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João Maria Gusmão + Pedro Paiva: Terçolho

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Susana Ventura

Fantasmas e Caleidoscópios

 

Como seriam as imagens antes da existência humana?

É inegável reconhecermo-lhes a sua existência: nas sombras projectadas no solo, nas montanhas, nas rochas, nos planos de água, duplamente espelhos e lentes, entre as frestas das rochas, nas cavernas… A formação e a existência da imagem precedem o homem, mas será este a atribuir-lhes o seu sentido de construção, o qual irá revestir a imagem de uma ambiguidade primordial: tanto remete para a representação da realidade da qual poderá dizer-se documento (seguindo a interpretação de muitos que, nos primórdios da fotografia, por exemplo, confundiram esta com documento histórico), como para uma imagem construída que tem origem no pensamento, simultaneamente, activada por este e nele activa, onde constrói o seu sentido — como sucede na pintura, mas também na fotografia, logo após a dissolução da ilusão que esta é neutra perante o modelo da realidade. O sentido, como em qualquer outra fabricação do pensamento,[1] não tem uma condição de veracidade, podendo coexistir com o seu contrário, o não-sentido, ao produzir um paradoxo entre a realidade que se pensa como estática a partir dos seus sentidos finalísticos e a imaginação não iludida pela verosimilhança das imagens com a realidade. A perplexidade de Alice[2] sobre o seu estatuto ontológico surge após as suas transformações radicais entre opostos, aparentemente, irreconciliáveis, produzindo um não-sentido, que não é imputado à existência em si (Alice não duvida que existe, mesmo perante a impotência em localizar-se no tempo e no espaço), mas ao sentido teleológico dessa existência, no qual o não-sentido jamais conseguirá e poderá inscrever-se.

O acto artístico surge com o aparecimento do homem e a simultânea transformação da aparência volátil e flutuante das sombras, das projecções, dos reflexos em imagens estáticas. O mecanismo, que permitiu esta passagem, é, frequentemente, explicado com o recurso a mitos, metáforas ou alegorias, o que não deixa de causar espanto. A natureza da relação entre o que é a experiência da realidade enquanto imagem e a fixação dessa imagem não se explica através de uma invenção tecnológica, técnica ou instrumental, mas através do poder da imaginação e da intervenção da magia.

A obra resultado do trabalho conjunto de João Maria Gusmão e de Pedro Paiva, entre 2001 e 2019, grande parte da qual actualmente presente na exposição Terçolho, com curadoria de Marta Moreira de Almeida e Philippe Vergne e coordenação de Filipa Loureiro, no Museu de Arte Contemporânea de Serralves, introduz, neste pensamento, uma diferença desconcertante (já não eram as imagens, a sua origem e o seu encantamento suficientemente perturbadores!), que parece induzir um sentido contrário, muitas vezes um não-sentido, como aquele experienciado por Alice, na transformação sucessiva imposta ao ser da imagem, questionando-a: “o que és tu?”. A obra parece ter início com uma investigação sobre a imagem e as suas variações, contudo andando para trás, procurando a aparição da imagem antes de ser imagem (porque os estatutos, que constituíram a imagem, transformaram-na, igualmente, em mercadoria, evidenciando-se, na prática dos artistas, um acto de resistência coincidente com o por-vir da imagem, com a sua não mercantilização, que implicará, igualmente, a destruição das estruturas temporais — o tempo é esse grande devorador da vida e, mais ainda, da imagem — que passará por conceber tempos muitos distintos daquele que marca o início dos dias) e os instrumentos que podem revelar essa aparição primária. Muito habilmente, os artistas produzem um encantamento ao dissolver aquele que parecia intrínseco à imagem e à sua aparição, fazendo aparecer o real da imagem prévio à mediação — ou tratar-se-á de simular a não mediação pela mediação? — e à manipulação técnica, devolvendo à imagem o seu estatuto ontológico, quando criam uma perplexidade muito maior, uma espécie de menor-circuito entre a existência da imagem e a sua aparição.

