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Luisa Cunha: Hello! Are you there?

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Catarina Rosendo

 

Luisa Cunha — O sabor das palavras

Entrevista por Catarina Rosendo

 

A propósito do Grande Prémio Fundação EDP Arte com que a artista Luisa Cunha foi galardoada em 2021, o MAAT apresenta a exposição Hello! Are you there?, com curadoria de Isabel Carlos. A extensa selecção de trabalhos incluída na mostra permite um olhar abrangente sobre o percurso desta artista que se iniciou na actividade artística relativamente tarde mas que é autora de uma obra única no panorama nacional e rara em contexto internacional. Geralmente conhecida pelas suas provocadoras e desestabilizantes obras sonoras, do seu trabalho fazem também parte desenhos, fotografias, vídeos, esculturas e performances com que experimenta questões afins àquelas que explora através do som e do uso da sua própria voz. A partir das tradições artísticas do minimalismo e do conceptualismo anglo-saxónicos dos anos 1960-1970, Luisa Cunha usa a repetição e o loop para jogar com a linguagem e brincar com os conceitos de um modo intuitivo, lúdico e aparentemente leve. Uma grande simplicidade de meios serve, na sua obra, uma abordagem a costumes sociais, protocolos museológicos, questões político-ideológicas e à relação do corpo com o espaço, abordagem essa que resulta de uma permanente mas desprendida observação das mais banais situações quotidianas, revestida de uma ironia bem humorada que desafia as convenções.

 

Catarina Rosendo (CR): O teu trabalho assenta em diversos meios, desde o desenho à escultura, passando pela fotografia e aquilo a que chamas textos sonoros. Quando começas a trabalhar numa obra, que quase sempre é feita para um lugar determinado, como decides qual vai ser o meio usado?

 

Luisa Cunha (LC): É uma coisa muito intuitiva. Se é um lugar específico, eu vou lá e vejo as características do espaço, e aí geralmente são obras sonoras. Mas podem não ser. Por exemplo, a Spots foi feita para Loulé, em 2009, juntamente com a do tiro, Sweet bloody life. A sala onde ia expor parecia uma caixinha de jóias, linda, uma coisa pequenina onde nem uma cama cabia, acho. Parecia-me evidente que tinha de ser fotografia. Como esta ia ser em fotografia, decidi que Sweet bloody life seria sonora. Lembrei-me que na família do meu pai havia atiradores e resolvi fazer uma obra com tiros. Fui ao campo de tiro e pedi a uma prima minha e a um atirador que estava com ela que dessem uns tiros. Ele dá um tiro e ela dá dois.

 

CR: A Obra com nível, que está à saída da exposição, é evidente a respeito do humor que usas nos teus trabalhos, mas não só, porque mostra também como os títulos que escolhes são importante para abrir as obras a muitos contextos, neste caso o social e o museológico.  

 

LC: Os meus trabalhos são todos muito simples. Gosto muito de materiais e de coisas que me chamam a atenção. Quando eu ia fazer compras às lojas de ferragens, via lá os níveis. Uma vez vi um de uma dimensão que não é habitual, 1,20 m. Era uma extensão linda; é aquilo que está lá na obra, na verdade. “Que objecto bonito”, pensei eu. Comprei-o e nem precisava dele. Comecei a pensar como poderia fazer uma obra com o nível, e saiu a Obra com nível. Estas obras com objectos surgem muito assim.

 

CR: A partir de encontros casuais.

 

LC: Sim, completamente.

 

CR: Interessas-te muito pelo banal e o quotidiano, pelo casual e as coisas que encontras sem querer, não é? Li algures que és uma pessoa muito observadora.

 

LC: Sim, sim. Estou sempre nesse estado [de observação]. É por isso também que me afasto muito, recuo. Estou muito comigo mesma, tenho muitos amigos, mas também tenho que estar sem fazer nada, naquele estado em que não estou a criar nada.

 

CR: Receptiva para o que pode aparecer?

 

LC: Exactamente. No fundo é isso. Sempre precisei do meu recuo. Às vezes surgem-me obras no meio da rua, em conversa com os amigos. Duas até foram presenciadas pelas pessoas, uma delas foi pelo Delfim Sardo, quando me levou a ver a biblioteca do Museu de Arte Antiga porque me tinha convidado para fazer uma obra para lá. Essa foi feita ali, não houve recuo nenhum.

