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Teatro Anatómico no Centro de Arte Oliva 

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Cristina Robalo

uma conversa em tom menor com João Sousa Cardoso

  

O teatro anatómico é o melhor exemplo de como apinhar estudantes numa sala. Num funil afilado e alto, os ouvintes são dispostos em camadas sobrepostas. Olham quase a pique para o bocadinho de chão em que está a mesa, sobre a qual não cai luz, pelo que o professor tem que fazer as suas demonstrações à luz de lamparina.

 

Viagem a Itália, Goethe

 

Na conferência “Modern Art and Art Brut: Anatomy of a misunderstanding”, proferida por Catherine David, no Centro de Arte Oliva, em São João da Madeira, a propósito da exposição Teatro Anatómico, a historiadora e curadora alertou para a necessidade da desconstrução de categorias utilizadas para distinguir arte bruta, ou outsider, da arte moderna e trabalhar na sua inclusão. Tendo como consideração a linha que anteriormente separava e distinguia arte bruta de arte moderna, actualmente, estar a dilatar-se numa “aceleração da definição de fronteiras”, através de instituições específicas, de galerias, do mercado, inclusive dos autores — antes sem autoria — vindos da denominação ‘arte bruta’, cujos trabalhos tanto podem aproximar-se de um campo como do outro. Nesse sentido, as palavras ‘desconstrução’ e ‘inclusão’ ditas por Catherine David são reveladoras e pertinentes, indo ao encontro do trabalho concebido pelo curador da exposição.

Com um Doutoramento em Ciências Sociais na Universidade Paris Descartes (Sorbonne), um profundo interesse por Etnologia, Sociologia, Antropologia e, sobretudo, com um trabalho artístico em cinema e em teatro, João Sousa Cardoso percorreu, durante dois anos, a colecção de arte bruta, reunida desde os anos oitenta por Richard Treger e António Saint Silvestre, agora conservada no Centro de Arte Oliva, com o objectivo de criar uma nova exposição temporária. “Como o visitante num jardim botânico”, onde várias espécies convivem no mesmo território, João Sousa Cardoso, entre mais de mil obras de arte bruta, escolheu aquelas que lhe murmuraram baixinho e que ressoaram a “uma espécie de tom menor”; ao invés das obras que soam mais alto. Seguindo o murmúrio das vozes menos acentuadas, a sua premissa inicial foi “desvelar linhas de fuga a partir do próprio corpus da colecção”, abrindo-a, ampliando-a e cruzando-a com obras de arte contemporânea. Preservando conversas que já vêm detrás — como a arte dita popular, a sua paixão por Bertolt Brecht, o cinema de Manoel de Oliveira —, sejam elas no seu percurso teórico ou artístico, João Sousa Cardoso continuou a alimentá-las na construção de Teatro Anatómico. O seu desejo de cruzar e entrelaçar saberes explora, mais uma vez, o constante e persistente diálogo que, agora, se desdobra e se multiplica, desvendando uma paisagem. Atravessada e acrescentada pelas mãos dos artistas — André Sousa, Horácio Frutuoso e Fernão Cruz —, ela acolhe a formação de uma singular constelação.

