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António Bolota: Mão-de-Obra

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José Marmeleira

 

Não há espaço, escultura e arquitectura sem ocupação.

                             

Na Culturgest, em Lisboa, encontram-se sete obras de grandes dimensões da autoria de António Bolota. Pesadas, densas, numa tensão silenciosa, mas saliente com o espaço. Algumas barram o caminho ao visitante, outras sugerem percursos inéditos, conduzem a zonas que antes não existiam. O espaço das galerias é reconfigurado, tornado outro, embora não na sua totalidade. É, certamente, ocupado com o peso e a força. Sim, discorre das esculturas uma força, e não apenas, um peso ou um desenho. A força da construção, do trabalho, da fabricação humana, auxiliada por um conhecimento e saber milenares.  Os materiais são reconhecíveis — cimento, pedra, terracota — como também as formas que o artista lhe deu: muros, telhados, passadouros, contrafortes.

 

Intitulada Mão-de-Obra, a exposição tem um cariz antológico e inclui peças novas, reveladoras da continuidade de percurso e a da pesquisa do artista. Também é composta por peças que podem ser designadas de traduções ou versões de peças apresentadas noutros espaços.  É caso da escultura que replica um telhado, reconstituindo aquela que havia sido apresentada na Interpress, ao Bairro Alto, e no Museu do Chiado, em Lisboa. Ou de uma das estruturas, em forma de arco, que “desaparece” no exterior da exposição e cuja primeira versão António Bolota mostrara, em 2011, numa exposição colectiva intitulada Como proteger-se do tigre, integrada na 16.ª edição da Bienal de Cerveira. As duas obras espoletam um conjunto de interrogações que, quiçá irrespondíveis, se colocam ao espectador quando visita Mão-de-Obra (é este o nome da exposição): arquitetura ou escultura? De que disciplina e linguagem se abeira mais? Algumas obras solicitam ao espectador que não apenas ande à volta delas, mas passe por elas, que as percorra, que as atravesse, para poder avançar (ou não). Que entra nelas ou que se descubra nelas. Que possa meditar no e sobre o espaço que elas criam.

 

“Existe espaço sem ocupação? Existe escultura sem arquitectura? Existe escultura sem ocupação?”. Interroga-se, por sua vez, António Bolota.

“Os corpos que observam as peças são também eles elementos da própria experiência artística. É a experiência vivida por cada um que responde a essas perguntas. Existe uma amplitude disciplinar na exposição. Somos surpreendidos por um momento escultórico, num ápice somos transportados para outras disciplinas e outras sensações. Diria que se trata de um acto de descoberta. À medida que andamos, vamos conhecendo a escultura. Os seus abertos, os seus fechados. Os detalhes técnicos, as texturas, a relação com o corpo, o peso, a leveza, o medo. Tenho a impressão que vamos perdendo estes momentos solitários de autêntica descoberta. Tento trazer de novo essas sensações para o presente. Por isso, talvez não faça sentido separar a arquitectura da escultura, mas incluir a construção, a matemática, a história e a antropologia”.

 

Na experiência de certas esculturas, precisamente, pela aproximação à arquitectura e ao movimento físico que ela solicita, coloca-se a hipótese de uma certa sensibilidade cinemática ou até mesmo cinematográfica. Como se o visitante fosse colocado no interior de uma mise-en-scène, feita de abismos e escapatórias, corredores e muros, paredes e passagens secretas. É como se, afinal de contras, o artista nos colocasse de facto, no interior de outros lugares, que sendo os lugares de arte, não são apenas os lugares da arte.

 

“A luz é matéria. Cada peça carrega uma quantidade de luz, que em termos visuais tem peso. Acentua uma ideia de estática e de equilíbrio, cria o contraste de luz/sombra e gera múltiplos espaços”, comenta António Bolota. “As características que compõem cada peça, sabendo que o observador é um elemento central em todas, podem ser responsáveis por construir uma ponte com o cinema”.

