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Haus Wittgenstein

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Susana Ventura

Efeito Wittgenstein

 

“Acerca daquilo de que se não pode falar, o melhor é guardar silêncio.”

Ludwig Wittgenstein, Tratado Lógico-Filosófico

 

A exposição Haus Wittgenstein, presente no Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia (MAAT), com curadoria de Nuno Crespo (estudioso da obra e do pensamento filosóficos de Ludwig Wittgenstein), e as diversas obras aí expostas, de artistas muito distintos, algumas resgatadas de diferentes contextos e outras concebidas, especialmente, para esta exposição, procuram contrariar esta última frase do Tratado Lógico-Filosófico, de Ludwig Wittgenstein, confrontando-nos, de imediato, com o carácter da própria obra de arte (pertencente, sem dúvida, ao indizível e, consequentemente, ao que apenas pode ser mostrado).

A casa Wittgenstein (e o interesse renovado por esta no seu 90º aniversário, data que a exposição assinala) tem gerado um conjunto de perguntas e especulações, que se foi adensando com o decorrer dos anos e com a sucessão de reacções que foi provocando em diferentes áreas do conhecimento com um contributo decisivo das práticas artísticas. Olhar para esta casa deveria implicar esquecermo-nos dos acontecimentos biográficos que marcaram a vida do seu autor, como se nas paredes e nos pormenores estivessem inscritas as suas feridas (e não seguir a advertência de Adolf Loos que as paredes do quarto nada têm que ver com a vida da jovem que escolhera suicidar-se nele). Semelhantemente, qualquer forma de pensamento sobre esta casa deveria restringir-se à disciplina da arquitectura, evitando qualquer comparação, ou mesmo analogia, com a obra filosófica de Wittgenstein, porque a casa não pode dizer-se expressão (ou imagem) de um sistema filosófico. E, no entanto, o mistério e a sedução da casa nascem no preciso momento em que, no esforço de compreensão e perante o ímpeto de colocar uma questão e outra e outra (característica que Wittgenstein atribui à filosofia), estas permanecem sem resposta. Dificilmente podemos ater-nos ao silêncio, porque implicaria nada ver nascer, também, em seu redor.

A exposição Haus Wittgenstein parece, por conseguinte, nascer deste desejo de falar sobre a casa, sobre tudo o que a envolve, sem receio ou mesmo pudor, colocar questões, interpelar, especular sobre as relações existentes entre a casa, a vida e a obra de Wittgenstein; reescrever a história da arquitectura e a história da casa ou escrever outras histórias; dissecar os desenhos e os respectivos pormenores do projecto de arquitectura; alimentar mitos mediante a ironia; evocar os fantasmas que a assombram… através desse conjunto heterogéneo de diferentes formas de apropriação de um objecto que tanto fascina e intriga.

A casa desdobra-se, então, ao longo da exposição numa complexidade que atinge, por vezes, esse limite para o qual a própria linguagem deveria tender, no sentido em que cada obra, em si própria, se diz a si mesma, à sua singularidade, e, de certa forma, se recusa a integrar uma narrativa universal (embora se reconheçam alguns “temas”, como por exemplo: a casa, as janelas, a linguagem, o indivíduo Wittgenstein).

O que não impede, contudo, a criação de diálogos entre diferentes obras. Assiste-se, por exemplo, a uma certa ambivalência entre a objectividade do facto arquitectónico, que pode ser representável sob a forma da proposição (ou como na obra de Leonor Antunes, como um Modo de Usar #7), e o carácter inexprimível próprio de uma obra de arquitectura, em que esta só pode limitar-se a apresentar-se em si própria, o que denuncia, de imediato, a dificuldade, senão impossibilidade, de se estabelecerem ligações efectivas à obra filosófica de Wittgenstein. Mas será esta ambivalência (que hesita e vacila, por vezes, no espaço expositivo) que torna esta exposição aliciante, com múltiplos confrontos entre a lógica (e os seus correspondentes nas linguagens artística e arquitectónica, o racionalismo e modernismo) e o misticismo, como por exemplo no confronto entre Tautological Book, de Ricardo Carvalho, e The Day Me and My Dad talked about the House de Luís Lázaro Matos + José Luís Quitério (ambas encomendas para a exposição). A obra de Ricardo Carvalho, ainda que nas palavras do autor pretenda fazer coexistir tempos diferentes do desenho, hesitações próprias do processo criativo e decisões de ambos os autores (de Paul Engelmann e de Wittgenstein), apresenta um conjunto de desenhos técnicos cuja finalidade, no pensamento do seu autor, não será a de representar a obra construída, mas uma “inoperante caixa de ferramentas que Wittgenstein associava à linguagem” (Ricardo Carvalho). No entanto, o desenho técnico pertence à lógica (raramente o desenho técnico inclui na sua composição uma semente do caos informe que até poderá ter estado na sua germinação): a sua imagem é um modelo da realidade, existindo uma correspondência entre as partes constituintes do desenho técnico e da obra de arquitectura através da lei da projecção (wittgensteiniana). Por sua vez, o mural de Luís Lázaro Matos + José Luís Quitério, nas suas cores exuberantes vivas, nas derivas dos traços e no excesso da tinta que escorre, liberta do gesto do pintor, é um pano de fundo como esse inexprimível wittgensteiniano, para o que poderá constituir-se como uma narrativa ou um diálogo sobre a casa de infância do artista. A infância e as memórias são, necessariamente, ficcionais, zonas cinzentas do nosso conhecimento sobre nós mesmos, talvez o que temos em nós de mais inexprimível (a memória constitui um plano virtual, mesmo que, por vezes, tendamos a tratar as nossas memórias como factos).

