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Lua Cão

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Alexandre Estrela e João Maria Gusmão & Pedro Paiva. Vistas da exposição "Lua Cão". Um projecto ZDB. Foto: Lais Pereira. Cortesia dos artistas e ZDB.

Isabel Nogueira

Lua Cão é o título da exposição de Alexandre Estrela (n. 1971) e João Maria Gusmão (n. 1979) & Pedro Paiva (n. 1978), com curadoria de Natxo Checa. Trata-se de uma produção da Galeria Zé dos Bois, apresentada num espaço de uma antiga oficina, na Calçada do Tijolo, em Lisboa. O espaço surpreende pela considerável dimensão e por manter o aspecto descarnado. O interior do edifício distribui-se por piso térreo e piso superior, este com abertura para o inferior, de modo que o espaço e a sua natural crueza concorrem para a criação de uma dinâmica expositiva singular, apelativa, que, em suma, constrói e optimiza a ligação entre as obras e a sua apresentação. Este projecto foi mostrado há cerca de um ano, nos Açores, no contexto do evento Walk & Talk.

O texto que apresenta a exposição localiza-nos perante o propósito da viagem como ponto de partida para o trabalho de produção imagética que nos recebe. Naturalmente que toda a viagem começa antes de começar, como uma antevisão de vontade e de desejo de partida. Certas vezes — muitas, na verdade — sem um motivo que a sustente, além da sua imperiosa necessidade. Esse é, provavelmente, e em abstracto, o mais importante, ou seja, o próprio espírito que provoca e, em última instância, define a viagem e a experiência vivencial, artística, entre outras. O elemento exótico é outra constante nesta mostra. Mas, importa referi-lo, este exotismo não é visto apenas – e de acordo com seu o significado etimológico – como o que é exterior, como algo que vem ou que é de fora, mas, sobretudo, como uma visão tomada num sentido de incorporação, ou seja, através da exterioridade pensar e questionar a interioridade, como num espelho.

E é nesse espaço do Eu e do Outro, que a seu modo é também um Eu, que a viagem realmente acontece.

Alexandre Estrela apresenta duas impressões a jacto de tinta perfuradas (Moondog, 2013), uma projecção de vídeo sobre uma escultura de alumínio (Solar watch, 2006), além outras projecções de vídeo, maioritariamente com som, enquanto a dupla Paiva & Gusmão mostra filmes no formato 16 mm, sem som. Com um cuidado trabalho curatorial de Naxto Checa, o visitante experimenta, além das imagens que emergem na penumbra ao ritmo certo e em diversos suportes, todo um leque de texturas sonoras, nomeadamente, as variações conseguidas pelo intercalar do som das projecções de vídeo – algumas surgem de modo fantasmagórico – com o barulho seco das máquinas de projecção de filmes. A exposição assume-se como um todo coeso e consistente.

Regressando à ideia da viagem, que, no fundo é a proposta feita também ao espectador. Uma proposta de olhar o mundo tendo como intermediário o artista e a visão que este produz. A ideia de a imagem como ponto de contacto e, por conseguinte, de comunicação estética, historicista, antropológica, até, faz evocar Leon Battista-Alberti e a sua célebre obra De pictura, escrita em 1435, na qual o autor afirma que a pintura — estendamos à imagem num sentido lato —, mediante a utilização da perspectiva linear, matemática, centrada, renascentista — que cria a ilusão de linhas convergentes à distância — seria “uma janela aberta sobre a História”. Na verdade, as obras do Renascimento italiano impuseram ao Ocidente uma linguagem figurativa determinante, nomeadamente pelo uso da perspectiva linear, centralizada, assim como por uma estetização imagética que predominou até meados do século XIX. Os artistas, a seu modo, questionam também o próprio estatuto da imagem, na sua apropriação, na sua integração e desintegração, na sua ironia, na sua luxuriante textura.

Esta bela exposição podia ser um diário de viagem, passível de inscrever em si o tempo e o espaço, de perpetuar vivências, ilustrar visões e estados de espírito, guardar segredos, fixar emoções de que tememos esquecer-nos. Um diário anota o mundo mediado pela visão e pela sua compreensão. Mas um caderno de viagem ou de imagens é também, muitas vezes, a única maneira de não se estar só e de, simultaneamente, construir um simulacro da evasão e vivência, isto é, da própria viagem. Trata-se de uma procura estética, antropológica e fenomenológica, que, num contexto expositivo, é generosamente partilhada. E, já o sabemos, é um modo de fintar o tempo, quer dizer, de tentar enganar a morte.

Alexandre Estrela

João Maria Gusmão e Pedro Paiva

ZDB

 

Isabel Nogueira

(n. 1974). Historiadora de arte contemporânea, professora universitária e ensaísta. Doutorada em Belas-Artes/Ciências da Arte (Universidade de Lisboa) e pós-doutorada em História da Arte Contemporânea e Teoria da Imagem (Universidade de Coimbra e Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne). Livros mais recentes: "Teoria da arte no século XX: modernismo, vanguarda, neovanguarda, pós-modernismo” (Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012; 2.ª ed. 2014); "Artes plásticas e crítica em Portugal nos anos 70 e 80: vanguarda e pós-modernismo" (Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013; 2.ª ed. 2015); "Théorie de l’art au XXe siècle" (Éditions L’Harmattan, 2013); "Modernidade avulso: escritos sobre arte” (Edições a Ronda da Noite, 2014). É membro da AICA (Associação Internacional de Críticos de Arte).

a autora escreve de acordo com a antiga ortografia

 

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Alexandre Estrela e João Maria Gusmão & Pedro Paiva. Vistas da exposição "Lua Cão". Um projecto ZDB. Foto: Lais Pereira. Cortesia dos artistas e ZDB.

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Alexandre Estrela e João Maria Gusmão & Pedro Paiva. Vistas da exposição "Lua Cão". Um projecto ZDB. Foto: Lais Pereira. Cortesia dos artistas e ZDB.

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Alexandre Estrela e João Maria Gusmão & Pedro Paiva. Vistas da exposição "Lua Cão". Um projecto ZDB. Foto: Lais Pereira. Cortesia dos artistas e ZDB.

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Alexandre Estrela e João Maria Gusmão & Pedro Paiva. Vistas da exposição "Lua Cão". Um projecto ZDB. Foto: Lais Pereira. Cortesia dos artistas e ZDB.

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