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A Salt Anthology

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Maria Kruglyak

Uma entrevista com Kevin Bellò

 

Explorando as histórias do sal através de uma perspetiva fundada na ação de cuidar e de demorar, A Salt Anthology foi o projeto que venceu a Open Call Jovens Curadorxs, organizada pela Rua das Gaivotas 6 e pela Associação Quinta das Relvas. Com curadoria de Kevin Bellò e obras das artistas Inês Coelho da Silva e Joana Viveiros, a exposição parte de uma residência que teve lugar na Associação Quinta das Relva e durante a qual este trio se debruçou sobre a produção de sal nas Salinas de Aveiro e do Samouco.

Procurando ativamente evitar algumas das práxis estabelecidas da criação artística, esta exposição conjuga um texto curatorial de cariz poético e descritivo com uma variedade de objetos escultóricos de vidro e cerâmica, mãos-cheias de alimentos sobre azulejos feitos de lama, guardanapos cosidos à mão, uma instalação de pequenas dimensões, fotografias e uma toalha de mesa sobre a respetiva peça de mobília — a maior obra da galeria, representando uma vista aérea das salinas. Em vez de se atribuírem títulos individualizados, cada uma das peças está numerada de 1 a 16, sob a designação A Salt Story. Neste sentido, Bellò, Coelho da Silva e Viveiros investigam o que acontece quando um espaço expositivo recebe uma multiplicidade de objetos para cuja presença não se dá qualquer explicação e cuja inter-relação apenas decorre da temática que os enlaça. Ao invés de atentarmos nos objetos, conseguimos antes ponderar a relação que existe entre eles? Para chamar a atenção dos espetadores para esta relação tácita, as peças foram montadas significativamente abaixo da linha de visão, assim exigindo que nos baixemos para os observar devidamente.

Durante aquele curto período de residência, que, ainda assim, possibilitou três visitas de investigação às salinas, A Salt Anthology, enquanto projeto conceptual, desenvolveu-se no sentido de explorar a forma como podemos ver o sal não como uma mercadoria mas antes como o protagonista da sua própria história. A exposição que daí resulta aborda as multiplicidades do sal através de uma série de objetos de arte; e somos nós, enquanto público, que temos de criar a história que cada um destes objetos conta.

Durante a minha conversa com Bellò, apercebi-me de que a melhor forma de entender A Salt Anthology é ver a exposição como uma instância de desenvolvimento da prática colaborativa des três criadores, que, sob este pretexto, encontraram formas de trabalhar não só uns com es outres mas também com a localidade de Aveiro e com a entidade mais-do-que-humana que é o sal. Embora já se conheçam há vários anos, partilhem um interesse comum pela política da comida, a sustentabilidade e a noção de materialidade, e sejam uma influência ativa nas obras artísticas de cada ume há tempo considerável, esta é a primeira vez que trabalham em conjunto num projeto artístico — ainda para mais em torno de uma temática com a qual têm uma relação tão particular.

 

Maria Kruglyak (MK): Queria começar pelo título da exposição, "A Salt Anthology", que é particularmente sugestivo que também se relaciona com o teu entendimento das ideias de multiplicidade e colaboração enquanto componentes essenciais da tua prática. Por definição, uma antologia é uma compilação de elementos que, no seu todo, criam uma visão de conjunto, assumindo simultaneamente uma ideia de completude e um sentido de potencial elaboração. Porque é que escolheste este título, e como é que vês o conceito de antologia?

 

Kevin Bellò (KB): Essa é uma pergunta francamente complicada — e fico supercontente de tentar responder. Deixa-me começar por dizer que nós três — a Inês, a Joana e eu — temos uma cópia do mesmo livro (que recomendo inteiramente), que se intitula Salt: A World History [Mark Kurlansky, Salt: A World History (Random House, 2002)]. Já era um assunto interessante para todes nós, ainda que o olhássemos de diferentes perspetivas. Quando definimos o título, queríamos muito conservar o sentido da nossa perspetiva, deixando-a, no entanto, alterar-se em virtude daquilo que descobríramos durante a nossa residência. Portanto, encontramos aqui várias histórias, mas não se trata só disso — elas aparecem em conjunto, e é a relação que estabelecem umas com as outras que importa. As histórias, numeradas de 1 a 16, não representam "a história"; pelo contrário, são apenas um conjunto de flores. É como um bouquet com várias flores, que muitas vezes são bastante diferentes entre si. Têm princípios idênticos e usam um vocabulário semelhante, mas fazem-no de formas distintas, com gramáticas e entendimentos diferentes — tal como numa antologia, onde há entradas mais e outras mais curtas.

Outra das partes importantes de uma antologia é que é composta por obras de diferentes autores. Por isso pensámos: e se estas coisas que estão a falar não se limitarem apenas a nós os três enquanto autores, mas também incluírem os materiais, as plantas, as algas, os líquenes, as exigências, as criaturas marinhas e os corpos de água, e tantos outros elementos fascinantes? E se contribuírem para contar estas histórias; e como é que podemos jogar com isso?

 

MK: Analisemos esta ideia de não dar títulos individualizados às peças, numerando-as antes de 1 a 16, sob o título conjunto A Salt Story. De onde surgiu essa ideia?

 

KB: Foram a Inês e a Joana que o sugeriram, na verdade. Ao não dar títulos individuais às peças, libertámo-las na sua operação e conseguimos manter as coisas mais abertas. E assim também pudemos enquadrá-las como numa antologia: às vezes as antologias apresentam as entradas cronologicamente, e noutras não; mas, acima de tudo, as peças não assumem uma natureza hierárquica e têm uma relevância idêntica entre si.

