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Ragnar Kjartansson: não sofra mais

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Susana Ventura

… porque a Vida só existe numa melodia?

Crítica à exposição não sofra mais,

de Ragnar Kjartansson

 

Duas notas introdutórias de carácter empírico a partir da experiência aquando da visita à exposição. A primeira releva o número elevado de visitantes, que se encontravam no Mosteiro de Santa Clara-a-Nova a percorrer a exposição com uma atenção dedicada. Penso que se deva muito ao efeito desta exposição específica, que nos leva a não querer sair dela (e à segunda nota, por conseguinte). Pensei para comigo: há quanto tempo não sentia este desejo de não abandonar uma exposição (e de repetir a visita pelas várias salas só por prazer — essa experiência que parece estar, cada vez mais, ausente das exposições de arte contemporânea)? A exposição não sofra mais do artista islandês Ragnar Kjartansson acabará por revelar os segredos deste efeito, embora acredite (sobretudo relativamente à primeira nota) que o trabalho persistente do CAPC: Círculo de Artes Plásticas de Coimbra tem conseguido despertar e consolidar um público em torno da programação no domínio das artes visuais da Anozero — Bienal de Coimbra, no âmbito da qual se concretiza esta exposição “solo”, durante um ano vazio, o que já acontecera com a exposição Campo/Contracampo, de José Pedro Croft (patente de 19 de Setembro a 12 de Dezembro de 2020), numa tentativa de reactivar o Mosteiro de Santa Clara-a-Nova para além da Bienal de Arte e criar uma ligação afectiva (que se pretende duradoura) entre aquele espaço e a apresentação de exposições no âmbito das práticas artísticas contemporâneas.

No entanto, ao contrário de Campo/Contracampo, que ocupava, apenas, o espaço do antigo refeitório, não sofra mais estende-se por vários espaços, resultando num bom exemplo para se pensar a espacialidade das exposições no âmbito da Bienal, sobretudo em relação aos espaços de matriz conventual. Mesmo tratando-se de uma exposição individual, em que uma possível narrativa (com as desejáveis dissonâncias e ritmos alternantes, de continuidade e ruptura) facilita na criação de diálogos, a exposição demonstra como é possível “destruir” ou anular a natureza do espaço preexistente e a lógica das celas/salas conventuais, delineando um percurso fluido e intensivo — uma espiral virtual que termina num céu nocturno nublado de um passado próximo ou longínquo, que bem pode ser, também, um início — em que as relações entre as obras no espaço se intensificam nas várias sequências, resignificando, mutuamente, o espaço e as próprias obras.

Os espaços intercalares ou, mesmo residuais, do percurso expositivo — passagens, escadas,  corredores — converteram-se, eles próprios, em salas de exposição, como aquele da entrada, onde recebemos a folha de sala e, entre a tentativa de a manusear, nos deparamos com o primeiro vídeo, de natureza biográfica dupla, do artista e da sua mãe (Me and My Mother, 2000-2020), que resulta da junção de cinco vídeos realizados a cada cinco anos entre os anos 2000 e 2020. Embora a natureza liminar do espaço reforce a tensão existente no vídeo em que, após um silêncio opaco, a mãe cospe para o rosto do filho (que, ali, parece abandonado à entrada do Mosteiro, tal como na roda dos enjeitados existente no edifício), a perfeita moldura formal, que se repete ao longo dos cinco vídeos, tal como a repetição do gesto aparentemente abjecto e o rigor hirto das personagens (com a repetição e a encenação surge a ambiguidade entre ficção e realidade) acabam por sugerir uma expressão de amor incondicional, que advém de uma manifestação de rebeldia e, simultaneamente, de aceitação, que roça o humor físico. Este trabalho curatorial sobre o espaço repete-se nos dois corredores, em que, no caso do piso térreo, o vídeo Song (2011) bloqueia o comprido corredor (cuja acentuada dimensão é, quase sempre, trabalhada nas bienais), criando uma pequena sala de matriz quadrada, onde se inscreve o círculo virtual que o próprio vídeo compõe através do movimento circular da câmara em torno do palco-pedestal redondo coberto com cetim azul, onde as três sobrinhas do artista cantam, com vozes angelicais, “The weight of the world is love”, inspirado no poema homónimo de Allen Ginsberg. Subindo ao primeiro piso, o vídeo Death and the Children (2002) recebe o visitante no patamar de chegada, mas será, sobretudo, a aguarela não sofra mais (2023) a obrigar o corpo a voltar-se contra o percurso mais intuitivo (que nos conduzirá a God, de 2007) e a fazer uma segunda pausa. Noutros momentos, os espaços intersticiais funcionam como antecâmaras, espaços vazios necessários ao embate com a obra que se descobre numa espécie de último fôlego, que será, nesta exposição, sempre duplo, o fôlego que nos permite encher os pulmões de ar uma vez mais e aquele que nos permitirá agarrar à vida (ainda que esta possa ser apenas uma linda encenação).

