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Studio Visit: Fernão Cruz

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João Sousa Cardoso

O Vesúvio nas Olaias

 

O romance familiar

 

Desço na estação das Olaias, com o mais extenso cais da rede do metropolitano de Lisboa, desenhada por Tomás Taveira com o aparato de colunas industriais de pechisbeque e candeeiros arlequinescos, decorada por significativos artistas portugueses (António Palolo, Pedro Cabrita Reis, Rui Sanches, Graça Pereira Coutinho, Pedro Calapez) e aberta ao público no apogeu do pós-modernismo, por ocasião da exposição universal, em 1998. Fernão Cruz tinha então três anos de idade e afirma-se, hoje, como um dos mais promissores artistas da nova geração. A exposição Morder o Pó na Fundação Calouste Gulbenkian (2021) e Insone na Galeria Cristina Guerra (2023) confirmaram o impacto desta obra multiforme, entre a pintura, a escultura e os objetos, brutalista e pop, explosiva e grave, no panorama da arte contemporânea portuguesa.

O estúdio de Fernão Cruz situa-se na rua descendente do metro das Olaias e é para onde me dirijo a pé, numa manhã fria de Dezembro, a poucos dias do novo ano. Fernão Cruz abre-me a porta envidraçada, com o sorriso de menino. Convida-me a entrar numa antiga loja de modestas dimensões, agora ocupada por telas apinhadas e vários corpos modelados em gesso pela sua mão, guiando-me até uma escada furtiva que conduz à ampla cave onde Fernão Cruz divide o espaço de trabalho com outros dois artistas.

Acomodamo-nos no sofá instalado no atelier, tomamos café e prosseguimos, com naturalidade, o nosso diálogo iniciado com a publicação de Quarto Blindado (2021) e continuado depois em Teatro Anatómico (2023), exposição no Centro de Arte Oliva de que fui o curador. Fernão Cruz prepara atualmente uma mostra para o espaço Rialto 6 e uma residência na cidade de São Paulo, depois das anteriores residências no Banana Jam Art Space em Shenzhen (China) em 2017 e na Cité Internationale des Arts em Paris em 2022. 

A conversa estender-se-á com vagar, sem rumo definido, vitalista, prolongando-se num almoço tardio num restaurante popular do bairro. Sobrará tempo para observarmos com atenção um caderno de estudos preparatórios a caneta preta das obras para a próxima exposição, as pequenas telas dispersas pelo estúdio que acumulam a tinta em excesso (Fernão Cruz compara-as às pedras coloridas onde Michael Biberstein limpava os pincéis enquanto eu recordo os globos de fita descolada das telas pelo Ângelo de Sousa tornados esculturas imprevistas), as fôrmas e outros materiais intermediários no processo oficinal da modelagem anatómica dispostos em prateleiras (a que o artista lança mão) entre dezenas de cartões de ovos empilhados, peças em papier maché conservadas de projetos passados, a figura de um macaco pendurada na grelha metálica da janela elevada ao nível da rua, uma maquete da escultura Órfão (2023) que integra a exposição Insone, papéis diversos com esboços e anotações afixados nas paredes, fotografias dos corpos carbonizados de Pompeia e outras imagens da escultura clássica, um escadote salpicado de tinta (parte de uma peça previamente exposta), baldes de cola branca, uma camisola escura e um par de calções desportivos de cor verde embebidos em resina que ficaram a secar sobre um plástico disposto no chão e aguardam o seu lugar no grande teatro de corpos amputados e objetos comuns em que se compõe o universo cáustico de Fernão Cruz.

Mas de onde nasce este reportório desconcertante de figuras que desfilam num tenso funambulismo entre o cómico, o grotesco e a violência de gume afiado? As formas de Fernão Cruz emergem seguramente do persistente enfrentamento (psicanalítico, poético e abrupto) dos fantasmas da primeira infância que ensombram a consciência e a maturidade. O trabalho do jovem artista revisita obcessivamente os episódios traumáticos do romance familiar (a  competição com o pai, o vínculo à mãe, as hierarquias simbólicas, a casa) no ensaio da abolição dos medos e no destilamento da solidão pelo gesto transformador da angústia. 

