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Isabel Cordovil: Dos cosas tan desiguales

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Carolina Quintela

Dos cosas tan desiguales é a primeira exposição individual de Isabel Cordovil (1994, Lisboa) na Galeria Pedro Cera, em Madrid, na qual apresenta um conjunto de novas obras, produzidas especialmente para a exposição e que ocupam os dois pisos da galeria. Sob a forma de fotografia, escultura ou instalação faz referências a poderes hierárquicos ancorados maioritariamente em arquétipos da tradição religiosa judaico-cristã. Propõe uma reflexão sobre como estes, ainda profundamente enraizados no inconsciente coletivo, influenciam estruturalmente a forma como nos relacionamos e percecionamos o mundo.

A dicotomia apresentada no título, que surge a partir da poesia literária de Santa Teresa de Ávila, articula um jogo entre duas partes aparentemente desiguais, humano e divino, mas que, a par da própria experiência mística, sensível e devocional da autora, expressam um desejo de fusão e transcendência. Por outro lado, Isabel Cordovil, criada num ambiente católico rigoroso, expressa também na sua obra vincados desdobramentos simbólicos religiosos que impulsionam a construção de um corpo de trabalho crítico e muitas vezes subversivo que, partindo de narrativas pessoais, serve de plataforma ao pensamento de novos modos de pertencimento, identidade e alteridade. É ainda assim possível perceber que as duas autoras partilham assuntos como o amor, a morte e a santificação ou dessacralização do espaço e objetos, na medida em que a própria experiência do corpo é convocada. A dualidade proposta para esta exposição parece assim apontar a uma fluidez de possibilidades e a um concebível êxtase terreno. Mais ainda, a expressão da linguagem simbólica estende-se sobre todas as obras e acrescenta-se à transitoriedade que se impõe no espaço. As primeiras catorze fotografias, Putrido (via crucis), que retratam aceticamente frutos em decomposição e com as quais somos confrontados, não só documentam e firmam o processo da passagem do tempo na matéria, como evocam a via dolorosa no encontro com o fim, a partir do registo da deterioração desta natureza morta. De outro modo, numa certa ficção do espetáculo religioso, surge Script (I, II, III, IV, V, VI, VII), um conjunto do que podiam ser bancos de uma igreja imaginária, dispostos animicamente no espaço. Sete tábuas de corte de carne, agora fixadas em bronze, são cicatrizes e testemunhas de um ato de violência e sacrifício. O corte projetado sobre a superfície, que a molda e dilacera, incorpora a memória da cisão e da fragmentação do corpo, silenciada no metal. Lugar de contenção, a ondulação do plano denuncia a degradação, o som, o cheiro e a finitude que a aparta. Num jogo de ambivalências, a ideia de sacrifício, igualmente presente em My Kingdom for a kiss, no piso inferior da galeria, poderá ser vista como expressão de mutuação ou até como ato de amor. Com efeito, a reflexão religiosa compreende a este conceito, no âmbito do culto, a ação na qual o homem honra a divindade e se reconcilia com o objeto amoroso. Assim, um ramo de flores apodrecido repousa no chão e invoca a fragilidade, a fatalidade e o poder da abnegação ao ser assumido o custo do amor ou o simples ato carnal de um beijo.

Agora escurecido, o espaço permite-se ser visto à medida que os olhos do espectador se habituam para logo depois descobrir uma das mais impactantes obras da exposição, e aquela que segundo a artista deu origem a todas as outras. Ubi sunt é uma cama em ferro e bronze que sugere uma solene materialização da ausência. Ligeiramente elevada do chão, figura as marcas de um corpo jacente que habitou o leito e que agora invoca a sua passagem, o fulgor da vida e o vigor energético de um corpo que se debate. Esta dualidade é enfatizada pela ideia da natureza transitória da juventude e da própria vida. Paralelamente, apesar da sua ausência física, o corpo parece estar no centro da prática desta artista e nesta exposição, funcionando como mediador, em que tudo se aproxima do seu movimento e tudo se presta a uma continuação que se sucede e daí se evade. Cordovil deixa pistas poéticas e visuais dessa mesma presença corpórea como é visível nas obras Colère (Nanterre), Chest e My womb II.

A artista diz-nos que para ser iconoclasta é preciso primeiramente reconhecer o ícone. É certo que cada um traz em si um universo particular de crenças e assunções que colidem com o percecionado e, nesse sentido, podemos admitir que o valor transformador faz-se naquilo que escapa ao previsto, o sintoma. Segundo Georges Didi-Huberman, é sintomático aquilo que se manifesta a partir das condições segundo as quais reconhecemos e principalmente apreendemos os objetos. Assim, tendo em conta o confronto com o que o sistema de referências simbólicas a que a artista se propõe e a eficácia como as veicula nas suas obras, leva a crer que o que procura é esse mesmo mistério que faz um objeto “tornar-se” uma entidade, o sintoma que reside nos ícones e que ultrapassa a noção de simbologia, desvendando-se. A procura do que escapa possibilitando ao espectador abertura de um pensamento alternativo em torno da origem das imagens e seus significados. O valor sensível e estético que esta artista aponta parece ser a exploração daquilo que fica no intervalo entre si e o outro, entre as suas crenças e o real que toca a cada um de nós. Nesse sentido, podemos entender que as obras conservam uma certa violência, na medida em que sendo a expressão do sintoma, trazem à superfície a verdade de cada um. Através de instantes fotográficos, de apenas uma única edição, ou objetos enigmáticos, Isabel Cordovil atua como uma artista em constante busca de um mais profundo entendimento do que a rodeia, atravessando o caminho questionador propiciado pela arte com todo o imenso que pode abarcar. Um processo de criação tensional e de resignificação de imagens que num só golpe trazem consigo passado e presente. Reconhecer o ícone para ver além dele.

 

Isabel Cordovil

 

Galeria Pedro Cera

 

 

 

Carolina Quintela (1991), curadora. É licenciada e mestre em Escultura pela Faculdade de Belas Artes de Lisboa, e pós-graduada em Curadoria e Programação das Artes pela Universidade Católica Portuguesa. Desde 2015 que se dedica ao desenvolvimento de projetos curatoriais, investigação e produção de textos. É Curadora e Investigadora do MACAM – Museu de Arte Contemporânea Armando Martins.



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Isabel Cordovil, Dos cosas tan desiguales. Vistas gerais da exposição na Galeria Pedro Cera, Madrid, 2024. Fotos: Roberto Ruiz. Cortesia da artista e Galeria Pedro Cera.

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