André Sousa produz uma enorme cortina preta de plástico. Nela lêem-se, aqui e ali, pictogramas desenhados a linha de cor branca que, através de traços, riscos ou garatujas, apontam as iniciais dos nomes dos artistas associados às obras. Constituído por corredores, que se bifurcam em lugares de refúgio e de esconderijo, com várias possibilidades de entradas e de saídas, o espaço é ampliado pela cortina, criando uma inquietante ligação entre revelação, ocultação e suspensão. As obras expostas, iluminadas por uma luz quente, baixa e envolvente, convivem e conversam entre si: escuta-se o ‘já-não’ do corpo e o ‘ainda-não’ da paisagem. O trabalho de Horácio Frutuoso acompanha esta inquietante ligação com seis pinturas (2019-2023), em que a figura humana evoca, através da sua postura, obras de arte religiosa: “Há uma ideia de verticalidade num movimento que pode ser de ascensão ou de queda, como se estivessem [as figuras] num lugar de confronto entre uma dimensão terrena e uma dimensão espiritual; há uma dualidade entre duas forças num movimento de contenção, medição, afronta ou defesa.” Fernão Cruz estava já a trabalhar nas suas esculturas em papier maché quando foi convidado a participar em Teatro Anatómico, potenciando o trabalho a “entrar num universo mais bizarro – da fragmentação, do escuro, do abismo, do nonsense.” Pai, Manhã de Ressaca, O Malabarista Anestesiado, Entulho e Abismo, falam do corpo, da paisagem, de situações físicas e/ou de tensões que remetem para a “ideia de só conseguirmos ser nós próprios.”

Os trabalhos destes artistas não pretendem estabelecer uma relação com arte bruta, não era essa a premissa; mas é preciso referir que conversam uns com os outros, mantêm um diálogo de confronto e um diálogo de expansão, convivem no mesmo espaço, criando uma ressonância de territórios. E, contudo, não obedecem à classificação científica, por isso não estão identificados. A ausência do nome, da identificação de autorias, ausculta-se nos pictogramas a branco num jogo labiríntico entre grafia e desenho. Não sabemos quais são as peças realizadas pelos artistas de arte bruta e quais são as que pertencem aos artistas vindos da arte contemporânea. Desconfia-se! A experiência é física, pertence ao corpo que, durante o percurso, na obscuridade, se desvia, choca, é convocado a aproximar-se e a retrair-se, descobre, na sombra e na luz, uma voz clara, radical, em “tom menor.” Como num ritual em que o xamã, ora grita, ora, no silêncio, evoca a cura, aqui, o xamã ou o “maestro” conduz o som, a cena, o palco, os actores, num plano cinematográfico em direcção a um “entre-mundos” que permanentemente necessita de revelação para continuar. Convém não esquecer que Teatro Anatómico não é somente uma exposição, é a composição de uma viagem em que o ‘já-não’ e o ‘ainda-não’ se confrontam num tempo de suspensão.

 

 

Cristina Robalo (CR): Teatro Anatómico estabelece uma conversa entre a colecção de arte bruta Treger Saint Silvestre e três artistas contemporâneos. Qual é a costura que fizeste para tecer as obras umas com as outras?

 

João Sousa Cardoso (JSC): Fui convidado a pensar a colecção de arte bruta Treger Saint Silvestre na curadoria de uma nova exposição. Como a minha reflexão se desenvolve no cruzamento entre os campos disciplinares e as temporalidades, entre as artes e as ciências sociais, este olhar guiaria naturalmente a minha leitura da colecção.

 

CR: Que olhar foi esse?

 

JSC: Procurei não me cingir a uma análise da colecção no campo estrito da arte bruta mas desvelar linhas de fuga a partir do próprio corpus da colecção, podendo ela ser iluminada, informada e activada por três contributos vindos da arte contemporânea: a escultura do Fernão Cruz, a pintura do Horácio Frutuoso e uma obra à escala da exposição do André Sousa. Procurei que a colecção fosse reavaliada à luz dos debates actuais sobre o corpo e a violência a partir de renovados corredores de circulação iconográfica.

 

CR: A colecção Treger Saint Silvestre é uma das maiores colecções particulares de arte bruta na Europa. Em que moldes baseaste as tuas escolhas?

 

JSC: A colecção caracteriza-se por uma densidade notável! Eu propus-me atravessá-la como o visitante num jardim botânico e deter-me nas obras que me interpelassem pela economia formal, pela contenção expressiva, por uma espécie de tom menor. O desenho pulsional característico de alguma arte bruta, os objectos mais sobrecarregados e as práticas de catarse não eram uma prioridade. Preferi justamente obras que, integrando uma colecção de arte bruta, preservassem um estatuto híbrido. São obras inscritas no campo da arte bruta como noutros campos de conhecimento associados a outros quadros de classificação e a outros reportórios, como o hospitalar  — nalguns casos —, ou o etno-sociológico.