Em Fernão Cruz o furor oficinal marcado pela metódica experimentação dos materiais – excedendo a escala manual, no experimento que implica todo o corpo – é uma caterase do eu no exercício da reescrita das narrativas íntimas, condensadas em formulações sintéticas e satíricas. O autor recombina os elementos disformes (agigantados ou em miniatura), recordando as criaturas de Thomas Schütte, num concerto inusitado que suscita a perplexidade, um sorriso, a esconjura ritualística dos demónios. Uma das peças previstas para a exposição no Rialto 6 traduz justamente a intransigência deste ímpeto de profanação dos elementos totémicos e a dessacralização do patriarcado, instalando o molde da cabeça do pai no interior do tambor de centrifugação de uma máquina de lavar roupa. O espírito lúdico e o humor negro desempenham a sua parte ativa nos ciclos deste teatro da crueldade.

 

Fernão Cruz, Insone. Vista da exposição (pormenor) na Cristina Guerra Contemporary Art, Lisboa, 2023. Foto: Vasco Stocker Vilhena. Cortesia do artista e Cristina Guerra Contemporary Art.

O corte e a montagem  

 

Continuador da tradição da assemblage, Fernão Cruz parte — numa aritmética duchampiana — da cisão drástica dos elementos extraídos ao seu contexto original e a uma funcionalidade específica, para acordar os objetos isolados e os fragmentos em novas constelações semânticas e narrativas surrealizantes. O corte como gesto fundamental na retribalização dos símbolos em Fernão Cruz, resulta, aliás, indissociável da prática da colagem, do continuum do fluxo de pensamento (que aspira à suspensão das censuras) e do pensamento associativo da imaginação (com as suas elaborações visuais anteriores ao trabalho de racionalização).

Ao mesmo tempo, esta obra explora a ambiguização entre os materiais instáveis (o cartão, a corda, as luvas, as franjas duma esfregona, etc) e o trompe l’oeil (com a rigidificação da matéria imersa em resina ou submetida ao processo de fundição), afirmando o carácter definitivo daquilo que aparentava as qualidades do transitório produzindo uma colisão sensível entre a perceção visual e a realidade física dos corpos. Assim, as maquetes acartonadas para o estudo de pequenas fantasias arquitetónicas ou cenografias meta-teatrais (Casa Vazia, 2019; Esconderijo, 2020; Prisão Perpétua, 2021) revelam-se, a um segundo olhar, volumes maciços irredutíveis, fundidos em metal. 

 

Esconderijo
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Fernão Cruz, Esconderijo (2020), Prisão Perpétua (2021), Casa Vazia (2019). Fotos: Bruno Lopes. Cortesia do artista e Cristina Guerra Contemporary Art.

 

Aos desafios de perceção que confundem a fronteira entre a precariedade e a solidez, não será alheia a questão da economia na trama das relações simbólicas. As coisas de uso corrente e os materiais pobres entrecruzam-se com processos de fabrico dispendiosos e materiais nobres consagrados pela história da arte como o bronze. O trabalho comporta, inevitavelmente, uma reflexão sobre a noção de valor e o sistema do mercado (da arte, mas não apenas), recuperando os princípios da alquimia que investiga a transmutação das substâncias metálicas na perseguição da fórmula do ouro que não seria, nas oficinas da idade média, senão a metáfora limpa da sabedoria por oposição à pedra bruta do obscurantismo. 

As encenações de Fernão Cruz na escultura (recobrindo objetos preexistentes como a cadeirinha de bebé que pertenceu ao artista) tomada pela lógica barroca (o equívoco dos sentidos na imitação sensual das matérias e na floresta habitada por entes que comparei — noutro contexto — à memória do quarto dos brinquedos e à paisagem mineral da cidade dos mortos) desdobram-se na prática da pintura cumulativa, produzida pela adição de camadas e o empastelamento da tinta (por vezes, aplicada diretamente do tubo), numa sobreposição de padrões, motivos e gestos, demonstrativa de virtuosismo técnico, onde prevalecem os efeitos da camuflagem. E o sucessivo encobrimento das figurações lúdicas, obscenas e escatológicas, presentes mas parcialmente ocultas, enfatiza a densificação plástica e a opacidade duma poiesis no tempo, recordando a derisão pretensamente circunspecta de outro pintor mordaz que é Eduardo Batarda, e que (sem se lhe referir) Fernão Cruz não ignora. 

