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Anozero: Meia-Noite. Parte 1

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Susana Ventura

 

 

Será ainda necessário gritar no silêncio da noite.

 

Duas figuras conceptuais (poderemos pensá-las enquanto tais) elevam-se do percurso que efectuamos pela instalação Descolonizar o Pensamento (2013-2021), de Carlos Bunga, que tanto se afirma enquanto obra de arte autónoma, como se transfigura em cenário para acolher outras obras: quatro filmes de curta duração, exibidos alternadamente ao longo da duração da primeira parte da Anozero’ 21-22: Bienal de Coimbra sob o título Meia-Noite e curadoria de Filipa Oliveira e Elfi Turpin, e um conjunto de esculturas angolanas, que Bunga seleccionou a partir da colecção etnográfica do Museu da Ciência da Universidade de Coimbra. Esta última condição da instalação de Bunga, como veremos, coloca várias questões que poderemos pensar como permanecendo em aberto, seguindo o pensamento das curadoras, que pensaram, para esta primeira parte da Bienal, uma exposição-conversa, necessariamente, ilimitada pelos próprios contornos políticos, culturais, sociais evocados e que só poderão reunir-se nesse espaço-tempo de transição e transmutação dos seres e das coisas, o único, aparentemente, capaz de suportar o mistério e a poesia, acolhendo e abrindo-se à multitude (preferimos nomear a diferença de multitude, porque esta última traz já consigo as ideias de reunião e de coexistência, que são, igualmente, convocadas pelas curadoras).

A primeira figura conceptual é, precisamente, a que nomeia este espaço-tempo brevemente acima descrito: a noite. E referimo-nos à noite como um espaço-tempo, e não apenas como um tempo, porque existe essa ambição da exposição se construir como um espaço que recebe as qualidades que, ao longo da história, foram e continuam a ser atribuídas à noite. Esta primeira característica ambígua — da transformação do tempo em espaço (para sobrevoarmos a metáfora) — só poderá, de facto, efectivar-se se a exposição não se encerrar em si, se se perpetuar, de alguma forma, pelo tempo e no tempo. O que as curadoras parecem ter encontrado num método, que advém das experiências curatoriais de ambas, em pensar as exposições como processos colaborativos e participativos, envolvendo diferentes comunidades (artistas, públicos, mediadores, etc.).

No texto de apresentação da Bienal, encontramos sempre a referência à noite como um espaço — “espaço de resistência e liberdade”, “espaço de fluidez”, “lugar aberto a outras possibilidades de visão, de conhecimento, de interacção, aberto a outros corpos”, “espaço muito contestado e ultimamente altamente politizado” — que só poderemos entender como uma confluência ou junção do tempo e do espaço, sendo esta confluência o que define a nossa vivência (aquela que nos permite definir o tempo como a nossa própria subjectividade). E, no entanto, esta primazia do espaço não deixa de ser problemática, pois quando nos deparamos com a instalação de Carlos Bunga, é essa a primeira leitura. Uma malha abstracta — que poderia estender-se infinitamente —, definida por dois módulos — duas caixas de cartão de dimensões distintas — e um intervalo (um espaço vazio), que resulta da alternância entre a utilização de uma e de outra caixa de cartão, criando uma paisagem melódica uniforme, interrompida, unicamente, quando dez desses módulos são ocupados pelas esculturas angolanas. É desta forma que são referidas, não obstante muitas destas esculturas serem objectos de uso diário, embora ornamentados, como cestos, tampas, vasilhas, chapéus… que, retirados dos seus contextos originais (sendo a primeira transmutação o momento em que se transformam em peças de uma colecção de um museu, ainda que para justificar um “interesse científico”, e a segunda quando se transformam em partes integrantes de uma instalação artística), parecem ganhar esse estatuto de objecto artístico. É, pelo menos, esse o olhar hegemónico ocidental que tem prevalecido e que a instalação de Bunga pretende alterar ao descolonizar o pensamento. E, neste sentido, o que é que ali vemos?

A linha, por vezes ténue, entre o quotidiano e a arte coincide com a ruptura desmesurada e violenta de um olhar aniquilador sobre o estranho, o exótico, o primitivo, que continua presente na época colonial actual.[1] Na instalação de Bunga, os objectos surgem nos seus próprios palcos, singularmente iluminados, pontuando essa paisagem abstracta da homogeneização. Será necessário convocar a segunda figura conceptual, tão característica das obras de Bunga, para efectuar o movimento do pensamento que o artista convoca (que se deseja como real, ainda que de difícil definição, para não cairmos na metáfora[2]). O carácter precário da estrutura (coincidente com a estrutura do pensamento ocidental), que perfaz a malha das caixas de cartão unidas com fita adesiva, por sua vez, facilmente removível, denuncia a ruína iminente da obra. A ruína tornou-se na imagem da nossa cultura contemporânea (aquela, pelo menos, herdeira da modernidade, porque existe já — assim gostaríamos de acreditar — e é esse, também, o desejo desta Bienal — na existência de formas de pensamento e, concomitantemente, de práticas artísticas, que não partem das dualidades históricas que a modernidade reforçou e que é necessário reparar,[3] mas sim da coexistência de distintas manifestações de existência, convocando, simultaneamente, todas as suas mais diversas formas: humana, animal, vegetal, mineral…), simbolizando uma estrutura que se situa entre o abandono e a eternidade, entre a queda e o equilíbrio frágil, como Walter Benjamin, pensador inquestionável da modernidade, a imortalizou na imagem do Anjo que contempla os despojos do passado quando empurrado pelos ventos do progresso. Dos escombros da modernidade e do pensamento ocidental, ergue-se um passado que continua a resistir. Uma ferida iluminada, visível, dilacerada e, contudo, resistente.[4] Não nos podemos esquecer de que matéria é feita a poesia (essa que celebra e convoca, também, a noite, nasce do abismo do grito e da dor), mas a linha do belo e do sublime é demasiado perigosa… Por ora, manter-nos-emos expectantes pela apropriação da instalação por Bunga na segunda parte da Bienal.