 



 

O percurso faz-se movimento expressivo, extremamente bem calibrado, como nos passos enterrados no pó de neve de Guilt Trip (2007). E, depois, “bang!” ecoa no vazio. O “tiro” (ou murro) no estômago será sempre o final de toda e qualquer vida. Neste momento, podemos, simplesmente, sair para o exterior ou regressar a esse interior, onde parece que até fomos felizes, onde existe uma comunidade que aceita a fragilidade, a falha, o erro, a própria dor como condição libertadora para não sofrer mais. O “não sofrer mais”, aqui, não se prende, por conseguinte, com o sofrimento individual, mas com a construção de uma comunidade, ainda que efémera no espaço da exposição, mas representada por todas as ligações, que vamos encontrando, entre o artista e os seus amigos, ou, até mesmo, entre as crianças e a morte personificada. Não a entendendo como uma expressão de desprezo ou, até, ironia (ainda que este artista utilize com frequência esta arte na sua obra), “não sofra mais” é uma expressão — como a própria obra de arte — incompleta. Necessita do povo por vir, como diria Gilles Deleuze pensando em Paul Klee, para a saciar. Particularmente expressiva, remetendo para esta ideia, é apropriação do artista da língua Portuguesa, não apenas no título da exposição, que surge em LED vermelho na fachada exterior de um dos torreões ou na aguarela no corredor do segundo piso (que representa o LED que não se vê do interior), como ainda na pintura de um céu nublado, sendo o “mesmo” céu ali representado na arquitectura de abóbadas, ou ainda aquele que podemos admirar do Mosteiro de Santa Clara-a-Nova, ou de qualquer outro lugar, ou todos os céus que o artista já pintou (tratando-se de uma pintura que este repete sistematicamente).

A apropriação da língua do Outro, pensando que a língua representa (quase) sempre um problema de identidade, mais do que criar uma empatia entre culturas — porque existem, depois, as paisagens com as quais somos assombrados na exposição e que nos são (à maior parte do público Português) estranhas e longínquas — e reduzir uma diferença, por vezes de difícil transposição (mesmo quando, por vezes, falamos a mesma língua), criando essa comunidade outra, composta por identidades, vozes, rostos, paisagens e melodias heterogéneas, pela simples possibilidade de coexistência e comunalidade. A música, naturalmente, como a expressão artística primeira na criação de comunidades (relembrando que naquela está contida a oralidade) garantirá, depois, certamente, a inscrição dessa comunidade nos corpos individuais, mesmo quando a música se torna grandiloquente, nas grandes orquestrações, como em God (2007) ou em A Lot of Sorrow (2013-2014), com performance dos The National, muito perto do abismo que a música, também, por vezes, abre aos nossos pés. Mas é este jogo de ritmos, que são sensações, entre terra e ar — porque é próprio da música tornar-se aérea — que o artista sabiamente manipula, encena, repete, para nos colocar no espaço intercalar para o qual a exposição nos lança continuamente: entre elevação (ou possível redenção? sendo esta própria à fé, que atravessa a exposição em vários momentos) e melancolia (ou derradeira sucumbência?). Da arte — sabemos — não provém resposta alguma.