A recusa da permanência e o elogio da transitividade surgem insistentemente em relações espaciais ou de poder, laços que agrupam e oprimem, grades e paredes cegas de tijolo, escadas ascendentes e saídas de emergência, na evocação de ritos de passagem ou no trânsito idealizado entre mundos (como a exposição Morder o Pó se organizava entre um espaço de vida e um espaço post mortem) e em múltiplos atravessamentos (no gesto muscular da pincelada que percorre a tela, por exemplo), coincidindo com o próprio método criativo de Fernão Cruz, no desenvolvimento simultâneo de séries de trabalhos (que nunca concebe isoladamente) e na permanente circulação entre campos disciplinares.  ​​

 

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Fernão Cruz, Morder o Pó. Vistas gerais da exposição no CAM Fundação Calouste Gulbenkian. Fotos: Bruno Lopes. Cortesia do artista e CAM Fundação Calouste Gulbenkian

 

Mas se a pintura de Fernão Cruz se distinguia pelos recursos da neofiguração pop (sob a influência de David Hockney ou Philip Guston) onde prevalecia o entendimento da figura humana como manequim anatómico, marioneta de teatro ou crash test dummy — na coisificação perversa do corpo e do bios —, na exposição Insone, em contrapartida, o anterior vocabulário de formas antropomórficas (a par dos pictogramas e do texto escrito) revela-se ausente.

A pintura de grande formato evacuou todas as figuras reconhecíveis, remetendo para a microscopia das redes neuronais e a experiência táctil sumária enquanto recupera os ardis do materialismo impressionista, a paleta do fauvismo, a gestualidade do expressionismo abstrato (o artista é um admirador confesso do tachismo de Georges Mathieu na implicação absoluta do corpo no ato de pintar), o informalismo de Francis Bacon, além da evidente filiação na bad painting (com as texturas de Sigmar Polke à cabeça) e na pattern painting que sacudiram as convenções do artworld nos anos 80, parodiando a futilidade, a vacuidade do decorativismo e o oportunismo do comércio. A série de vinte e uma telas acompanhadas pela escultura Órfão que ocupa o centro de gravidade da instalação na Galeria Cristina Guerra (e resgata as possibilidades narrativas) constituem seguramente a montagem calculada de “uma gesamtkunstwerk, uma obra de arte total (...), uma ópera” como descreve o ensaísta americano Paul Laster no texto que assinou para a exposição. Mas é invariavelmente da teatralização dos objetos, do trágico e da fatalidade dos corpos que a obra transversal de Fernão Cruz invariavelmente trata. 

Memento mori

Se na natureza morta — género pictórico autonomizado com o gosto burguês no período barroco —, a celebração da vitalidade comporta inescapavelmente a ameaça dissimulada dos insetos sobrevoando as pétalas e os frutos maduros, denunciando a presença latente do dano no seio da exultação dos sentidos, da beleza e da abundância material (fazendo coincidir o elogio da autoridade, a doutrina moral e a crítica de costumes), também em Fernão Cruz os sinais da finitude rondam a extroversão da vida pura. Em trabalhos como Aceitação. Despedida (2020) onde um cisne levanta voo transportando o roupão do avô desaparecido ou O Atirador de Facas (2023) que descreve o lançamento de um guarda-chuva em bronze contra uma tela pintada a óleo, a desolação é manifesta. A série prevista para a exposição no Rialto 6 é precisamente um desenvolvimento de O Atirador de Facas, concentrando o realismo da figuração em volumes atirados com violência contra a superfície da abstração pictórica.

 

Fernão Cruz, O Atirador de Facas (2023). Foto: Bruno Lopes. Cortesia do artista e Cristina Guerra Contemporary Art.

 

Mas entre uma miríade de referências eruditas e vernaculares da cultura estética, existe um trauma primitivo em que talvez tudo entroque: a descoberta por Fernão Cruz das imagens dos corpos carbonizados pela erupção vulcânica do Vesúvio no século I da nossa era que, expelindo lava, gazes e uma chuva de cinzas, recobriu a cidade romana de Pompeia, desaparecida por quase dois mil anos.