Esta preocupação com a origem (tanto de um ponto de vista científico, como filosófico e mitológico), com o instante primeiro e primário e a procura consequente por uma imagem originária, consolidadas num corpo de obra, que os artistas expõem em Terçolho, como nunca o fizeram anteriormente, alastram-se a todos os domínios e, em cada um, seguindo linhas, por vezes, muito distintas, fazendo-as atravessar territórios desconhecidos, submetendo-as a deformações, que afinal são naturais, causadas pelo interesse dos artistas pela técnica, pelos sistemas mecânicos, pelas engrenagens, pelas forças puras. Como fabricar um movimento real na imagem que não é o movimento composto por imagens estáticas (fotogramas)? Como descobrir o tempo real do movimento, que não corresponde ao preestabelecido na definição da imagem-movimento (24 fotogramas por segundo)? Inventando instrumentos, lentes, espelhos, rotações, impressões, reflexões, projecções, devolvendo à imagem a sua natureza primária, a de uma perplexidade desconcertante: a imagem que se mostra a si mesma em si mesma.[3]

 

 

Batata a cair (2010) e Gato a cair (2010), ambas impressões cromogénicas a cores, são as duas obras que abrem a exposição, juntamente com Pato em Pequim, Lda. (2015-2019), que funciona como síntese desta e do sentido humorístico característico dos artistas, acompanhada por um índex, que funcionará, também, como advertência para o abismo, que se abrirá perante cada obra, entre o que vemos — pensando no olho como um sistema mecânico-físico que os artistas disjuntam (ao manipularem a velocidade das imagens formadas na nossa retina e transmitidas pelo nervo óptico ao cérebro) — e o que percepcionamos ou compreendemos para além das estruturas físicas, sociais, culturais instruídas e estabelecidas — porque as obras induzem a um colapso de todos os sistemas, que não será apenas num sentido metafórico — que o título da exposição propicia — criando um mal-estar proveniente das dúvidas geradas pela coexistência entre o sentido da imagem (o sentido, aqui, correspondente à imagem enquanto fenómeno) e o não-sentido como esforço da relação entre a imagem e qualquer modelo cognoscível (em que o não-sentido pertence, igualmente, ao fenómeno).

Nas duas primeiras obras, a imagem estática expressa um movimento. É a expressão de um movimento. A nossa percepção é a de um corpo que cai, mas não o vemos a cair na imagem estática: vemos o instante eterno da queda. E, mais importante, não sabemos nada do instante que precede a queda, nem do instante que se lhe segue, nem por que caem uma batata e um gato. Inevitavelmente, somos transformados nos corpos que caem, tal a expressão que os artistas imprimiram à superfície fotográfica, quando, através da pesquisa conceptual pela técnica e pelos instrumentos, capturaram e fixaram a suspensão de um movimento irrecuperável, intensificada pela claridade que emana do objecto em queda, como que expulsando da imagem a força da gravidade. Por sua vez, Pato em Pequim, Lda. efectua a ligação problemática, que veremos noutras obras, entre fotografia, fotograma e imagem-movimento / imagem-tempo, existindo uma permutabilidade e, por vezes, indiscernibilidade entre as qualidades expressivas próprias a cada meio, em que a obra surge sempre como Outra, fora de qualquer categoria ou definição (já nem se trata de pensar em termos mcluhanianos em que o conteúdo de um meio é outro meio — ou como o conteúdo do cinema é a fotografia). Os artistas tanto brincam com os limites das imagens, como procuram — no tempo-espaço paralelo que a própria obra constrói — outras definições a partir dessa experimentação.

Pato em Pequim, Lda. lança-nos nessa viagem temporal remontando às origens do cinema e aos seus primeiros instrumentos. Contudo, não é um interesse científico pelos dispositivos ópticos que a obra desvela, mas sim a produção de uma narrativa do não-sentido, questionando-se, precisamente, a disjunção que existe entre forma e conteúdo. Nos fenacistoscópios, nos estroboscópios ou nos cineógrafos (ou flipbooks), o movimento, que aparece entre imagens, produz uma narrativa que afirma essa mesma sequência. Nesta obra de Gusmão e Paiva, não existe qualquer linearidade na imagem e muito menos na narrativa, afirmando-se, precisamente, a sua disjunção na produção de um não-sentido. Este revela-se extraordinariamente mais rico no esforço perpétuo de pensarmos sobre a natureza das imagens e a nossa relação com estas e com os mistérios de ambas. Os artistas falam, frequentemente, de uma fantasmagoria das imagens. A produção de um não-sentido pode ser, igualmente, considerada como fantasma da imagem quando se pretende eliminar desta a narrativa (questão recorrente nas imagens-movimento na arte contemporânea). Na pintura, recordamos, por exemplo, como Francis Bacon quis sempre anular a narrativa da figuração, as tentativas sucessivas de eliminação da narrativa tinha sido um dos factores a conduzir à arte abstracta, mas não lhe interessava esse caminho.