Será, também, a música a criar um espaço paradoxal (coexistente com esse intercalar) em que a escolha — mesma aquela de não sofrer mais — se torna vacilante. Ragnar Kjartansson é conhecido por utilizar a repetição como recurso expressivo nas suas obras, sejam performances, vídeos, pinturas, entre outras formas de representação. A mesma pintura de um céu nocturno, que mostra as subtis metamorfoses e singularidades de um só céu, porém ao longo de anos, sob condições atmosféricas distintas, mas sempre criado com o mesmo artifício que o artista aprendeu na escola de artes (a primeira camada a aplicar será sempre a roxa para se obter esse céu diáfano). O mesmo gesto repetido ao longo dos anos sob o mesmo enquadramento. Personagens idênticas colocadas, simetricamente, num enquadramento. E, entre muitos outros exemplos, um verso ou um refrão que se repete ad infinitum ou enquanto for suportado por quem a ouve: uma hora, seis horas… Neste último exemplo, geram-se efeitos contraditórios e, embora possam atingir cada visitante de forma diferente, o artista coloca, desde logo, na composição da obra essa ambivalência. Em Nocturne (2023), um vídeo de dois canais, que se encontra num dos espaços mais significantes do Mosteiro de Santa Clara-a-Nova, numa capela que foi, durante muito tempo, secreta, de planta octogonal, exibindo dois pequenos altares, onde se encontram os écrans brilhantes, o fundo preto nestes reflecte as paredes circundantes, criando, novamente, um círculo virtual (símbolo de perfeição que, no Renascimento, era, também, expressão da ligação entre homem, natureza e o Divino), onde se destaca a figura do artista de fato cor-de-rosa, duplicando-se (ou cindindo-se?), entoando, repetidamente, os versos: “Take me, take me to your darkest room/Close every window and bolt every door/The very first moment I heard your voice/I’d be in darkness no more”, de George Jones. Enquanto parece suplicar pela sua salvação, encontrando-se num espaço que, simbolicamente, permite a transfiguração e elevação do espírito, o artista joga, precisamente, entre esses dois momentos problemáticos na própria fé, entre a crença de uma salvação desse lugar obscuro onde a alma se encontra e, consequentemente, libertação da dor, e o ensimesmamento que atira os indivíduos para a ansiedade e a melancolia. A repetição perpétua desenha esse espaço onde as almas vacilam entre um estado de êxtase ou alegria (ou, até mesmo, transcendência) e outro de desespero absoluto, preso num transe hipnótico.