 

CR: É como se estivesses num estado de despojamento mental total e a obra aparece-te. Mas depois quando a fazes e a mostras, ela aponta para vários caminhos, tem várias camadas de ideias.

 

LC: Porque eu tenho várias camadas. Sou dúbia, gosto disso. Já tenho tido problemas com pessoas para quem o que lhes interessa é a verdade, a procura da verdade. Isso é uma coisa que não me interessa nada; mas qual verdade? Essa questão tem sido para mim um foco de desentendimento grande, a maneira como eu me posiciono parece que é uma maneira de fugir à verdade, tentar escapar-lhe. Uma vez vi um livrinho que era “O elogio da mentira”. É o que eu gosto mais. A verdade não me interessa. Quando me perguntam se alguma coisa é verdade ou não, apetece-me logo pregar uma mentira.

 

CR: Isso que dizes acerca da verdade também pode ser usado para a verosimilhança? Estou a pensar numa das obras que está na Sala das Caldeiras, o Não, que parte de um pedido para fazeres um retrato para uma exposição no Museu de Arte Antiga. Encontraste uma solução genial: uma voz a interrogar-se se aquele que está ou vai ali é ou não “ele”.

 

LC: Sim. Convidaram-me para essa exposição e eu pensei, “o que é que o meu trabalho tem a ver com a ideia de retrato?” Mas achei graça. E quando é assim, eu sei que lá consigo chegar. Passaram dias e dias e as ideias que ia tendo não tinham interesse, eram fracas. Até que uma noite, já eu estava com a pressão do tempo, saiu aquele texto, “não.. não é ele...” E gostei logo dele porque disparava em várias direcções, sempre a partir da noção do reconhecimento. Imagina uma pessoa a ver um álbum, a ver uma fotografia e a dizer “isto não é ele”. Ou numa esquadra, com as pessoas todas em fila e no meio delas o assassino, “não, este não é, aquele também não”.

 

CR: Fica sempre um espaço para a dúvida e a indeterminação.

 

LC: Sim, eu gosto disso.

 

CR: A Mulher de 58 anos aos 2 anos também é um pouco sobre isso, não é? Trata-se de uma senhora de 58 anos mas ao mesmo tempo é uma menina de 2 anos. E a obra está impressa em papel fotográfico mas não é fotografia, é um texto que descreve várias fotografias preexistentes que o espectador não vê e tem de imaginar o que mostram de facto.

 

LC: É isso. São coisas que ficam marcadas na minha cabeça a nível material. Essas fotografias são de um álbum que foi feito pela minha mãe. São as únicas que eu poderia descrever sem as voltar a ver e que me impressionaram sempre pela qualidade que têm. Era uma tia minha, irmã do meu pai, que tinha uma máquina fotográfica muito boa e sabia apanhar as situações. Só há uma fotografia que não pertence a esse grupo, mas ficou incluída por causa da situação em si, é a da menina atrás de uma cortina transparente, a ver-se apesar de estar escondida, portanto. Nessa obra eu não queria representar, não queria imagens, queria escrever.

 

CR: Chamas às obras baseadas em som “textos sonoros”. Elas assentam quase sempre na tua voz, modelada de várias maneiras, interrogativa, assertiva, coloquial, sensual, etc. Qual a importância que dás à voz, enquanto material ou instrumento de trabalho? [Além do resultado em si que são os textos sonoros].

 

LC: Tirei o curso de escultura, mas não mexo em materiais. Quer dizer, também mexo, quando quero. Mas há na voz uma tridimensionalidade, uma coisa que tem a ver com o esculpir, que pode vir daí. A escultura no sentido convencional da escultura não me interessa. Acabei por encontrar a voz naturalmente, era um interesse que eu já tinha desde adolescente. Sempre achei muita graça às vozes, era muito sensível a elas. Comecei por ter uma proximidade grande, não tanto à cultura mas à língua francesa, aquela que era pronunciada pelos actores da nouvelle vague, uma coisa sensual, com tempo. Havia também um disco de “O Principezinho”, dito pelo [actor] Gérard Philipe e tudo isso me ficou, aquelas cadências do francês, apesar da cultura francesa não me interessar, foi ultrapassada pela cultura anglo-saxónica. O francês foi a primeira língua que eu aprendi, para aí com seis anos, e fiquei sempre ligada àquela cadência, um francês sensual, íntimo, com muito tempo, frases com muito tempo. Agora isso não me interessa nada, já transformei isso noutra coisa. Aliás, eu uso o inglês porque me interessou correr mais.