 

CR: Gostaria de perceber o que é um “tom menor”.

 

JSC: Chamo “tom menor” à forma que contraria a força da certeza — que existe na arte bruta como na arte contemporânea — e a obrigação em cumprir, com espectacularidade, a satisfação imediata do espectador. Quando me dediquei à colecção, atraíram-me os objectos discretos que discorrem em surdina, que murmuram, partilhando entre si uma economia de meios que escapa à estereotipia romântica da arte do louco, da criança ou do selvagem. Ocuparam-me exactamente os objectos ambíguos e a sua disponibilidade para uma leitura dialéctica entre a arte legítima e a arte outsider.

 

CR: Como é que o processo de selecção foi feito?

 

JSC: Orientei-me por uma relação imediata com cada objecto. O processo não foi de estudo biográfico dos autores ou de abordagem historicista dos trabalhos, seguindo antes uma escolha apoiada na observação, na reflexão formal e na relação estética com as obras.

 

CR: Já tinhas trabalhado com arte bruta?

 

JSC: Não concretamente com arte bruta, mas trabalhei em repetidas ocasiões com práticas criativas anónimas e manifestações da arte popular. Para a exposição Às Artes, Cidadãos!, no Museu de Serralves (2010), desenvolvi um trabalho de campo com um rancho folclórico, ao longo de um ano, com o qual havia colaborado dez anos antes, e que resultaria um ensaio sociológico sobre essa comunidade — Romaria da Autogénese. A arte naif, a expressão popular, a alteridade cultural e as subculturas, as formas não legitimadas de produção estética acompanharam desde sempre o meu percurso. Portanto, este convite da Andreia Magalhães [Directora do Centro de Arte Oliva] liga-se ao conhecimento do meu itinerário intelectual com um reiterado interesse pelo avesso das artes.

 

CR: Esse “avesso das artes” relaciona claridade com obscuridade?

 

JSC: Está relacionado com a vocação em trazer as zonas de sombra ou o silêncio à consciência e ao seu reconhecimento político em novas representações.

 

CR: Há também um interesse do ponto de vista sociológico?

 

JSC: A minha visão sobre a colecção Treger Saint Silvestre comportaria necessariamente estas dimensões — antropológica, etnográfica e sociológica —, porque é a cartografia orientadora da minha reflexão estética.

 

CR: Os artistas contemporâneos, Horácio Frutuoso, Fernão Cruz e André Sousa, foram uma escolha por analogia, oposição e/ou argumentação com as obras de arte bruta? Quais foram os critérios para esta selecção e para este diálogo?

 

JSC: Antes de mais, como encenador de teatro ou cineasta, procurei sempre dar continuidade a conversas mantidas com os actores e os artistas. Tenho-os por companheiros de jornada. O André Sousa colaborou comigo em dois filmes — A Santa Joana dos Matadouros (2014) e co-realizou Na Selva das Cidades (2017) rodado em São Paulo — ambos adaptações de Bertolt Brecht; e concebeu a cenografia de Sequências Narrativas Completas (2019), criação a partir de Álvaro Lapa, estreada no Teatro Nacional D. Maria II. É, assim, uma conversa que evolui a partir do cinema e do teatro para as artes visuais. O Horácio Frutuoso mostrou-se sempre atento ao meu trabalho e eu ao dele. Foi, por exemplo, o embaixador de Sequências Narrativas Completas, na apresentação com o Tiago Rodrigues da temporada 2018/2019 do TNDMII. À obra do Fernão Cruz, por último, havia dedicado recentemente um texto O Despertar da Primavera, integrado na publicação da exposição Quarto Blindado no Centro Internacional das Artes José de Guimarães (2021).

