sol perpétuo seguido pelo cair da noite, um elefante de 20 centímetros, uma limonada que sabe a laranja, um comboio a vapor fantasma que segue para norte e para sul ao mesmo tempo (...)

Apesar de nonsense, as frases são imagéticas e despertam sensações atreladas a outros sentidos. Assim como as obras, são sugestões de situações absurdas, fictícias e imaginadas. Há um jogo de escalas, como numa projeção de cinema, que transforma o pequeno em grande, ou como acontece com os suisekis, pedras que despertam a memória de uma paisagem inteira.

O método utilizado para a construção das esculturas ressalta essa ideia de estarmos diante de um diorama, de uma parcela da realidade — noutra escala e a partir de um ponto de vista atípico — ou até, de algo que está ausente. Gusmão + Paiva moldam em barro o negativo de cenas e formas. O molde, que é o vazio do construído, é preenchido e, na sequência, fundido em bronze. O método dá às obras um aspecto geológico, rochoso, de fóssil, no qual as marcas das mãos e dos gestos desaparece.

Apesar de não parecer, esse processo de moldagem é similar ao da construção de um filme ou de uma pintura: a definição do enquadramento, dos cheios e vazios, dos movimentos que compõem as cenas e o momento do surgimento das imagens. Tintoretto construía maquetes e dioramas para estudar suas obras. Da Vinci e Vermeer utilizavam câmaras escuras. Gusmão + Paiva bebem dessas fontes e jogam com a dialética entre o efêmero e o permanente, o negativo e o positivo, o molde e o contramolde. Isso fica claro na passagem da primeira para a segunda sala da exposição. Ao entrar nela sentimos-nos dentro de uma câmera escura e vivenciamos, in loco, o aparecimento das imagens. É como voltar à invenção do cinema, a uma das primeiras sessões do cinematógrafo, que capturava e devolvia ao mundo ações no tempo. Mas, diferente do aparato dos irmãos Lumière, as projeções dos artistas surpreendem justamente pelo fato de não se tratarem de gravações. A “magia” do cinema e da formação da cena acontece diante dos nossos olhos, no presente.

A partir de uma sistema de projetores alterados, filtros e mecanismos em sincronia, vemos uma luz que desenha e materializa no espaço o significado da palavra “fotografia”. As imagens formam-se por camadas de discos perfurados e são projetadas num processo similar à lanterna mágica, aparelho inventado no século XVII. Os aparatos estão em exposição e são a chave para compreender as imagens que geram. Cenas banais, como uma torneira abrindo e fechando, a neve caindo, a silhueta de um camelo que caminha por um deserto com pirâmides, transportam-nos para um ambiente de sonho e fantasia, como num truque de ilusionismo.

O mecanismo criado pelos artistas, não apenas na sala de projeção, mas na exposição como um todo, é um exercício de decupagem, que separa fundo, figura e ação. Que desconstrói e volta a recompor o mundo com um novo arranjo. As imagens cinéticas formam-se pela luz ou pela ausência dela. As esculturas solidificam as sombras e corporificam as imagens. Há aqui uma permanência que se dá pela ausência, pela falta, pelo resíduo do fantasmático, como as fotografias antigas, que eternizavam rastros. O intangível e o material falam de algo que está prestes a acontecer ou que já aconteceu. Do derretimento da imagem do mundo.

Ironias à parte, parece que os artistas foram proféticos e intuíram que aconteceria, muito em breve, o incêndio que destruiria o mais antigo museu do Brasil, o Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro. Fundado por Dom João VI, antes da independência do país, ele guardava uma grande parcela da história compartilhada com Portugal, ainda por ser revista e reescrita, e agora em cinzas. Das mais de 20 milhões de peças que compunham seu acervo, sobrou pouco mais do que o meteorito Bendegó, uma grande pedra de ferro e níquel vinda do espaço e encontrada no século XVIII no nordeste brasileiro. Assim como a exposição anuncia, o que restou das chamas, ou o que vemos depois delas, é a metonímia de algo maior, ou apenas a ponta de um iceberg.

João Maria Gusmão + Pedro Paiva

Galeria Fortes D’Aloia & Gabriel

Isabella Lenzi. São Paulo, Brasil 1986. Curadora independente, editora e pesquisadora, desde 2011 desenvolve ensaios críticos, edições, programas públicos e exposições para instituições e publicações no Brasil e exterior. Desde 2013 dirige o espaço cultural do Consulado Geral de Portugal em São Paulo, no qual consolidou um local de experimentação para jovens artistas e difusão de artistas portugueses históricos. Em 2017, atuou como pesquisadora na Whitechapel Gallery, em Londres, e, mais recentemente, colaborou na primeira grande individual do artista brasileiro Alfredo Volpi realizada, em 2018, no Nouveau Musée National de Monaco. De 2013 a 2015 também integrou o núcleo de programação da Videobrasil, associação cultural focada na difusão e mapeamento da arte contemporânea do Sul geopolítico. Antes disso, trabalhou na Galeria Vermelho, em São Paulo, e, em 2011, foi assistente de curadoria na XI Bienal de Cuenca, no Equador.

 

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João Maria Gusmão + Pedro Paiva. Um cão com uma cauda notável. Vistas da exposição na galeria Fortes D’Aloia & Gabriel, São Paulo, Brasil. Cortesia dos artistas e Fortes D’Aloia & Gabriel.

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