 

CR: Correr?

LC: O francês que eu tinha na cabeça era lento, e o inglês é muito sintético, exprime em poucas palavras aquilo que noutras línguas é um comboio de palavras. A língua corre, é curta e isso interessa-me.

 

CR: Eficaz será uma boa palavra? Parece haver uma lógica de eficácia no teu trabalho, que muitas vezes obtém o máximo efeito com um mínimo de meios.

 

LC: Sim, acho que tens razão. Não quero supérfluos, não tenho paciência. Gosto de limpar a coisa.

 

 

CR: Fizeste o curso de escultura no Ar.Co. Dizes que não te interessas especialmente pela escultura, mas os aspectos materiais são importantes nas tuas obras, isso vê-se até nas obras sonoras, na maneira como estão dispostas no espaço, na escolha dos equipamentos, a disposição dos cabos... Os textos sonoros não vivem sem os dispositivos físicos a partir dos quais se mostram?

 

LC: Não, nada disso é indiferente. Os altifalantes, onde estão, os cabos, se são descascados ou não... Tudo é para ser lido, há muita fisicalidade ali. A Isabel [Carlos] chama-lhes “esculturas sonoras” e eu percebo a ideia.

 

CR: Essas obras assentam em variações de frases muito curtas, encadeadas e prolongadas mais ou menos no tempo que não chegam a ser narrativas, antes uma espécie de enunciado breve. Gostas dessa rapidez, dessa concisão?

 

LC: Pelos vistos. Eu não ando a pensar nisso, mas parece que sim, que gosto. Também gosto de pôr os textos em loop. Uma coisa que eu fazia quando era adolescente era repetir palavras para mim mesma. Repetia com a mesma entoação para perceber bem qual era a característica daquela palavra com aquela entoação. Fazia estes jogos, que nunca pensei que viessem a alimentar o meu trabalho. Muitos anos depois, o primeiro meio que utilizei foi o som, para fazer os textos sonoros. Portanto, isto já vinha de muito longe. Eu fazia loops, fazia entoações de vozes e repetia e modificava um bocadinho em frente ao espelho, metia-me na casa de banho horas. E fazia isso com textos em francês, não que eu falasse francês fluentemente, mas sabia o suficiente, frases curtas, lá está. Sabes quando uma pessoa está a comer um doce e saboreia muito devagarinho? Era assim que eu fazia, saboreava as palavras, repetindo-as.

 

CR: A repetição e a pequena variação estão muito presentes nos teus textos sonoros, que por vezes me lembram a música minimalista, mas também na fotografia e nos desenhos. É curioso porque há outra dimensão do teu trabalho onde eu também encontro a repetição e a variação: nas obras que desenhas na parede do museu as vezes que forem precisas até ficarem bem feitas, nos desenhos que refazes por causa de um erro mínimo que compromete toda a série, como acontece em Relva, ou nas gravações que repetes porque da primeira vez afinal não foram gravadas, como aconteceu com Drop the bomb. Isso é invisível para o espectador mas é, sobretudo, muito performativo.

 

LC: Costumo dizer que estes pequenos textos sonoros são pequenas performances. Têm um lado performativo e a repetição faz parte do processo. No caso de Relva, por exemplo, apesar de ser ainda repetição, quando há um erro há uma disrupção e eu elimino imediatamente porque sei quando se olha para uma coisa e se vê logo o erro, “está ali”. Isso aconteceu num dos desenhos mais difíceis de Relva, um dos densos, e eu não queria acreditar que tinha de refazer tudo outra vez por causa de um traço que estava a mais.