 

CR: A costura, a que me referia inicialmente, surge então de um tecido anterior que vai sendo rematado?

 

JSC: Absolutamente: com o André Sousa a conversa vem de longe, com o Fernão Cruz é mais recente e com o Horácio Frutuoso mantinha uma continuada cumplicidade. A escolha, ou essa costura agrega os continentes, reunindo a pintura, a instalação, a escrita e a temática do corpo numa manifesta alusão ao teatro.

 

CR: O trabalho de André Sousa desencadeia um percurso labiríntico, através da ampla, negra e brilhante cortina, que nos acompanha dentro do espaço e, sem dúvida, abraça a exposição. Como é que este processo ganhou forma?

 

JSC: Logo na primeira conversa, o desafio que lancei ao André foi o seguinte: “Vamos retomar a cortina!” Trata-se de uma cortina de plástico elevada na sequência final do filme Na Selva das Cidades e que o André recuperou na cenografia do espectáculo Sequências Narrativas Completas. Agora, queríamos não uma cortina translúcida como no filme, que remete para o teatro de sombras da China antiga, nem branca como no teatro, que evoca a tela de cinema, mas uma cortina negra de escala industrial que envolvesse a totalidade da exposição: uma espécie de teatro negro, uma câmara ardente e um lugar de luto.

 

CR: Observei que seleccionaste vários trabalhos de cada um dos autores. Esta proposta permite fixar uma história, uma narrativa, ou pretende criar relações de conflito entre obras?

 

JSC: A exposição promove tensões formais, semânticas e poéticas, mas procurei — e fico satisfeito se for inteligível para o espectador —, uma relação de paridade, em termos numéricos e de relevância, entre as obras de arte bruta e as de arte contemporânea, com diversos núcleos dedicados ao mesmo autor. À medida que atravessamos a exposição, ela vai-se revelando nas obras de arte bruta e nos trabalhos do Horácio Frutuoso ou do Fernão Cruz. Ao longo do percurso circulamos entre os dois territórios de contágio como planos da mesma realidade.

 

CR: São essas tensões que também acentuam um “tom menor” à exposição?

 

JSC: É um diálogo tensional, seco e com linhas de fractura. Procurei evitar o entendimento da arte bruta como uma produção carregada de pathos. É frequente as obras, como a própria constituição de uma colecção de arte bruta, enfermarem de uma certa pulsionalidade. Construí um olhar arrefecido sobre a colecção, que colocasse em valor os objectos mais preciosos e perturbantes do seu corpus. Evitei o que habitualmente associamos ao patológico e à catarse da arte bruta. E a partir desta premissa, identifiquei trabalhos evocativos da arquitectura, da performance e de ritos mágicos controlados ou palcos de pequenos teatros onde a consciência do artista relativamente aos efeitos da encenação se revela distanciada. Nas obras escolhidas, o que me interpela é a dimensão artesanal, autodidacta, a pulsão de morte, uma certa angústia existencial que ali está contida mas cifrada.

 

 

 

 

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CR: Essa dimensão surge na encenação que criaste, não só no espaço denso e negro, mas também, e sobretudo, na luz. Ora presente, ora ausente. As peças são mostradas na parede, depostas no chão e suspensas no tecto! Esta ‘outra’ conversa entre espaço, luz, suspensão, quer apanhar o tempo? Há um desejo de o congelar?

 

JSC: Exactamente. A questão da temporalidade complexa é central. A respiração entre a gravidade e a suspensão, entre o peso da matéria e a levitação, instala o ritmo próprio deste Teatro Anatómico. Antes de tudo, a respiração é materializada pela cortina! E prolonga-se nos fantasmas, nas sombras, em potências que parecem escapar à força da materialidade. Ao mesmo tempo, assistimos a momentos de abatimento. Na sala central confrontamo-nos com uma paisagem de guerra, com corpos caídos no chão, mortos jacentes! A exposição, propositadamente labiríntica, é uma floresta onde o espectador se perde, escolhendo passagens e ensaiando perspectivas de conjunto. O desenho de luz que referes é importante: a intensidade da iluminação foi reduzida a um mínimo de luminescência como um freio à percepção imediata, incitando o espectador a uma aproximação gradual, solicitando um redobrado investimento e convidando a uma participação física na experiência da exposição.

