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Post Scriptum

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Eduarda Neves

 

 

A arte depois da ideologia

 

Num dos seus conhecidos textos, A arte depois da filosofia,[1] Joseph Kosuth confronta-nos com diversas proposições sobre a função da arte argumentando que a sua única exigência é consigo própria. Afirma que, depois de Duchamp, o valor de alguns artistas deve ser entendido de acordo com o que acrescentaram à concepção de arte e o modo como a problematizaram. Recordemos que é o próprio Duchamp a admitir que não atribui ao artista “uma espécie de função social” em que ele se ache obrigado a “fazer qualquer coisa, em que tenha um dever para com o público.” Confessa ter “horror a todas essas considerações.”[2] Kosuth cita ainda Ad Reinhardt: “a única coisa a ser dita sobre a arte é que é uma coisa. A arte é arte-como-arte e todo o resto é todo o resto. A arte como arte não é nada além de arte. A arte não é o que não é arte.”

No domínio das múltiplas práticas que representam a arte contemporânea, a questão da autonomia da arte foi, nem sempre pelas mesmas razões ou com as mesmas intenções, globalmente secundarizada e/ou instrumentalizada por um certo art world. Identidade, multiculturalidade, etnia, corpo, auto-representação ou natureza, temas progressivamente hiper-visíveis, viriam a tornar-se uma espécie de agenda do trabalho de vários artistas e curadores. Alimentados pelos media, estes debates, assumindo várias configurações teóricas e práticas, impõem-se sobretudo a partir da segunda metade do século XX. Que um artista é do seu tempo e vive o seu próprio tempo sabemo-lo desde Baudelaire, que assim definiu o artista moderno. Também sabemos que a arte intervém de forma mais ou menos mediada. Tem esse poder de transformação ou, se preferirmos, um efeito de consequência, não apenas no seu próprio território mas nos espaços sociais que com ela interagem em graus de intensidade mais ou menos profundos e complexos.

Pode a arte constituir-se enquanto instância crítica da multiculturalidade, do racismo, da identidade ou do corpo sexual? Sim, pode. Um artista que vive o seu próprio tempo e constrói uma mundividência singular — acrescentemos a vida de cada um ao enunciado do poeta — pode tornar o seu projecto artístico numa simples circulação linguística e ideológica? Sim, pode.

Com efeito, conceitos de origem filosófica, política, antropológica e histórica, por exemplo, aparecem revestidos — em diversos programas artísticos — de uma solidez que se apresenta como evidente, ao nível do que é dito e da forma como é dito. A respectiva pseudo validade interna e constitutiva afigura-se como incontestável. “Liberdade”, “igualdade”, “etnia”, “racismo”, justiça”, “género”, “sexo”, “corpo” e outros significantes linguísticos de idêntica acepção, produzem o efeito de converter a sua intrínseca multiplicidade de significados numa univocidade conceptual. A falsa evidência da ideologia exprime-se, deste modo, numa enunciação redutora e sem prévio questionamento, ou seja, sem a mediação de um discurso teórico-crítico.

Encontramos, frequentemente, no campo da arte, a instrumentalização daqueles significantes. O seu fechamento a uma visão do mundo que, de forma invisível e silenciosa, determina e impõe uma circulação de sentido, pode contribuir para o empobrecimento formal e conceptual do projecto artístico assim considerado. A propósito da morte do seu pai em Auschwitz, escreveu Tadeusz Kantor  que nunca lhe interessou uma representação naturalista da morte mas sim a teatralização da própria morte, ou seja, a possibilidade de configurar artisticamente um facto autobiográfico.

No âmbito de uma forte crítica à eficácia da linguagem neoliberal, diz-nos Pierre Bourdieu que noções como as de flexibilidade, mundialização, exclusão, nova economia, etnicidade, minoria, identidade, fragmentação, se tornaram numa espécie de modelo oficial e à escala planetária do imperialismo simbólico:

Tal como as dominações de género ou de etnia, o imperialismo cultural é uma violência simbólica que se apoia numa relação de comunicação forçada para impor a submissão. Neste caso, a sua peculiaridade consiste em universalizar os particularismos vinculados com uma experiência histórica singular, tornando-os irreconhecíveis como tais e reconhecíveis, pelo contrário, como universais.[3]

Situando muitos destes debates, tal como a força que os mesmos alcançaram, no lugar de prestígio a partir do qual têm lugar,[4] Bourdieu opera uma crítica radical à circulação internacional dessa “língua franca” para usar a expressão do sociólogo. Ocultando as origens históricas de um conjunto de problemas, os respectivos significados e condições de origem, a eficácia do mercado livre celebra o reconhecimento das identidades atribuindo-lhes a forma sociológica, política ou filosófica, conforme os palcos e lugares das audiências. Observa que, subtraindo a diversidade dos problemas à especificidade geográfica e singularidade histórica, a sociedade americana pós-fordista e pós-keynesiana é estrategicamente  constituída em modelo de análise. O mesmo se verifica com o debate em torno do multiculturalismo que o autor explica como um termo importado pela Europa para designar o pluralismo cultural ao nível da esfera cívica e que, nos Estados Unidos, inclui e simultaneamente oculta a permanente exclusão dos negros e a crise do mito do “sonho americano” que se intensifica à medida que o colapso do sistema de ensino público e as lutas pelo capital cultural aumentam as desigualdades de classe:

O adjectivo “multicultural” opera um véu sobre essa crise e circunscreve-a artificialmente ao microcosmos universitário expressando-a ostensivamente num registo ostensivamente “étnico”; na realidade, o seu verdadeiro núcleo não é o reconhecimento das culturas marginalizadas pelos cânones académicos mas o acesso aos instrumentos de (re)produção das classes media e superior - como a universidade - num contexto de afastamento activo e massivo do Estado.[5]

Arte e ideologia não são categorias afastadas entre si. Esta maîtrise’ simbólica, como chamou Bourdieu à ideologia, constitui em si mesma uma prática social com funções integradoras e de coesão. Quando a arte se converte em aparelho ideológico e materializa a cultura dominante torna-se uma ferramenta ao serviço da reprodução simbólica. Sendo a arte uma prática social, é-lhe por vezes atribuída uma superioridade ideológica travestida de conteúdo objectivo de verdade.

Como precisou Theodor Adorno:

Quanto mais a sociedade se transforma sem vergonha naquela totalidade em que ela assinala também à arte, como a tudo, o seu valor posicional, tanto mais completamente a arte se polariza em ideologia e protesto; e esta polarização dificilmente se faz para seu bem. O protesto absoluto estreita-a e gira em torno da sua raison d´être, a ideologia reduz-se a uma cópia lamentável e autoritária da realidade.[6]

Tal como Gilles Deleuze considerou que o intelectual, o partido ou o sindicato, deixaram de ser uma consciência representativa de todos os que operam na acção, não encontramos razões para que o artista reclame para si mesmo o direito de se constituir numa qualquer forma de instância superior e esclarecida para as massas. Há muito que abandonamos a figura do intelectual que retoricamente se propunha assumir a tarefa da emancipação:

Ora, o que os intelectuais descobriram recentemente é que as massas não necessitam deles para saber; (…) e elas o dizem muito bem. Mas existe um sistema de poder que barra, proíbe, invalida esse discurso e esse saber. Poder que não se encontra somente nas instâncias superiores da censura (…). Os próprios intelectuais fazem parte deste sistema de poder, a idéia de que eles são agentes da "consciência" e do discurso também faz parte desse sistema. O papel do intelectual não é mais o de se colocar "um pouco na frente ou um pouco de lado" para dizer a muda verdade de todos; é antes o de lutar contra as formas de poder exatamente onde ele é, ao mesmo tempo, o objeto e o instrumento: na ordem do saber, da "verdade", da "consciência", do discurso. E por isso que a teoria não expressará, não traduzirá, não aplicará uma prática; ela é uma prática. Mas local e regional (…) não totalizadora. Luta contra o poder, luta para fazê-lo aparecer e feri-lo onde ele é mais invisível e mais insidioso. Luta não para uma "tomada de consciência" (há muito tempo que a consciência como saber está adquirida pelas massas (…) mas para a destruição progressiva e a tomada do poder ao lado de todos aqueles que lutam por ela, e não na retaguarda, para esclarecê-los. Uma "teoria" é o sistema regional desta luta.[7]

Se quem age é, desde logo, uma multiplicidade, nenhum lugar da fala se pode  satisfazer autoritariamente a ocupar O lugar da verdade ou constituir-se em agente de consciência sem correr o risco de se tornar numa forma totalitária.[8] O pensamento “está às vezes mais próximo de um animal que morre que de um animal vivo, mesmo que democrata“ acautelou Deleuze.

Não podemos ignorar que alguns artistas tornam esse lugar da fala num instrumento que lhes permite reproduzir os valores dominantes do campo num determinado momento da sua história — e especificamente o mercado da arte — para nele adquirirem capital simbólico. Ora, aqueles a quem é suposto a fala ser dirigida acabam convertidos em grandiosos esquecidos, sendo o lugar da fala transferido para as grandes bienais, museus e feiras de arte, aproximando-se das lutas pelo monopólio do exercício do poder ideológico. A título exemplificativo, assinalamos a visita de Harald Szeemann ao Porto, no âmbito da Capital Europeia da Cultura, 2001. Tendo visitado a exposição First Story, apresentada na galeria do Palácio e comissariada por Ute Meta Bauer, disse aquele curador numa entrevista ao jornal Público que “o mais importante são os trabalhos independentemente de quem os faz. Claro que há problemas especiais: o mapa do direito ao aborto (...) é importante, corresponde a algo pelo qual se deve lutar, mas refere-se sobretudo a um problema social. Uma exposição como esta devia ser apresentada na câmara municipal, não num museu”.[9] A arte, como certos discursos, não exprime apenas as lutas e os sistemas de dominação mas aquilo pelo qual e com o qual se luta — o poder que queremos conquistar. A catástrofe é transportada por cada um de nós.

