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AnozeroBienal de Arte Contemporânea de Coimbra

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Raquel Henriques da Silva

A Bienal de Coimbra segue em frente

Quando o comissário da terceira Bienal de Coimbra, o brasileiro Agnaldo Farias escolheu como ponto de partida do seu trabalho (partilhado com os co-comissários Lígia Afonso e Nuno de Brito Rocha) um maravilhoso conto de José Guimarães Rosa, intitulado A Terceira Margem do Rio, quis enfatizar a imagem de Coimbra que se desdobra, desde a sua mais remota existência, nas duas margens do Mondego. Havia então, a ligá-las, uma operativa ponte, pelo menos desde os gloriosos tempos do Império Romano. Coimbra chamava-se Aeminium e era nó fundamental da estrada romana até Braga. Sobre estas ressonâncias fortíssimas do lugar, os comissários usaram as palavras de Guimarães Rosa para propor uma "terceira margem" que, na verdade, se constituía como difuso percurso em construção: deveriam ser os visitantes a inventar essa "terceira margem", calcorreando a cidade? Seria ela o corpo sobrelevado do Convento de Santa Clara que subiu a colina para não correr o risco de ser dominado pelas águas das cheias cíclicas do Mondego? Ou foram os artistas que lhe deram um efémero contorno, a partir dos sítios precisos em que as obras foram instaladas?

Quando ali estive (para ver não tudo mas o que foi possível, num dia apenas) acontecera que a paisagem estava dominada pelo rasto assustador das tempestades Elsa e Fabien: a segunda margem do Mondego, do lado de Santa Clara, diluía-se devido à subida das águas e à abundância das chuvas, dotando o belo título da Bienal com uma toada poética, porque a ameaça só acontecia mais adiante, no Baixo Mondego, onde as aldeias foram seriamente atingidas. A escolha do conto de Guimarães Rosa alcançava assim uma inusitada (e, na verdade, indesejável) pertinência: como construir "a terceira margem" perante o vacilar multissecular de margens reais entre o estado sólido e o estado liquido? Poderemos dizer de outra maneira: como representar em cultura uma cidade, determinada pela geografia, carregada de história e desejante de futuro?

A resposta a esta pergunta, intencionalmente poética, tem componentes muito pragmáticas, construídas na parceria entre uma associação de artistas contemporâneos (o CAPC, Círculo de Artes Plásticas de Coimbra que, nos anos de 1970, teve uma existência gloriosa), a prestigiada Universidade que, para muitos estrangeiros (brasileiros, nomeadamente) é a imagem mesma da cultura portuguesa, e a Câmara Municipal que, entre sucessos e desaires na gestão da cidade, vai aderindo, positivamente, aos desafios que um evento como este coloca. E vale a pena recordar que, com esta ambição e continuidade, esta Bienal é única em Portugal.

Mas para lá da importante questão política da governança da Bienal, a sua história está, desde a edição nº 2 (2017) indelevelmente ligada ao passado e ao futuro do Convento de Santa Clara. Há dois anos, a Bienal conseguiu o acto quase heróico de abrir o gigantesco edifício à cidade, depois da partida da estrutura militar que ali esteve instalada desde o século XIX. Tratando-se de um dos mais esplendorosos exemplares da arquitectura maneirista portuguesa do século XVII (o epíteto de "arquitectura chã" proposto por George Kubler tem aqui radical adequação), a sua situação expectante exige um amplo debate na cidade e no país que a Bienal AnoZero vem propiciando.

Tal como em 2017, reencontrei a emoção de poder entrar e percorrer as longuíssimas naves abobadadas, de subir à torre, de atravessar a cerca e de entrar em vários anexos. Vinte artistas (do total das trinta e nove presenças em todo o evento) foram convidados pelos comissários para criar diálogos, provocações, surpresas e maravilhamentos, sem nunca comprometer, antes enfatizar, a força da arquitectura e as mazelas que a vida longa lhe foi impondo. Este subtil e incerto balanceamento está configurado na intervenção quase invisível de Daniel Senise nas paredes do piso zero: intitulada Verónica, cobria levemente o palimpsesto gerado pelo tempo, com um corpo de pintura, não abstracta mas poeticamente transcendente. 

Outras obras representavam idênticas formas de evocar e sugerir o tempo lento da transformação da história e da arquitectura.

É o caso, por exemplo, de Oasis de Cadu, instalada na sala de acesso à cisterna do convento: um sistema aparentemente elementar de mangueiras e coadores ia permitindo o gotejar quase invisível de solução salina que corrói uma espécie de paisagens de terra, assim permanentemente redesenhadas ou gravadas e desgravadas. Gera-se uma situação encantatória que se encontra também na ampulheta de Laura Vinci, instalada na abóbada de uma sala do subsolo do convento de onde escorria permanentemente um fio de areia que se acumulava num monte japonizante sobre o chão. Ou ainda a fantasmática instalação de Renato Ferrão, Estudos de passagens que nos faz circular pelas antigas celas das Clarissas atrás de um paradoxal fio narrativo que um ou dois gatos tranquilamente dinamitam.