 

CR: Como é que surgiu essa “paisagem de guerra” que referiste?

 

JSC: Desde a génese do projecto, uma reflexão sobre a guerra e, em particular a guerra na Europa, impunha-se pela actualidade política. O conflito entre a carnificina, a carne e a cura constituiu um eixo fundamental de toda a exposição.

 

CR: Os trabalhos descobrem-se no espaço, não só na relação de escalas, mas no modo como se revelam. Por exemplo, há duas pinturas, do Horácio Frutuoso, escondidas atrás da cortina preta. A ligação, entre lugares de esconderijo e dimensões de obras, salienta ainda mais os elementos de tensão e o próprio diálogo.

 

JSC: São as qualidades fundamentais do teatro: a ocultação e a revelação! A cortina da tradição do teatro separa o que é espaço de representação e o que é da ordem do bastidor, a cena e o obsceno. Há momentos da exposição em que reconhecemos a enfatização da teatralidade. Por isso, essas pinturas, do Horácio Frutuoso, se encontram no chão, depostas, como se tivessem sido retiradas de exposição, ou aguardassem a fixação na parede, a disposição convencional da pintura. As telas encontram-se num impasse ou no momento incerto que, para mim, é a pedra de toque de toda a história das imagens. As imagens densas descrevem o instante de uma metamorfose entre o ‘ainda-não’ e o ‘já-não’, o estado propiciatório do acontecimento e o lastro da ocorrência!

 

CR: É uma questão filosófica? O ‘ainda-não’ da paisagem e o ‘já-não’ do corpo ou vice-versa?

 

JSC: É uma questão filosófica. O entre-mundos, o espaço intersticial, o inframince do Marcel Duchamp. A exposição convoca o teatro que lida justamente com as condições de visibilidade e a projecção do imaginário.

 

CR: Falaste na morte, mas o desejo de congelar o tempo dentro do espaço, como se ele estivesse suspenso e também se diluísse, torna o sofrimento numa sensação do presente. E para mais há uma espécie de batalha destacada na ambivalência das ligações: escondido/descoberto, grande/pequeno, alto/baixo, suspenso/caído...

 

JSC: É interessante o que apontas: o sofrimento! Vejo-o no palco de guerra e nos desenhos de sacrifício animal no matadouro da artista iraniana Alireza Maleki —remetendo para o filme A Santa Joana dos Matadouros, integralmente rodado no antigo Matadouro Industrial do Porto —, na anatomia dos corpos decapitados, amputados e esquartejados do Fernão Cruz ou ainda na pintura do corpo deposto de Horácio Frutuoso que evoca o episódio bíblico da descida da cruz. Mas o choque de escalas é intensificado pela dureza do chiaroscuro, que me chega tanto dos tenebristas do barroco espanhol como da escrita de Bertolt Brecht. Brecht é um grande poeta do século que ensina a construir a tensão na sensação do espectador. E que Jean-Luc Godard recupera na definição da montagem cinematográfica: “uma imagem/ não é forte/ quando é brutal/ ou extravagante/ mas quando/ a associação entre as ideias/ é longínqua/ e justa.” As imagens não podem ser opostas, sob pena de se anularem mutuamente; mas devem suscitar uma tensão cortante e inimaginável. É o ágon herdado do mundo grego, ilustrado no jogo entre o ponto e o contraponto da estatuária clássica. Depois podemos reencontrá-la na luta de classes, na relação entre vida e morte, na transcendência e na imanência. Só podemos pensar uma face em função da outra face da moeda! E na circulação permanente, compreendemos o trânsito que escapa ao sistema binário e à captura ideológica, uma corrente vital de que nós artistas, curadores e pensadores somos íntimos. 