 

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A ambivalência é, sem dúvida, na exposição uma expressividade que se estende ao questionamento (que foi, também, o de Wittgenstein) sobre os limites da linguagem e da capacidade desta de representação do mundo (que atingirá na arte conceptual — representada na exposição por vários artistas — um dos seus extremos).

A casa desaparece, momentaneamente, embora persista de quando em quando como uma rememoração, como por exemplo, na obra de Luísa Cunha Ali vai o João, onde esta descreve um espaço de forma objectiva, mas na qual a palavra dita se torna expressiva desse mesmo espaço que representa quando dita e repetida (o ritmo da voz encontra os elementos que conferem ritmo ao espaço, os cheios que pontuam o vazio ou, pelo contrário, se formos rigorosos, será nos espaços vazios e no silêncio entre as palavras que nascerá o ritmo: do espaço, da palavra e da obra de Luísa Cunha), quando se insurge na exposição, de forma mais veemente, a linguagem. Esta é compreendida nas suas infinitas variações: desde a linguagem matemática combinada com a alegórica (como nas obras de Mel Bochner e John Baldessari); à linguagem escrita representada pela palavra e à capacidade desta substituir o objecto, ou pelo contrário, evocar outros objectos (como na obra de Art & Language); ou, por fim e principalmente, à linguagem artística que se serve desses outros tipos de linguagem para explorar os seus próprios limites e poder de transformação e metamorfose (como nas obras de João Louro, João Paulo Feliciano e Julião Sarmento). Na obra de Horácio Frutuoso Nunca serei um de vós (outra encomenda para esta exposição), a palavra transforma-se, duplamente, em espaço: surge como anotação no imenso espaço vazio e informe das paredes curvas do espaço expositivo, fixando-se, quase sempre, em limiares, coincidentemente, espaciais e visuais, onde exercita a sua capacidade plástica de se transformar em forma e em espaço, em espiral, por exemplo, que é também expressão do balbuciar próprio do pensamento, em acção, ou mesmo, em palavra de ordem, em cartaz, revelando, porém, ao olhar mais próximo e atento, a inconstância da sua manualidade e respectiva textura.

O místico, como o que escapa à expressão na linguagem, surge na exposição, curiosamente, numa das obras que poderia ser interpretada como a igual demonstração de um facto científico. A obra Camera inside camera, de João Maria Gusmão + Pedro Paiva, constrói, no espaço expositivo, o dispositivo da camera obscura, projectando o objecto real através do feixe de luz pelo recorte na parede. Na parede oposta, surge, no entanto, a imagem de um espaço imaginado e sensível, onde uma janela espreita para um jardim, enquanto a luz, de um outro lado exterior (como que por trás da superfície encantada), se desloca, desvelando, lentamente, a passagem do tempo e a espessura que une o real à nossa imaginação (e pensamentos). Não obstante o conhecimento do mecanismo que constrói a ilusão, a obra evoca a nossa relação com o mundo visível e a nossa capacidade de nos espantarmos sem recorrer a mediações e até à própria linguagem.

A casa reaparece, novamente, na última secção da exposição (que poderá funcionar, também, como primeira secção, estando prevista uma entrada por esta), através daquele que é, para vários autores, considerado o tema arquitectónico principal da casa: as sua janelas verticais e a pormenorização obsessiva destas por Wittgenstein. As fotografias de Nuno Cera (outra das encomendas realizadas), impressas em zinco, parecem trazer a casa de um passado longínquo até nós, como espectros, quando nos degraus denotamos a presença do tempo ou nas plantas vemos os seus habitantes (passados). Nestas, não é a obra de arquitectura que se apresenta, nem fragmentos desta, mas a capacidade inerente à própria imagem fotográfica de tornar visível o invisível, o que, de certa forma, pertence, igualmente, à esfera do indizível. Na parede oposta, a obra de Gil Heitor Cortesão (outra das obras criadas para esta exposição) remete para a verticalidade assumida das janelas da casa Wittgenstein, porém no seu ritmo e nas manchas verdes de óleo sobre vidro acrílico, causa em nós uma percepção ambígua entre interior e exterior que, no movimento de percorrer a exposição (significativamente, esta obra tem uma extensão de 8 m), se desdobra nesse outro movimento das folhas das árvores no jardim a brincar com a luz do dia (a luz que Wittgenstein quis controlar no interior da casa e que, na obra de Gil Heitor Cortesão, é, também, a luz aprisionada no vidro que acaba por se soltar).

No fim, é inevitável assinalar como uma casa apenas, feita de paredes, vãos e tectos, ladeada por um jardim no coração de Viena, se dá a pensar, se oferece como matéria plástica infinita, sem nunca se alterar (mesmo após todas as diferentes ocupações que teve ao longo da história). Desconhece-se, ainda, o destino das obras encomendadas, contudo estas são, também, elas outras para além da casa.

MAAT: Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia

Susana Ventura (Coimbra, 1978) Arquitecta de formação (darq-FCTUC, 2003), contudo prefere dedicar-se à curadoria, à escrita e à investigação, cruzando diferentes áreas do conhecimento. Gosta de pensar sobre arte, arquitectura, fotografia, cinema e dança, e ensaiar, ora em textos, ora em exposições, outras possibilidades de pensamento. (Por isso, também, doutorou-se em Filosofia, na especialidade de Estética, FCSH-UNL, 2013, sob orientação científica de José Gil). 

 

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Haus Wittgenstein. Vistas da exposição no MAAT: Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia. Fotos: Bruno Lopes. Cortesia de MAAT/Fundação EDP.

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