Em The Visitors (2012), assistimos a esta experiência elevada ao extremo, tanto que o espaço,  que ocupa, exige uma dimensão maior e mais ampla. Ao contrário da instalação desta obra noutros espaços expositivos, no antigo refeitório do Mosteiro de Santa Clara-a-Nova, o espaço foi, apenas, parcialmente escurecido, percebendo-se, ainda, a arquitectura e os elementos decorativos que o compõem e que contribuem para uma ressonância muito particular entre este e a obra de Kjartansson, filmada em La Bergerie, a famosa casa que pertencera à família Astor, situada no vale este do rio Hudson e agora conhecida como Rokeby, em que, individualmente (com excepção de um dos músicos, que permanece num dos quartos, onde se vislumbra o dorso de uma mulher nua deitada na cama, onde aquele se encontra sentado a tocar guitarra), cada músico ocupa uma das divisões da casa. Cada divisão corresponde a um écran de grandes dimensões, no qual se vê cada um dos performers a tocar a parte da música que lhe corresponde (curiosamente, o baterista encontra-se na cozinha…). A cisão espacial é, igualmente, temporal. Naturalmente que cada músico entra no seu devido tempo, mas este é fragmentado, exactamente, por essa condição: a cada um pertence o seu próprio tempo (existe um único tempo contínuo, representado na imagem pelos auscultadores que todos os músicos têm, pelos quais ouvem a totalidade da música), que, na instalação, é reforçado pela preparação que antecede a performance, pela colocação do corpo — aquele que servirá de suporte ao acto de tocar um instrumento (os músicos, tal como os bailarinos, têm de construir um espaço do corpo que antecipa a reverberação) —, pela afinação dos instrumentos e pelo aparecimento da imagem no écran. Esta revelação far-se-á faseada, obrigando o corpo do visitante a descrever vários movimentos atrás do som que começa a contagiar o espaço e a envolver os corpos, um a um, uma e outra vez, durante uma hora, ou mais, seguindo um loop contínuo. Junto a cada um dos oito écrans, o som respectivo torna-se mais pungente e arrebatador, tal como quando as vozes cantam em uníssono o refrão “Once again I fall into my feminine ways…” remetendo, de volta, para a casa, esse lugar de simultâneo mistério — em nenhuma outra composição musical de Kjartansson como nesta, os corpos se apresentam assim desencarnados, alados, majestosos e divinos (parafraseando Deleuze) — e partilha e comunalidade, não obstante a separação física entre os amigos. No pórtico característico de Rokeby, um outro grupo de amigos escuta, na sua imobilidade silenciosa, os resquícios do som que passa para o exterior, como se esperasse pela própria eternidade, desfeita, apenas, com o disparo de um canhão e a nuvem de fumo que  aquele deixa a pairar no ar. No antigo refeitório, este nono écran é colocado a encerrar o eixo do longo espaço, fazendo coincidir, uma vez mais, o limiar que o pórtico representa — entre espaço exterior e espaço interior, entre espaço público e espaço privado — com aquele do espaço. Descobrimos, depois, que para além da comunidade e da intimidade desvelada naquele momento único, existe, apenas, o descampado vazio, frio e indiferente, que muitos teimam em atravessar pesadamente, enterrando-se na vasta paisagem ou imensa solitude (Guilt Trip ocupa a sala, imediatamente, por trás do nono écran).

Ao sair da exposição, não podemos deixar de sorrir — um sorriso vacilante, estranho ou libertador — quando voltamos a ver Me and My Mother, pensando no quanto precisamos daquela paródia para regressar à nossa frágil condição de humanos.

 

 

Ragnar Kjartansson

Anozero: Bienal de Arte Contemporânea de Coimbra

 

Susana Ventura (Coimbra, 1978) é arquitecta de formação (darq-FCTUC, 2003), contudo prefere dedicar-se à investigação, à escrita e à curadoria, cruzando Arquitectura, Arte e Filosofia. Doutorou-se em Filosofia, na especialidade de Estética, sob orientação científica de José Gil (FCSH-UNL, 2013) e é, actualmente, Investigadora Contratada no Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto (CEAU-FAUP). Foi Professora Auxiliar Convidada nas Universidades Nova de Lisboa, Minho e Évora. Foi curadora, entre outras exposições, de “Utopia/Distopia” (com Pedro Gadanho e João Laia, MAAT, 2017), “A Casa da Democracia: entre Espaço e Poder” (Casa da Arquitectura, 2018), “Corpo radial” (exposição de Mariana Caló e Francisco Queimadela, Galerias Municipais, Lisboa, 2020) e “The Tale” (exposição de Tiago Baptista, Rialto 6, Lisboa, 2022). Em 2014, recebeu o Prémio Fernando Távora (9.ª edição) e, no mesmo ano, integrou a representação oficial portuguesa na Bienal de Arquitectura de Veneza. Desde 2020, é autora do programa de rádio “Aforismos Espaciais” para a Rádio Antecâmara, dedicado às intersecções entre arquitectura, literatura, artes visuais, poesia e cinema.

 

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia

 

 

 

Outros artigos da autora sobre a Anozero: Bienal de Coimbra

 

 Anozero: Meia-Noite. Parte I

— Meia-Noite: parte II

José Pedro Croft: Campo/Contracampo

 



 

Ragnar Kjartansson: não sofra mais. Vistas gerais da exposição no Mosteiro de Santa Clara-a-Nova. Coimbra, 2023. Fotos: Jorge das Neves. Cortesia do artista e Anozero: Bienal de Coimbra.

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