 

CR: O primeiro Teatro Anatómico surge em Pádua e foi descrito por Goethe em Viagem a Itália. Aí, faziam-se demonstrações de anatomia, ou dissecação de cadáveres para os estudantes de Medicina. Foi este ambiente, aliado à descrição de Goethe, que provocou em ti um desejo de dar corpo a esse espaço, de certa forma encenado?

 

JSC: Ler Viagem a Itália com os estudantes na universidade, em particular o episódio do Teatro Anatómico, em Pádua, ligado ao facto de o ter visitado só recentemente, anos depois de estudar o livro em aula, fez com que a exposição incluísse, além do cruzamento de saberes, uma poética da viagem. Goethe é um mestre no esbatimento da fronteira entre natura e cultura. Associando a meteorologia, a botânica, a geologia, a obra de arte na catedral ou no museu, os códigos vestimentares, a géstica e a linguagem vernacular da rua, Goethe lê a tessitura das trocas que compõem uma sociedade. O Teatro Anatómico é uma sala de aula que problematiza a universidade e onde a interdição da dissecação de cadáveres imposta pela igreja foi superada. Com todas as suas camadas — o atordoamento dos sentidos pela luz ténue, o odor do cadáver, o oxigénio saturado pela combustão das velas e pela respiração do ajuntamento de estudantes num espaço exíguo — recorda uma experiência do ensino distinta da academia nos nossos dias.

 

CR: Ao branco? À ideia de limpeza e de claridade?

 

JSC: Muitos achamos que uma sala de aula, ou uma exposição de arte contemporânea devem respeitar o ambiente purista do modernismo. Mas a percepção e a observação podem ser instigadas pela perturbação dos sentidos, intensificando inclusive o espírito de curiosidade, a capacidade da concentração e a exigência.

 

CR: A escolha do nome para a exposição é uma homenagem a Goethe, ou é mais outro diálogo?

 

JSC: É uma conversa com Goethe, com a minha relação antiga com Itália e com os meus materiais de estudo na universidade.

 

CR: No teu trabalho, de cinema e de teatro, o texto parece-me ser o mais relevante: o acto de dissecar, de desdobrar, de expor as palavras. Em Teatro Anatómico não há um texto mas as obras encontram um lugar de eco.

 

JSC: No cinema ou no teatro, o texto oferece-se como o centro de gravidade para processos criativos radicalmente abertos. Os actores que trabalharam comigo conhecem a vertigem de trabalharmos juntos, pelo que o texto me traz um núcleo duro que garante um chão. A exposição não tem um texto por trás, mas a colecção é o corpus que me antecede e de que parto como um núcleo duro. Mas, contrariamente à metodologia em teatro e cinema – onde cumpro o texto na integralidade —, aqui, fiz um trabalho de selecção, identificando o que considero o ouro substancial — e subtil — da colecção numa montagem rarefeita de artefactos.

 

CR: De onde vem o aspecto teatral na relação das obras com o espaço?

 

JSC: É o mesmo entendimento do teatro brechtiano no cinema de Manoel de Oliveira. Sou um oliveiriano de formação: devemos ver a personagem e o actor ao mesmo tempo ou cada vez mais o corpo do actor sob o pretexto da ficção. As obras, aqui, são os meus atores.

 

CR: A Ronda da Noite, nome de uma pintura de Rembrandt e de um livro de Agustina Bessa-Luís, foi também título de um filme que realizaste. A relação entre instalação, cinema e teatro é evidente, mas também há uma insistência nas referências e nas repetições, que se desdobram umas nas outras.