Outras intervenções tinham uma inscrição de igual para igual com o edifício, beneficiando da qualidade erudita da arquitectura mas sem nela se deixarem submergir.

Assim, no refeitório, os “monumentos” de Erika Verzutti, produzidos para a Bienal: conjuntos escultóricos que sugerem megálitos pré-históricos ou ábsides de santuários perdidos, deixando adivinhar a desadequação matérica que substitui o peso da pedra por combinações diversas que, neste caso, usam sobretudo o papel maché. Próximo, mergulhava-se na espectacular instalação de João Maria Gusmão + Pedro Paiva que se sobrepunha à arquitectura. A história, instalada em painéis independentes, narra as aventuras de um Pato em pequim que acaba cozinhado, numa exuberância de humor, criatividade e curtos-circuitos de qualquer espécie de sentidos, gerados por um domínio absoluto de meios expressivos diversos.

Quase esquecidos do edifício, era possível mergulhar em vídeo-instalações muito interessantes, como Puente de Ana María Montenegro, narrando, com rigor, a circulação clandestina de gente entre a Colômbia e a Venuzuela; ou Landscape painting de Julius von Bismarck radicalizando, com alta imaginabilidade, a experiência de pintar a paisagem.

A vastíssima fachada do Convento, voltada à cidade, foi percorrida de uma linha de escrita, elaborada por Marilá Dardot. Conjugava a fala da personagem de Guimarães Rosa com o poema Ricochete de Natália Correia em que esta interroga “Que margem tem o rio para além, das suas margens?” num acerto curioso com a “terceira margem” que a personagem emudecida de Guimarães Rosa inventou para viver fora dos lugares das duas margens. Tal como nas artes plásticas, o número de criações originais na literatura não é infindável, permitindo propor encontros electivos entre dois grandes escritores, não pelo cotejar das biografias mas pela pregnância porosa da escrita.

Deixei o Convento sem ter visto todas as peças, sem tempo para pensar outras, mas com a certeza de que a aposta estava ganha: tantos artistas, de diferentes nacionalidades que não conhecia e que têm, todos eles, percursos relevantes, consolidados ou promissores.

Na minha opinião, este é um ganho maior do espectáculo bienal: abrir campos de contacto que são mais amplos, incertos e ahistóricos do que os propiciados pelos museus.

Na cidade foi mais o que não vi do que o que vi. Ainda assim, elejo, desde já, dois conjuntos excepcionais. Na sede do CAPC, Anna Boghiguian criou uma instalação extensiva, ocupando grande parte do espaço da casa, com um jardim de cactos e uma embarcação antiga e, sempre, as estranhas figuras recortadas: são esculturas/desenhos, intensamente coloridas, espectadores e actores de histórias que transmutam geografias distantes, num nomadismo poético que confronta lugares e memórias. Mas pressentimos que são os mais desamparados que a movem, lançando sobre nós a energia das suas culturas ameaçadas. Por isso, havia um reforço enérgico entre a discursividade plástica de Anna Boghiguian e o filme, numa das primeiras salas, de Susan Hiller: The last silent movie dava fala a fragmentos de línguas e dialectos do mundo, extintos ou ameaçados de extinção. No entanto, a beleza dos sons recolhidos gera, a par da consciência da perda, uma quase euforia pela inventividade que essas línguas ditas elementares contêm.

No CAPC Sereia, beneficiando de um lugar maravilhoso pelo jardim envolvente, encontrava-se  a exposição notabilíssima, ShipShape com curadoria do artista Tomás Cunha Ferreira, expondo trabalhos seus em diálogo plástico e literário com obras de Ana Hatherly, Augusto de Campos, Karel Martins e Lenora de Barros, e muitos outros. Era preciso ficar para beneficiar daquela exposição/instalação: vai-se descobrindo uma  profícua superação dos pressupostos históricos da Poesia Visual, com uma vitalidade que manifesta quanto ela é uma extraordinária herança mas também um terreno activo de pesquisa. Aliás, quando passei para o Colégio das Artes, reencontrei, na exposição de Mattia Denisse, o mesmo gosto de criar dispositivos com poéticas multidireccionais onde a escrita é tratada como matéria plástica, integrando sinais e formas que em princípio lhe são excêntricos. No caso de Denisse, os jogos radicalizam essas articulações, contaminados pelo design gráfico e por uma peculiar postura em relação à filosofia, o que gera situações de “mise en abîme”: o riso que provoca inscreve-se na transcendência do acto de rir, teorizada por Bergson no início do século XX.

