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Unidade dissolvida num estado de união

Sofia Lemos

 

 

Sentir tudo de todas as maneiras,

Viver tudo de todos os lados,

Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,

Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos

Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo.[1]

 

 

 

À medida que a nossa narração social do mundo se vai ancorando cada vez mais numa convulsão social e ambiental, talvez também recaia sobre nós um desejo tão ou mais intenso de abrir mão de um mundo que assenta na perda e fungibilidade da vida. Em compresença com o futuro, esta destrutiva ordem histórica tem determinado o que é possível fazer e imaginar hoje, desde a forma como pensamos, sentimos, pressentimos e conhecemos até à maneira como experienciamos as nossas fissuras interiores.

No momento em que o chamado Consenso de Washington fechou a porta às possibilidades intrínsecas aos movimentos sociais e laborais bem como às lutas de emancipação anticolonial dos anos 1960 e '70, fomos transportados para "um tempo caracterizado por uma imensa desertificação de alternativas" no qual, como escreve o sociólogo Boaventura de Sousa Santos, "é tão difícil imaginar o fim do capitalismo, do colonialismo e do patriarcado como imaginar que estes jamais terão um fim. A imaginação do fim é agora corrompida pelo fim da imaginação."[2] Hoje, assistimos a um ataque sem precedente à imaginação através das formas emergentes de repressão estatal, de uma desigualdade crescente, dos nacionalismos ressurgentes, da disrupção ambiental, das ideologias de supremacia racista alimentadas pelas tecnologias digitais e das violações dos direitos humanos. A forte presença do fascismo de extrema-direita e do radicalismo na última década não só advém de um continuado desinvestimento neoliberal, mas também evidencia a atual crise governativa que testemunhamos.

Ao exercer controlo sobre toda e qualquer alternativa, o atual sistema de realidade existe hoje numa junção histórica — aquilo que o historiador Nikhil Pal Singh astutamente designou como "decomposição hegemónica" — em que está preparado para recorrer a formas cada vez mais cruéis e virulentas de violência enquanto reação a qualquer tentativa de disrupção. Com a intensificação de visões diferenciadas para a restruturação da sociedade capitalista, que se encontra à beira do colapso ecológico, é preciso questionar a paralisia que hoje experienciamos, tanto a nível individual como coletivo, e que desalenta a nossa capacidade de enfrentar os crescentes avanços de uma ordem mundial em plena falência. Nesta conjuntura, abordar a cronopolítica — em outras palavras, a distribuição desigual dos nossos passados coloniais, presentes complexos e futuros possíveis — torna-se imperativo para averiguar quais são exatamente os termos da restruturação capitalista, as forças que a organizam e, acima de tudo, se queremos efetivamente contribuir para tal.

 

-unidade

 

Não conseguimos agir de forma diferente, nem pensar ou imaginar de forma diferente, por causa da ausência, no presente sistema de irrealidade, dos requisitos básicos para implementar qualquer linha alternativa de ação e imaginação.[3]

 

 

Tal como o filósofo Federico Campagna, estou convencida de que a necessidade mais urgente dos nossos dias é a de compreender o que é o capitalismo em termos materialístico-cosmológicos e desenvolver ferramentas para superar a crise contemporânea da ação e da imaginação. As velhas formas de conhecimento já não são suficientes para remediar esta lacuna. Parafraseando o filósofo Michael Marder, as massas de informação, de emissões e de produtos indecomponíveis dos dias de hoje são as epítomes da teoria das formas de Platão, as quatro causas de Aristóteles, as taxonomias de Lineu, a substância de Spinoza, o dualismo mente-corpo de Descartes, a coisa-em-si de Kant, a filosofia da história de Hegel, e por aí adiante. Estruturando-se por um conjunto de narrativas lineares do progresso que ainda são usadas no ocidente em qualquer disciplina, incluindo aqui a forma como toda e qualquer ciência organiza a sua epistemologia, o trabalho académico contemporâneo está preso na sua atual organização do conhecimento. Nesta narrativa do progresso, a experiência do mundo está indexada nas categorias estáveis, empíricas e imutáveis que alicerçaram a modernidade colonial, em resposta às quais é preciso descortinar como é que acabámos a investigar e representar o mundo através de um tempo que é um absoluto universal, que segue sempre em frente, que se constitui apenas por sucessões espaciais.

O sufixo -unidade está no centro da questão. A unidade é representada pela mónada pitagórica e pelo Uno neoplatónico enquanto princípio que representa completude e um estado de plenitude. O uno existe sobre tudo o resto e enquanto perfeição. O elemento unitário, por sua vez, existe na infindável cadeia de produção e no crescimento sem limites que caracterizam os atuais modos de produção capitalistas. Na medida em que se reduz a um nível de instrumentalidade pura, o elemento unitário existe num estado de desintegração com o mundo. Tanto a unidade como o elemento unitário pressupõem um estado de autodomínio, uma espécie de posse que não destoa junto do aparecimento do sujeito moderno europeu sob a forma do homem branco, detentor legal de direitos. Para ele, o elemento unitário, do latim unitas, "qualidade daquilo que é uno ou idêntico, concordância", possibilita o "privilégio; imunidade de ataques, inviolabilidade", a raiz do latim immunitas, ou "a isenção de levar a cabo serviço ou instrução pública". Também para ele, a unidade na política é communitas, um estado em que todos os elementos unitários são iguais a si mesmos e permitem partilhar uma experiência comum, um entendimento mudo da inviolabilidade de cada unidade perante a lei.