 

JSC: Tens razão e fico feliz por compreenderes esse funcionamento no interior do meu trabalho. É um processo de sedimentação em que existem títulos, autores e paisagens que regressam sempre de renovada maneira, produzindo espelhamentos e engendrando intertextualidades. A Ronda da Noite é a obra-prima de Rembrandt; a Agustina sabe disso quando escreve o seu último romance; eu sei disso quando leio o livro da Agustina e rodo o filme no Cinema Batalha, há dez anos. São revisitações do meu próprio percurso, de autores que guiam a minha mão, de fantasmagorias que me habitam.

 

CR: É um fio condutor que passa por todos os trabalhos?

 

JSC: É uma constelação! É uma constelação incerta que vai sendo activada e nós vamos descobrindo as conexões, as ressonâncias e a gradativa reinterpretação entre os diversos elementos.

 

CR: Como é que vês essa constelação nesta exposição?

 

JSC: O Teatro Anatómico é uma grande noite estrelada. Existe uma constelação de corpos radiantes em pura presença e a nossa presença que atravessa essa galáxia.   

 

CR: O que querias dar a ler/ou a ver?

 

JSC: De alguma forma, queria que esta colecção se abrisse à alteridade, desvendasse novos prismas a partir do seu próprio interior e descobrisse a refracção dos seus reportórios, sob a influência da arte contemporânea.

 

CR: Vês a exposição como um desenho que se desmultiplica ou vês o Desenho, um só corpo?

 

JSC: É difícil responder-te. Existe uma visão global quando parto para um trabalho, como um maestro apto a conduzir uma orquestra. Há uma visão da totalidade que é clara no meu espírito e geralmente se cumpre. Na véspera da inauguração, o André Sousa – que acompanhou toda a montagem da exposição e foi um interlocutor privilegiado –, disse-me: “João, no fim de contas, a exposição está exactamente como me tinhas falado nas primeiras vezes – os núcleos da guerra, do sacrifício, do xamanismo.” Ele compreendeu, no final, que a ideia inicial já continha tudo o que a exposição veio a ser. Ao mesmo tempo, é um trabalho de experimentação impermanente: o plástico que cai e fica em ruína, os acidentes que se vão operando na montagem e são conservados, o lastro da dimensão processual de um site specific, tudo isso foi acolhido e incorporado na exposição.

 

CR: Mas há um desenho invisível?

 

JSC: Acho que é uma paisagem nocturna, propiciatória e antecipatória. Ela pode ser subterrânea, o núcleo de anéis concêntricos do Teatro Anatómico ou uma galáxia, mas é invariavelmente uma paisagem obscura de onde emergem pontos de luz. Com uma dimensão histórica, natural, matérica, poética… convida a pensarmos a nossa condição terrena e finita. Aliás, a exposição abre com a pintura do Horácio Frutuoso em que lemos uma advertência: “Abuse of words”. Talvez prefira à retórica, a vivência imprevista dos objectos, dos lugares e do assombro.

 

CR: Há uma leitura que, na construção desta exposição, se faz oculta: curadoria como acto de criar.

 

JSC: Ao mesmo tempo que sou um teórico, quando parto para a criação — e chamei ao meu papel ‘criação’, mais amplo que ‘curadoria’ — tento despir-me do que sei. Embora esse saber — em estaleiro — o transporte comigo, malgré moi!

 

 

Centro de Arte Oliva

Coleção Treger Saint Silvestre

João Sousa Cardoso

 

 

Cristina Robalo vive e trabalha em Lisboa. Artista, doutorada em Arte Contemporânea pelo Colégio das Artes da Universidade de Coimbra
(2021-2011), mestre em Filosofia, na área de Estética pela Universidade Nova de Lisboa (2010-2008), frequentou o Plano de Estudos Completo em Desenho e o Curso Avançado de Artes Plásticas pelo Ar.Co, Lisboa (2000/1994). Em 2019 iniciou o projecto editorial, “Conversa em
torno do desenho com Cristina Robalo”, em parceria com a Sistema Solar/Documenta.  

 

A autora escreve segundo o antigo acordo ortográfico.

 

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