Cada peça sabe no seu âmago que o jardim das muitas flores que se podem colher é enorme, possivelmente infinito. Mas a flor que escolhes é a flor com que de alguma forma te identificas, e todas elas, na sua generalidade, querem dizer alguma coisa. Não precisam de querer dizer nada muito específico, mas são uma imagem de alguma forma. Na ausência de um título revelador, também acabas por assimilar a obra de uma forma diferente enquanto espetador. Deste modo, as próprias peças podem assumir essa importância — e falar.

 

MK: Tendo em conta esta variedade de histórias do sal, como é que pensaram a própria materialidade deste elemento? É notório que funciona de formas diversas nas diferentes peças.

KB: Sim, completamente. Na minha prática, há muitas coisas que se abeiram do sal e da noção de materialidade, embora nunca antes tivesse trabalhado diretamente com este elemento. No entanto, desenvolvo bastante trabalho na temática da gastronomia e da sustentabilidade, sobretudo através do uso de fermentos, da fermentação, etc. A juntar isso, também tenho um certo interesse pelo detalhe e por outras práticas mais lentas, assim favorecendo uma abordagem que implica mais tempo e mais pensamento.

Raramente trabalho com artistas com vista a atingir algum objetivo, e esta tendência converge naquilo que, em geral, procuro fomentar. Nesse sentido, o sal até aparece de uma forma especialmente poética — não tendo um gosto particular em si mesmo, o sal é antes um intensificador de sabor. Acho divertido pensar num grão de uma coisa que tem todo este poder e que funciona tão bem em combinação com outras coisas.

Na exposição, usámos à volta de dez materiais diferentes, todos adquiridos de forma ética. A maior parte até vem das próprias salinas. Por exemplo, usámos algas marinhas que tínhamos guardado numa das peças de vidro, e até as utilizámos para fazer papel. Em vez de escrever os materiais por baixo de cada peça na folha de sala, optámos por elencá-los no final do texto, transformando-os numa espécie de alfabeto reduzido.

 

MK: Conseguias explicar-me esta materialidade e esta forma de pensar olhando apenas para uma das peças? Ou elas só funcionam efetivamente na sua multiplicidade?

KB: É a multiplicidade dos objetos que está no centro da exposição. Ainda que, individualmente, assumam uma força própria, e embora adore cada uma delas, as peças adquirem importância no seu conjunto. Uma das coisas mais divertidas que fizemos foi colocar uma dúzia de objetos nos parapeitos das janelas da sala, seis de cada lado. Em vez de os descrevermos como, por exemplo, "A Salt Story 13 à direita em cima", designámo-los A Salt Story 1 a 6, etc. Prescindindo de uma associação a cada objeto individual, é a relação entre eles que se torna essencial. É a relação entre os objetos que importa.

 

MK: Para terminar, há alguma coisa em particular que desejes que o público veja ou sinta na sua interação com A Salt Anthology? Há alguma coisa em especial que gostasses que a exposição concretizasse, até em termos filosóficos?

 

KB: Diria que o meu objetivo é que as pessoas consigam abraçar a lentidão e dar mais tempo às coisas. Este género de metodologia é tão importante quando se trabalha com práticas mais lentas — o que eu quero é evidenciar a quantidade de tempo que passamos com o material.

Qualquer um destes objetos pode ser diferente dependendo do tempo que as pessoas gastem a observá-los, a procurar ligações. Nós três tentamos sempre evitar ao máximo fazer coisas imponentes ou espalhafatosas, e nesta exposição tivemos isso em particular atenção. Por exemplo, a maior peça é uma toalha de mesa — que também é tendencialmente o único objeto que ignoramos quando estamos a meio de uma refeição. E, de modo geral, também é essa a questão do sal: quando a comida o tem em quantidade suficiente, nem pensamos muito nisso, e reparamos mais nos outros ingredientes; no entanto, se em falta, não há como não notar, porque tudo o resto fica insosso.

Tenho a esperança de que este projeto, convidando o visitante a tomar atenção a cada um destes materiais e permitindo-lhes que assumam a relevância de que falo, consiga oferecer a sugestão de dar mais tempo às coisas. Os elementos mais simples, mais pensados, mais lentos têm a sua própria estética, e são capazes gerar uma sensação de prazer e de entusiasmo. Nem tudo tem de ser aparatoso!

 

 

Inês Coelho da Silva 

Joana Viveiros

Kevin Bellò

Rua das Gaivotas 6

Associação Quinta das Relvas

 

 

Maria Kruglyak é pesquisadora, crítica e escritora especializada em arte e cultura contemporânea. É editora-chefe e fundadora de Culturala, uma revista de arte e teoria cultural em rede que experimenta uma linguagem direta e accessível para a arte contemporânea. É mestre em História da Arte pela SOAS, Universidade de Londres, onde se focou na arte contemporânea do Leste e Sudeste Asiático. Completou um estágio curatorial e editorial no MAAT em 2022 e atualmente trabalha como redatora freelancer de arte.

 

Tradução EN-PT: Diogo Montenegro

 


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A Salt Anthology. Exhibition views at Rua das Gaivotas 6, Lisbon, 2023. Photos: Samuel Duarte. Courtesy the artists and Rua das Gaivotas 6.

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