A inviolabilidade, o absoluto e o uno são ideias a que umx artista visual provavelmente não recorreria para descrever a sua experiência. Gostaria então de sugerir que a série de crises entrecruzadas a que "Comunidade enquanto Imunidade" pretende dar resposta nos permite, primeiro, pôr de parte a raiz da linguagem representacional que constitui ambos os conceitos e, depois, procurar des-escrever e des-aprender as presentes definições do modo relacional do ser-humano. Se há muito que o papel da arte é levantar perguntas profundas sobre a nossa realidade e não só imaginar como também ativar diferentes cosmogonias, que diálogos, conversas, parlamentos e assembleias podemos nós ensaiar para descrever a reunião das perspetivas, dos conhecimentos e das experiências que atravessam interseccionalmente as nossas vidas enquanto artistas, curadores e trabalhadores da Cultura em atividade em, a partir de e fora de Portugal? Que alianças e formas de viver-comum se requerem para alargar os limites daquilo que hoje é pensável?

 

Eikos mythos

 

Constituirá uma forma de resistência contra a injustiça a passagem dos substantivos para os verbos, para o ser-enquanto-fazer, dxs amigxs e aliadxs para a amizade e camaradagem que nos orientam no sentido de nos ajudarmos uns aos outros para prosperarmos. Esta abordagem requer tempo, bem como um empenho redobrado em trabalhar mais devagar, em possibilitar que os outros e nós próprios estejamos plenamente presentes, em deixar-nos descansar, por oposição às lógicas de exaustão e extração que alimentam os modos de produção capitalistas. Para conseguirmos desconstruir estes entendimentos e, em última instância, transformá-los, a nossa abordagem, seguindo o filosofo e teórico político Achille Mbembe, deve levar a cabo o trabalho de "reparar a razão": de procurar uma pluralidade de perspetivas, mundividências, formas de ser e pertencer, formas de saber (epistemologias) e metodologias em que a prática artística, a poética, a investigação académica e a praxis política possam manifestar-se e articular-se entre si.

A História, com maiúscula inicial, é escrita por intelectuais de vanguarda que não têm lugar no nosso apelo à reparação da razão. Pelo contrário, como aponta Sousa Santos, um novo sistema de realidade exigiria "intelectuais de retaguarda", que contribuiriam com o seu conhecimento para reforçar pedagogias que possibilitassem o desenvolvimento dos movimentos e lutas sociais. Para Sousa Santos, requer-se uma viragem epistemológica para que se recupere a ideia de que há alternativas para o atual sistema, moldado pelo patriarcado, pelo colonialismo e pelo capitalismo, bem como para reconhecer os esforços dxs visionárixs, artistas, académicxs e ativistas que deram largos e significativos passos a fim de as trazer para um lugar de evidência.

A arte não procura clarificar, mas sim complicar; não dá respostas nem soluções; e não corrige crenças dominantes. Ainda assim, de todas as disciplinas, será provavelmente a mais capaz de imaginar novas forças cosmogónicas e, com elas, novos mundos. No centro desta experimentação estão diferentes formas de saber baseadas na experiência, na sensação, na corporificação, na pluralidade e na posicionalidade que exigem o trabalho afetivo de reconhecer a disparidade entre as nossas posições e de as abordar. Com isto, podemos remediar não só a nossa experiência da linguagem mas também, como tal, a nossa experiência de nós próprios enquanto entidades linguisticamente singulares e múltiplas. Pensemos no eikos mythos de Álvaro de Campos, ou na sua descrição do mundo sensível: o corpo é subtil, o ser é ténue, e a sensação é indefinida. O uno, em Campos, é multidimensional — unidade dissolvida num estado de união. Tomando este ponto de partida, quais seriam as consequências para a lacuna entre ação e imaginação?

 

 

Sofia Lemos é curadora e escritora. É Curadora na TBA21 | Thyssen-Bornemisza Art Contemporary. Entre 2018 e 2021, foi Curadora de Programas Públicos e Investigação na Nottingham Contemporary.

 

 


 

Notas:

 

[1] Álvaro de Campos/Fernando Pessoa, “A Passagem das Horas. Ode Sensacionalista”, Fernando Pessoa, Obra Poética de Fernando Pessoa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.

[2] Boaventura de Sousa Santos, The End of the Cognitive Empire, Durham: Duke University Press, 2018, ix.

[3] Federico Campagna, Technic and Magic: The Reconstruction of Reality, Londres: Bloomsbury, 2018, 88.

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