Quando entramos na Sala da Cidade, onde se encontra a instalação de Bunga, mantida em penumbra para acentuar a visão de uma paisagem uniforme, iluminada, apenas, de quando em quando, existe um outro elemento que se destaca, um écran que se eleva a partir do interior da instalação, para a projecção dos quatro filmes seleccionados pelas curadoras. Na semi-escuridão, o percurso, em torno da instalação, adquire um compasso ceremonial, certamente, intensificado pelas esculturas e pelos sonhos que estas despertam, seja-se alheio, ou não, aos seus significados — são belas, misteriosas e sedutoras. No écran, são exibidos, em dias distintos e alternadamente, Les Mains Négatives (1978), de Marguerite Duras, Shadow-Machine (2016), de Elise Florenty & Marcel Türkowsky, À Bissau, Le Carnaval (1980), de Sarah Maldoror e La Cabeza Mató a Todos (2014), de Beatriz Santiago Muñoz. Os filmes pertencem à instalação quanto as esculturas angolanas, contribuindo para definir os tais contornos sociais, políticos e culturais da paisagem, que, perante as imagens-movimento, também se altera. Da paisagem, aparentemente, silenciosa, nasce uma outra paisagem ocupada pelas sombras de todos os seres que passam pelo écran, de forma visível ou rememorados, como no filme de Duras, que evoca todos aqueles que preparam a cidade de Paris para o crepúsculo da manhã.[5]

As instalações de Bunga nascem, quase sempre, das relações que estabelecem com os espaços que as acolhem. Possuindo a Sala da Cidade de vários bancos ao longo do seu perímetro, somos impelidos a visionar os filmes obliquamente face ao plano do écran, ou então, podemos optar por habitar, temporariamente, a instalação, transformando-nos em participantes, tal como sucedeu na instalação Occupy (2020), de Bunga no MOCA, em Toronto, que partilha algumas características com a presente instalação em Coimbra. A ocupação das caixas vazias impele-nos a imaginar uma paisagem que vai além da malha abstracta e que é, afinal, ocupada por uma comunidade por-vir (o povo por-vir de Paul Klee). A ocupação possibilita uma proximidade que não é possível do lado de fora da instalação, onde o movimento que se impõe continua a ser o da contemplação (e, por conseguinte, da distância e da hegemonia). A descolonização do pensamento só poderá realizar-se na confluência de todas as diferentes forças em acção (a nossa, também: saltemos para dentro da instalação, façamos aquelas imagens nossas, abracemos tanto o ritual, como a arte!), pelo que só poderemos compreender os diferentes elementos da instalação como unos (a dualidade inicial, entre obra autónoma e obra-cenário, é, apenas, aparente), não obstante cada elemento ser uma multiplicidade, pedaços de um agenciamento (esse de descolonizar o pensamento), que convoca membros de uma comunidade cuja presença se evoca pela ausência, seres precários, seres frágeis, amparados, na queda, pelo desejo, pelo ritual, pelas máscaras. No fim, no entanto, sabemos: continua a ser necessário gritar no silêncio da noite (esse grito que ecoa do écran nos últimos instantes de Shadow-Machine).

 

Anozero: Bienal de Arte Contemporânea de Coimbra

 

Susana Ventura (Coimbra, 1978) Arquitecta de formação (darq-FCTUC, 2003), contudo prefere dedicar-se à curadoria, à escrita e à investigação, cruzando diferentes áreas do conhecimento. Gosta de pensar sobre arte, arquitectura, fotografia, cinema e dança, e ensaiar, ora em textos, ora em exposições, outras possibilidades de pensamento. (Por isso, também, doutorou-se em Filosofia, na especialidade de Estética, FCSH-UNL, 2013, sob orientação científica de José Gil). Foi co-curadora de Utopia/Distopia, no Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia de Lisboa (MAAT). Recentemente, foi curadora da exposição Corpo Radial de Mariana Caló & Francisco Queimadela na Galeria da Boavista, em Lisboa.

 

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia

 

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Anozero: Meia-Noite. Parte 1. Vistas gerais da instalação Descolonizar o Pensamento (2013-2021), de Carlos Bunga na Sala da Cidade do Convento de São Francisco. Coimbra. Fotos: Jorge das Neves. Cortesia de Anozero: Bienal de Arte Contemporânea de Coimbra.

 

Notas:


[1] O capitalismo é uma tecnologia do colonialismo.

[2] Ver, por exemplo, Tuck, E. & Yang, K. W. (2021). “La descolonización no es una metáfora”. Tabula Rasa, 38, 61-111. 

[3] Utilizamos, aqui, o termo “reparar” no entendimento de Kader Attia, cuja obra (encarnando o poder ritualístico ou simbólico, sem recorrer a uma mistificação forçada) não se limita a denunciar a ferida ou torná-la visível, mas, acima de tudo, cuidar das feridas nascidas do aniquilamento operado pelos países colonizadores sobre os países colonizados, que, sob o desígnio do progresso e da modernidade, pretenderam eliminar as diferenças culturais e submeter as comunidades locais à cultura ocidental.

[4] No filme À Bissau, Le Carnaval (1980), de Sarah Maldoror, ouve-se, por exemplo: “Foi a capacidade de resistência cultural do nosso povo que nos deu a força necessária para conduzir a resistência política e militar […] traduzindo o Carnaval no espírito do nosso povo”.

[5] Le Crépusule du soir e Le Crépuscule du matin são dois poemas de Charles Baudelaire.

 

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