 

Uma ponte que, para o artista, pode ser designada involuntária. Se há algo que, a seu ver, pode ser considerado cinematográfico, foi precisamente a montagem da exposição. Reafirme-se: as peças inventam novos espaços, isto é, não se referem apenas a elas próprias. Conduzem o espectador à memória de outros lugares e espaços e à reconstituição de experiências física e mentais tidas ou imaginadas nesses lugares: sob ou sobre um telhado, debaixo de uma cama, sobre ou diante um muro, diante de um canastro. Experiências quase sempre solitárias, por vezes, ansiosas, por vezes benignas. As esculturas levam-nos de volta a elas, sem as imitar, sem com elas se confundirem.

 

“O teu comentário traz à tona uma propriedade interessante. As esculturas parecem comunicar com o observador com um certo grau de abstracionismo, sem nunca se desligarem de uma linguagem acessível, que todos entendem. Isso proporciona uma viagem mental e conceptual similar à experiência que temos a ler um livro. O que está visível são elementos que apenas invocam o que é verdadeiramente importante para cada um. Por isso temos análises tão distintas e tão próprias sobre as minhas peças, embora o que esteja exposto, seja fisicamente tão real e palpável”.

 

Não é apenas o corpo, ou mero corpo, que estabelece uma relação com as obras, mas é igualmente a memória individual do corpo vivido, a conformação singular de cada corpo, as experiências psicológicas, culturais e sociais de cada vida individual, o reconhecimento, pelos sentidos, de outros espaços, lugares, construções, materias, superfícies. O trabalho de António Bolota nesta exposição, como noutras, é objectivamente material, concreto, físico. É táctil e olfativo, resistente e frágil, delicado e bruto. É um produto da mão humana, da construção humana numa altura em que os museus lidam com o digital e a imaterialidade da obra de arte.

 

“É do conhecimento de todos, desde tempos antigos, o papel que o engenho do ser humano tem, no erigir de construções resistentes ao tempo”, medita António Bolota.

“O meu trabalho reforça o quão determinante esse fator é na história humana, questionando o papel do fazer na criação do objecto artístico. A manualidade das minhas obras está presente no processo de construção. Mas essa «mão» não deve constar de uma forma visível no espaço positivo. Contudo, há um lugar para a produção, que é inerente a uma ideia de força e de conhecimento, da mão-de-obra constituída em equipa e uma não hierarquização não autoral nesse processo”.  

 

 

 

A violência e o peso, intrínsecos à fabricação humana, são introduzidos no interior do cubo branco. O artista tece com o espaço um confronto que é físico, material. E, no entanto, pese esse confronto, as peças, feitas e acabadas permaneceriam, durariam tanto como o edifício que as acolhe.

 

“Falas de peso, referiria brutalidade. Estão em causa toneladas, previstas possibilidades mediantes cálculos, que tornam o impossível viável, construções que exigem um planeamento de si próprias. A fisicalidade das mesmas, não se reduz, no meu entender, a uma experiência de funcionalidade e de como funciona. Existe uma abordagem do absurdo, do que é construir in loco algo nestas dimensões, que em alguns casos — por exemplo, o arco de tijolo na entrada — já podia fazer parte do espaço. E concordo, estas peças têm uma resistência ao tempo no que toca à memória. É uma ideia que contrasta com o seu carácter perene, mediante o desmanchar das obras no final da exposição”.

 

Face à materialidade e a resistência das peças, importa ressaltar dois elementos:  o primeiro é a geometria delicada e rigorosa do desenho, em particular na única obra nova concebida especificamente para a exposição, uma estrutura de metal e betão que, em ziguezague, evolve os pilares de corredores, numa levitação impossível. A segunda é a condição quase bidimensional com que algumas peças se dão a ver, na presença da sombra.