 

CR: E a relação das tuas obras com o espaço e do teu próprio corpo com o espaço, como funciona?

 

LC: É muito importante. Para me matarem, não precisavam de me dar um tiro, ou de me envenenar. Pusessem-me num espaço com umas dimensões inumanas, desconcertantes, eu morria. Eu, num cela, morria. Uma vez fui a um casamento para os lados de Queluz, numa sala de um palácio em que as janelas eram no topo das paredes, terríveis. Tive pesadelos por causa dessas janelas.

 

CR: As qualidades dos espaços parecem afectar-te mais do que à maioria das pessoas.

 

LC: Sim, sou muito sensível às casas, aos espaços.

 

CR: Como foi instalar as obras na Sala das Caldeiras, que é um espaço poderoso em termos visuais e imagéticos?

 

LC: Isso é o trabalho da Isabel, que está perfeito. Eu já lhe disse, “aqui há duas obras de arte: a minha, que tinha de ser, e a tua montagem”. Eu nem sabia que ela conhecia tão bem o meu trabalho. E acho que as pessoas sentiram isso na inauguração, que foi um momento muito forte, as pessoas acharam que havia uma magia nisto, está tudo impecável.

 

CR: O teu trabalho implica esforço físico.

 

LC: Às vezes sim, muito esforço físico. O Drop the bomb, por exemplo, às vezes pergunto-me, “mas porque é que eu tenho de sofrer, com as ideias que tenho?”, e fico muito chateada comigo, porque sou muito preguiçosa. E penso nestas coisas, “porque é que eu não fiquei quieta?” Os slides da Areia, não queiras saber o que foi fazer aquilo. Percorri uma praia enorme, de cócoras, à procura e a escolher os “aldeamentos” de fragmentos microscópicos de conchas que eu queria e que tinham de ser quarenta, tentando manter a máquina fotográfica sempre à mesma distância do chão, debaixo de um calor de Agosto brutal que queimou a máquina! Ainda consegui tirar o rolo, mas a máquina nunca mais trabalhou. Nesse verão fiz três obras, essa da areia, Side by side e The thing, que não está na exposição. Rendeu muito, esse verão.

 

CR: Aliás, e contra essa ideia da preguiça, deve haver anos em que trabalhas muitíssimo a avaliar pelo currículo que está na tua obra CV. Só em 2018 fizeste ou participaste em treze exposições.

 

LC: Foi uma brutalidade. Mas sabes porque é que fiz essa obra? Quando participo em exposições pedem-me sempre um currículo, muitas vezes curto, 120 palavras, 300 palavras. Isto dá um trabalho que eu não gosto de fazer porque tenho de escolher o que incluo e não incluo, tenho de resumir, enfim. E depois às vezes publicam apenas uma linha ou duas. E quando participei de uma exposição no Festival Queer, no Cinema São Jorge, resolvi fazer aquele trabalho que tem apenas os anos das exposições que fiz. Se é para resumir, já está!

 

 

Luisa Cunha

MAAT

 

Catarina Rosendo [Lisboa, 1972] Historiadora da arte. Investigadora Integrada do Instituto de História da Arte [FCSH-UNL]. Desenvolveu, entre 2014 e 2017, investigação curatorial para a Colecção do Museu de Arte Contemporânea da Fundação de Serralves. Integrou, entre 1995-2006, o Serviço de Exposições da Casa da Cerca — Centro de Arte Contemporânea [Almada]. Co-autora do filme sobre o escultor Alberto Carneiro, Dificilmente o que habita perto da origem abandona o lugar [2008]. Autora de livros e catálogos de exposição e de ensaios para catálogos de exposição, actas de congressos e imprensa. Prémio [ex aequo] da Academia Nacional de Belas-Artes, 2008, com o livro Alberto Carneiro, os primeiros anos, 1963-1975 [2007]. Actualmente, lecciona no Mestrado em Estudos Curatoriais no Colégio das Artes — Universidade de Coimbra.

 

A autora não segue o novo acordo ortográfico. 

 

 

 


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Luisa Cunha: Hello! Are you there?. Vistas gerais da exposição no MAAT. Fotos: Cortesia da artista e MAAT/Fundação EDP.

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