Mas volto ao modo como a arquitectura monumental de Coimbra é parte integrante da Bienal, AnoZero. Tal como acontece no Convento de Santa Clara, não podemos deixar de pensar no futuro de tão notáveis edifícios. Desocupado o Convento, densamente habitado pelo Departamento de Arquitectura da Universidade, o Colégio, ambos precisam, nas suas diferentes histórias e escalas, de serem intervencionados, rumo ao futuro. Entretanto, gente vinda de fora por ali andou, em imagens belíssimas, quer nas fotografias de Joanna Piotrowska, quer nos corpos pintados, pós-impressionistas, de João Gabriel. A mim sugerem-me não a filmografia “porno gay” que estará na sua origem, mas uma saudosa “joie de vivre” a que todos temos direito.

Não pude ver com reflexão as obras instaladas nos museus de ciência (mas convém lembrar que são organismos fundamentais da frouxa museologia de ciência em Portugal) nem sequer entrar no Edifício Chiado, onde habitualmente poiso em homenagem ao casal Teles de Morais que, em dádiva generosa, ali instalaram as suas múltiplas colecções.

Há dois anos, quando resolvi escrever sobre a excelência do projecto Bienal AnoZero desejava, como todos os interessados, que o milagre voltasse a acontecer. Confirmei-o  com grande proveito, o que, aliás, era expectável, tendo em conta a experiência e qualidade de Agnaldo Farias e a sua sensata decisão de juntar a si, como co-comissários, dois curadores mais novos, experientes e cheios de entusiasmo. Mas não há apenas continuidades. Creio que AnoZero19 alargou proficuamente os seus elos com a cidade: abriu o Cine-Teatro Avenida há muitos anos fechado, sinal de outra frente de debate urbano que urge ganhar; envolveu, mais sistematicamente, alunos do Mestrado em Curadoria da Universidade, de que também beneficiaram estudantes da Escola das Artes das Caldas da Rainha que colaboraram na montagem no Convento; criou, no Programa Convergente, a colaboração com o Departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra, gerador de vários eventos, entre eles Hortus Conclusus que, no Convento, abriu em claustro um antigo pátio do quartel, ali empilhando uma espécie de floresta domesticada de troncos cortados; e o workshop/exposição intitulada Conimbrismo, comissariada por Jorge Figueira e Pedro Pousada, abordando curiosas circulações de sentidos e não sentidos entra práticas projectuais fascizantes e a pintura mural de referência comunista.

Para quem, como eu, contempla melancolicamente, o afã que define negativamente o fenómeno bienal na cena internacional, AnoZero é uma experiência única.

Através do trabalho de dezenas de artistas, de diferentes idades, origem e reconhecimento, as problemáticas de uma cidade histórica, que não deve ceder aos modelos esgotados do turismo de massas, constituem-se como estaleiro da Coimbra do futuro. A arte extravasa, sai do seu mundo de fala entre iguais, e não pode senão inspirar os cidadãos. Na verdade a bienal AnoZero vem propondo uma série de situações heterotópicas que podem e devem influenciar as decisões. A mais premente é o futuro do Convento de Santa Clara. Professo a opinião de todos os artistas que ali têm trabalhado: trata-se de um tesouro raro que deve poder continuar a existir como espaço de arte. Não precisa de ser museu, não precisa de grandes confortos. Menos precisa da vizinhança empobrecedora de um hotel. Uma enorme casa das artes é o que ele tem de ser, assegurada pela parceria existente e inventando dinâmicas várias para os tempos entre as bienais. Espero que a sua margem altaneira, com valores arquitectónicos intactos desde o século XVII, nos acolha a todos no AnoZero 2021.

 

Anozero – Bienal de Arte Contemporânea de Coimbra

 

Raquel Henriques da Silva é professora de História da Arte, FCSH/UNL.

 

A autora escreve de acordo com o antigo acordo ortográfico.

 

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A Terceira Margem. AnozeroBienal de Arte Contemporânea de Coimbra, 2019. Primeira imagem (capa): João Maria Gusmão + Pedro Paiva. Último bloco de imagens, intervenções dos artistas: Anna Boghiguian, Ana María Montenegro, Cadu, Daniel Senise, Erika Verzutti, Joanna Piotrowska, João Gabriel, José Spaniol, Julius von Bismarck, Laura Vinci, Marilá Dardot, Mattia Denisse, Renato Ferrão, Susan Hiller. © Fotos: Jorge das Neves. Cortesia da Bienal de Arte Contemporânea de Coimbra.

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