Estas três obras marcam o início da exposição e nelas podemos antever os motivos que se seguirão. Contudo, esta marcação — três elementos no espaço — quase como num teatro, depressa abandona a sua matriz, onde ainda é possível estabelecer ligações directas, transformando-se em caleidoscópio. As imagens multiplicam-se, espelham-se, reflectem-se. Os motivos repetem-se: o círculo, a roda, a luz. O espaço expositivo revela-se entre movimentos: movimento sugerido, movimento suspenso, movimento antes de o ser, movimento oculto, movimento cristalizado. O nosso próprio movimento entre fotografias, entre esculturas, entre desenhos, entre filmes projectados e as máquinas de projecção (que nos prendem com a sua canção encantatória) vê-se desdobrado por entre a proliferação e multiplicação de imagens com repetições rítmicas, sonoras, figurativas…

Não deixa de ser curioso que a imagem, que nos aparece como origem ou centro deste caleidoscópio virtual, seja preenchida pelas esculturas que os artistas realizaram ao longo da sua prática comum. Procurando fazer desaparecer o excessivo formalismo do espaço arquitectónico herdado (que se confirmará, igualmente, na forma como expõem os filmes nas salas em penumbra e na ocupação do segundo nível da garagem do museu), estas surgem num espaço cénico desenhado pelos artistas, ladeado por corredores, onde estão expostas várias fotografias, sendo possível olhar para o espaço interior através de inusitadas aberturas, que reforçam o absurdo e o humor, que caracterizam as esculturas que, pela própria técnica que os artistas utilizam (não recorrendo a moldes), adquirem uma espontaneidade que nasce do processo, tornando-se este inseparável, também, do motivo, o que atribui às esculturas uma animação, que não é resultado, apenas, da representação de resquícios de movimentos, como os dedos do pé que se mexem quando alguém lhe faz cócegas (Faz cócegas, 2015), ou um plano que se achata quando um rolo lhe passa por cima (Lebre e cilindro, 2013), ou uma pata que se ergue no ar quando um cavalo trota (Cavalo, 2015), entre tantos outros exemplos. Muitas das esculturas surgem em filmes da dupla como personagens, em instalações em câmara escura,[4] ou ainda como simulacros em plasticina fotografados, onde se assemelham a personagens numa caixa de teatro (Sem título, 2017). Estas fotografias, por sua vez, inserem-se numa série de instalações cénicas de exposições anteriores, como a mise-en-scène criada, nesta exposição, com algumas esculturas, que parecem executar acrobacias capturadas em momentos de suspensão, na sala seguinte.

Este entrelaçamento constante entre obras reforça a ideia que a animação incutida a seres inanimados (como as esculturas) não é um contraponto à imobilidade, mas tida como um estado da própria natureza do movimento, que, por sua vez, se desenvolve com maior ou menor velocidade, o que permite esta passagem de um meio a outro, a permutabilidade e a indiscernibilidade das qualidades expressivas provenientes dos respectivos meios e exacerbadas, intensificadas, pelos motivos e respectivas composições (daí a preferência de motivos que transportam, eles próprios no imaginário, um movimento latente — como as rodas, certos animais, certos objectos, etc.). O mesmo sucede com algumas das fotografias expostas, como por exemplo Esparguete voador (2013), Martelo macio (2018), Vassoura marada (2018), ou ainda com os desenhos, alguns nomeados de Droodles.

Ao redor deste núcleo (pensando na imagem do caleidoscópio e não tanto na sequência das salas no espaço físico, no qual, no entanto, houve a tentativa de criar esse movimento espacialmente, pelas relações constantes entre obras das diferentes salas, sendo um dos exemplos mais imediatos a ligação entre a fotografia da máquina de lavar à escala 1:1, colocada rente ao chão, na mesma perspectiva em que surgirá o filme da mesma máquina de lavar, como ainda a fotografia da máquina de lavar numa das composições cénicas em plasticina referidas anteriormente), encontram-se os filmes de 16 mm da dupla de artistas, indissociáveis do ritmo hipnotizante das respectivas máquinas de projecção, que, consoante os filmes, se associam em conjuntos para criar múltiplas projecções. Estas tornam-se elas próprias em matéria de composição, intensificando o movimento elíptico (perpétuo e infinito), muitas vezes, criado nos filmes, como em Xadrez (2019) ou em Onça Geométrica (2013). Noutros filmes, este movimento elíptico advém do próprio motivo do filme, como em Triângulos e quadrados (2013), Rodas (2011) ou 30 metros de corda (2018). Nestes filmes, com que nos deparamos em primeiro na exposição, ressalta a relação, que os artistas criam entre movimento e geometria, que é, igualmente, expressão da relação entre imobilidade e animação, que, no caso dos filmes, remete para experiências ópticas primitivas.