 

“O desenho, nessa peça ziguezagueante, convoca, dá a ver vários planos, ao mesmo tempo que congrega uma ideia de um gesto finito. Esse gesto, por via de uma linha sucessivamente interrompida, poderia continuar como a própria linha no espaço. Relativamente à sombra dos objectos escultóricos, essa bidimensionalidade transforma-se, ao invés, em espaço tridimensional. É a sombra que define, muitas vezes, a espessura ou largura da própria peça. Sombra e linha convivem, espessura e gesto coabitam como elementos definidores de forma. A forma convoca-nos a estar presentes e a relacionarmo-nos com as peças inseridas nesse espaço”.

 

Cada peça — já se escreveu — suscita a cada visitante uma experiência diferente. Ele pode passar sob um muro, sob um telhado, contornar um contraforte, ou espreitar para o seu interior — onde, contudo, não se poderá esconder. Pode não descobrir um estrutura ou confundi-la com outra. Seguir a linha da escultura que levita no corredor ou agachar-se e espreitar por baixo da massa circular de betão que repousa sobre uma esfera espelhada. Esta escultura (que tem o título provisório de Bolacha) assinala subtilmente a capacidade humana de fabricar e a nossa também humana pequenez, a nossa insignificância física. O visitante goza ao mesmo tempo a vertigem do jogo, a imaginação violenta do engenho humano e um desenho delicado da arte.

 

“Essa peça pode ser vista como uma metáfora do Homem, mas também dos próprios materiais. Aquilo que eles aparentemente são ou não são. Existem ideias soltas, imprecisas e exageradas acerca dos materiais e das suas capacidades. A engenharia e a construção, e consequentemente a arte e a arquitectura, podem introduzir novas realidades e limites aos materiais. É este engenho e capacidade de superação dos próprios materiais que prova o potencial inventivo e criativo do Homem. Mas diria que a escultura tem de tentar ir além disso. Tem que trazer mais do que aquilo que conseguimos descrever, não é? Essa capacidade humana de fabricar, nesta exposição, também parece ter um maior impacto por contradição com o momento da actualidade em que existe um maior distanciamento das pessoas em relação à fisicalidade, à escala, às texturas e rugosidades dos materiais e das construções humanas. Pelo contrário, essa proximidade conferia um tipo de inteligência material que infelizmente parece tender a desaparecer”.

 

Equilíbrio, brutalidade, força, delicadeza, permanência, espaço, corpo. Mão-de-Obra faz-se com estas ideias que, por sua vez, se tornam tangíveis nas obras. Ao mesmo tempo, abre-se enquanto encenação na qual o pictórico também participa, como acontece na peça final, composta de construções no interior dos quais António Bolota colocou milhões de grãos de areia. O artista chama-lhes gigantes, na construção civil são conhecidos como contrafortes, reforços arquitectónicos de muros, muralhas. Parecem surgir do chão, levantados pela areia que carregam e que escorre, lentamente, das suas fendas. Vistos de um certo ponto de vista no espaço, assemelham-se a tapumes de madeira ou a um veículo informe. Do outro, sugerem, pela sua cor (um amarelo solar), a presença de uma beira-mar, em que o mar desapareceu, para dar lugar à experiência das texturas, das cores, das formas da escultura.

 

António Bolota

 

Culturgest

 

 

José Marmeleira é Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação (ISCTE), é bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) e doutorando no Programa Doutoral em Filosofia da Ciência, Tecnologia, Arte e Sociedade da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, no âmbito do qual prepara uma dissertação em torno do pensar que Hannah Arendt consagrou à arte e à cultura. Desenvolve, também, a actividade de jornalista e crítico cultural independente em várias publicações (Ípsilon, suplemento do jornal PúblicoContemporânea Ler).

 

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

 


 

António Bolota: Mão-de-Obra. Vistas gerais da exposição na Culturgest, Lisboa, 2021. Fotografias António Jorge Silva. Cortesia do artista e Culturgest.

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