A arte pela arte, fixada ao sentido que o século XIX consolidou, — versus uma concepção social da arte que não se confunde com uma prática ideológica da arte — parece-nos uma categorização ultrapassada e conceptualmente improdutiva que, aliás, é questionada pela complexidade das propostas artísticas das últimas décadas. A pluralidade crítica que as enforma aproxima-as de uma condição aporética, no sentido que Jacques Derrida confere à noção de aporia. Aporos, sem saída ou sem passagem, herdada dos filósofos pré-socráticos, não tem no pensamento derridiano[10] o significado habitual.  Ao contrário, a aporia é convocada na sua forma de experiência do impossível, de uma não-passagem, enquanto condição de possibilidade para o pensamento, excluindo uma lei anterior que aprioristicamente justifique uma outra lei ou verdade posterior. Se, por um lado, só o impossível acontece, por outro, é a impossibilidade de ser reconhecida que constitui a condição de reconhecimento e possibilidade da aporia. Não se trata de paralisação mas, antes, impedir que o pensamento se fixe no compromisso e numa qualquer soberania da verdade. Pensar a experiência em si mesma como experiência da aporia transforma-se na aventura que este autor nos concede.

É nessa travessia sem fronteira indivisível, como escreveu Derrida, que acreditamos ser possível a arte depois da ideologia. Situar a arte, indissociavelmente como prática e objecto de pensamento, num contínuo e infinito post scriptum. Para desassossegar. Para poder continuar. Ser ainda capaz de pensar para além de si, como reivindicou Heidegger. E não é esta a condição da arte e do pensamento?

 

 

— Este ensaio encontrou a sua dupla motivação na polémica gerada em torno do resultado da escolha do júri nomeado pelo Ministério da Cultura / Direcção-Geral das Artes para a Representação Oficial Portuguesa na 59.ª Exposição Internacional de Arte - La Biennale di Venezia 2022 e na conferência Post Scriptum, apresentada no Curso de doutoramento em Arte Contemporânea, ministrado no Colégio das Artes da Universidade de Coimbra, a 17 de Dezembro de 2022.

 

Eduarda Neves

a autora escreve segundo a antiga ortografia.

 

Imagem: Hans Haacke, All Connected, 2019-2020. Vista da exposição no New Museum, Nova Iorque. © Hans Haacke. Artists Rights Society (ARS). Nova Iorque. Foto: Dario Lasagni.  

 


Notas:

[1] Joseph Kosuth — “A arte depois da filosofia”, in Escritos de Artistas, Anos 60/70. (org. Glória Ferreira e Cecília Cotrim). Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2006, p. 213.

[2] Pierre Cabanne — Marcel Duchamp. Engenheiro do tempo perdido. Entrevistas com Pierre Cabanne. Lisboa: Assírio & Alvim, 2002, p. 124.

[3] Pierre Bourdieu. Seis artículos de Pierre Bourdieu publicados en le Monde Diplomatique (Cuatro inéditos en Chile). Santiago-Chile: Editorial Aún Creemos en los Suenos, 2002, p. 42.

[4] “Com efeito, em todos os lados são retransmitidos com força através dessas instâncias pretensamente neutras que são os grandes organismos internacionais: Banco Mundial; Comissão Europeia; (...) OCDE; pelos laboratórios de ideias conservadoras (NYC-Manhattan Institute); Adam Smith Institute, London, Deutsche Bank Foundation, Frankfurt), pelas fundações de filantropia, pelas escolas de poder (Institut d´Études Politiques, France; London School of Economics; Harvard Kennedy School of Government,  na E.E. e UU., etc) e pelos grandes media. Pierre Bourdieu - “Una nueva vulgata planetária” [...], p. 43.

[5] Pierre Bourdieu ­—­ Seis artículos [...], p. 44.

[6] Theodor Adorno — Teoria Estética. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 352.

[7] Michel Foucault — “Os intelectuais e o poder” — conversa com Gilles Deleuze, in Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Editora Graal, 1979, p. 42.

[8] Leia-se, a este propósito, o discurso de demissão de Cornel West, apresentado à Howard University’s na sequência da decisão em abolir o cânone ocidental. 

[9] Harald Szeemann — “Quando as atitudes se tornam histórias.” Entrevista realizada por Óscar Faria. Jornal Público, 27 de Outubro, 2001.

[10] Sobre a questão da aporia na obra de Derrida ver: Jacques Derrida — Apories. Paris: Galilée, 1996.

 

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