A obra fílmica dos artistas é, como se comprova na exposição, extremamente vasta, na qual encontramos filmes, como os referidos anteriormente, que exploram rotações, sobreposições, repetições, padrões, como encontramos filmes que parecem demonstrar experiências quase científicas, a partir tanto de enunciados que provêm das ciências naturais, como de enunciados absurdos, criando, por conseguinte, ficções especulativas que assumem a qualidade de miragens. Simultaneamente, existe uma procura pelo Outro (em Papagaio (djambi) (2014), por exemplo, vemos uma comunidade, em São Tomé, em transe a dançar, percebendo-se, de forma muito evidente, o processo de dessubjectivação, que podemos reencontrar, ainda que de outra forma, no fascínio dos artistas pelo animal), pelo estranho, pelo exótico (que encontram nas viagens e testemunhamos em muitos dos filmes), proveniente, certamente, do interesse pela Abissologia, de procurar desvelar o que permanece oculto e invisível no tecido da realidade, à qual se dirigem já imbuídos de uma perplexidade primordial (semelhante àquela que os primeiros homens sentiram perante a aparição das imagens) e uma inquietude numa procura incessante pelo insondável, pelo incomensurável, pelas forças cósmicas, que muitas vezes só são perceptíveis, exactamente, na imagem paradoxal (de que 3 sóis (2009), será um dos melhores exemplos). Esta procura inscreve-se na própria técnica fílmica dos artistas, ao privilegiarem os meios analógicos, manipulando, dessa forma, as condições físicas de gravação e de projecção, criando tempos heterogéneos entre o que é filmado e o que é projectado, a partir de uma diferença de velocidade. O movimento é sempre pensado como variação em si mesmo (passando por limiares e gradações muito distintas, como já vimos) e, simultaneamente, como duração, sendo esta a matéria do tempo. Mas o tempo, tal como os filmes dos artistas denunciam e comprovam, é senão uma construção do homem.

 

João Maria Gusmão + Pedro Paiva

Museu de Arte Contemporânea de Serralves

 

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Susana Ventura (Coimbra, 1978) Arquitecta de formação (darq-FCTUC, 2003), contudo prefere dedicar-se à curadoria, à escrita e à investigação, cruzando diferentes áreas do conhecimento. Gosta de pensar sobre arte, arquitectura, fotografia, cinema e dança, e ensaiar, ora em textos, ora em exposições, outras possibilidades de pensamento. (Por isso, também, doutorou-se em Filosofia, na especialidade de Estética, FCSH-UNL, 2013, sob orientação científica de José Gil). Foi co-curadora de Utopia/Distopia, no Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia de Lisboa (MAAT). Recentemente, foi curadora da exposição Corpo Radial de Mariana Caló & Francisco Queimadela na Galeria da Boavista, em Lisboa.

 

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.

 

CF059931
CF059951
CF059914
CF059908
CF059822
CF059818
CF059887
CF059819

Notas:

[1] “[…] o sentido nunca é princípio ou origem, ele é produzido. Não é algo a descobrir, a restaurar, nem a re-empregar, mas algo a produzir por meio de novas maquinações,” Gilles Deleuze, Logique du Sens (1969). Paris: Les Éditions de Minuit, 89-90.

[2] Alice remete para a personagem do livro Alice no País das Maravilhas, escrito por Lewis Carroll.

[3] Apropriamo-nos do que Gilles Deleuze refere sobre a patafísica (sendo esta um dos interesses da dupla de artistas): “[…] A patafísica como superação da metafísica é inseparável de uma fenomenologia, quer dizer, de um novo sentido e de uma nova compreensão do fenómeno. O fenómeno não pode definir-se já como uma aparência; mas também não se definirá, à maneira da fenomenologia de Husserl, como uma aparição. A aparição remete para uma consciência à qual aparece, e pode ainda existir sob uma forma diferente daquela que faz aparecer. O fenómeno, pelo contrário, é aquilo que se mostra a si mesmo em si mesmo. […] O fenómeno, enquanto tal, não remete para uma consciência, mas para um ser, ser do fenómeno que consiste precisamente no mostrar-se. Este ser do fenómeno é o ‘epifenómeno’, in-útil e in-consciente, o objecto da patafísica,” Gilles Deleuze, Critique et Clinique (1993). Paris: Les Éditions de Minuit, 115-116.

[4] Em Terçolho, existe, apenas, uma instalação em câmara escura, cujo objecto projectado não é, no entanto, uma das esculturas em bronze, como sucedeu noutras exposições.


Imagens: João Maria Gusmão + Pedro Paiva: Terçolho. Vistas gerais da exposição no Museu de Arte Contemporânea de Serralves. Fotos: Filipe Braga. Cortesia dos artistas e da Fundação de Serralves.

 

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