Nas escavações modernas que devolveram a cidade antiga à visibilidade, os corpos das vítimas só se tornariam percetíveis por via da injeção de gesso no espaço oco deixado pela carne consumida pelo tempo na lava petrificada, conforme as técnicas da arqueologia descritas no filme Viaggio in Italia (1954) de Roberto Rossellini. O cineasta do neo-realismo regista com exatidão documental a descoberta de dois cadáveres de mão dada (um casal, deduzem os escavadores), numa evidente meditação sobre o negativo e o positivo – aludindo antes de mais à impressão cinematográfica em negativo na película que depende da revelação em positivo na cópia —, o molde e a forma, a coisa e o seu reflexo, a vida e a morte. Os habitantes de Pompeia surpreendidos pela morte fixaram o instante decisivo da queda fatal — como a figura caída das alturas em Falling on Stage (2021) de Fernão Cruz, se mantém suspensa no vazio do palco –, a petrificação de estados de alma exaltados, a expressão radical do fim, a imagem suspensa do luto. Como Órfão reproduz a partir de impressão 3D o corpo nu do artista num autorretrato à escala real, deitado no chão, desfalecido, imperturbável e totalmente recoberto de cinza, na alusão aos cadáveres calcinados de Pompeia. 

Fernão Cruz confidencia, no final do nosso encontro, a paz que estas fotografias dos mortos de Pompeia lhe inspiram no lugar íntimo do trabalho quotidiano. “São como a caveira pousada na mesa de estudo, diante do filósofo.” ocorre-me. A convivência com a realidade imparcial da condição terrena desdramatiza o impasse das encruzilhadas domésticas. Memento mori. 

Na cave deste edifício nas Olaias, um autor vulcânico procura gerir a aclamação pública, a exposição mediática de uma personalidade em construção e o longo curso feito de triunfos e recolhimento que o jovem artista pressente, sem entraves e enigmático, diante de si. Fernão Cruz detém a curiosidade intacta e a convicção que permitirão todas as bifurcações necessárias na evolução de uma obra capaz da projeção da autorreferencialidade, dos arquétipos familiares e da iconoclastia no horizonte desimpedido da grande experiência funesta e coletiva a que, até ao termo do século passado, se chamou história. Ciente da brutalidade imprevisível das forças naturais (a descarga de energia, o eros, a choque são motivos recorrentes nesta obra) como dos riscos políticos (a camuflagem é uma estratégia enganadora de sobrevivência) adensados por velhas sombras  do ressentimento cultural que sempre rondam, cismam e roem, Fernão Cruz tem o sangue febril e divergente dos napolitanos e — no novo século pós-digital com o seu fluxo transbordante de imagens horizontais — é um Vesúvio tremendo entalado no coração das Olaias.

 

 

Fernão Cruz

 

João Sousa Cardoso é Doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Paris Descartes [Sorbonne]. Defendeu a tese L’imaginaire de la communauté portugaise en France, à travers les images en mouvement [1967–2007], orientada pelo sociólogo Michel Maffesoli. Integrou o Centre d'Études sur l'Actuel et le Quotidien da Universidade Paris Descartes. Foi bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian entre 2005 e 2009. Encenou Sequências Narrativas Completas, a partir de Álvaro Lapa, com estreia no Teatro Nacional D. Maria II, em 2019. Dirigiu o TEATRO EXPANDIDO!, no ano de reabertura do Teatro Municipal do Porto, de janeiro a dezembro de 2015, projeto que atravessou a dramaturgia do século XX, levando à cena 11 peças em 12 meses. Publicou os livros Sequências Narrativas Completas [prefácio de António Guerreiro] e A Espanha das Espanhas [prefácio de Jacques Lemière] pela Book Cover, em 2020. Professor na Universidade Lusófona. Escreve regularmente ensaio para o jornal PÚBLICO.

 

 

Outros artigos sobre o artista:

 

Teatro Anatómico por Cristina Robalo

Fernão Cruz: Morder o Pó por Luísa Salvador

— It’s a date: Fernão Cruz por Alberta Romano

 

 

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Fernão Cruz, Insone. Vistas da exposição na Cristina Guerra Contemporary Art, Lisboa, 2023. Fotos: Vasco Stocker Vilhena. Cortesia Cristina Guerra Contemporary Art.

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Vistas gerais da exposição Teatro Anatómico no Centro de Arte Oliva. Fotos: Dinis Santos. Cortesia Centro de Arte Oliva.

 

Notas:

[1] Quarto Blindado, de Fernão Cruz, com curadoria de Marta Mestre, Centro Internacional das Artes José de Guimarães, Guimarães, de 15 de Abril a 5 de Setembro de 2021.

 

[2] Teatro Anatómico, a partir da Coleção Treger Saint Silvestre, com André Sousa, Fernão Cruz e Horácio Frutuoso, com curadoria de João Sousa Cardoso, Centro de Arte Oliva, São João da Madeira, de 4 de março de 2023 a 28 de janeiro de 2024.

 

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