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Notificação de óbito

Carolina Elis

 

Quando 2020 chegou, eu morri.

Morri inúmeras vezes.

Morri com a pandemia. Morri com a distância de dois metros. Morri com a sensação de perigo iminente. Morri quando a precariedade virou a "nova" realidade. Morri quando começámos a desejar, coletivamente, voltarmos à normalidade. Ela nunca existiu para início de conversa. Morri quando perdemos pessoas próximas e distantes, enquanto o governo tentou desesperadamente salvar uma economia que há mais de 10 anos parece areia movediça que suga a vida de quem não tem por onde pegar. Morri quando, na segurança de nossas casas, fomos todos às janelas aplaudir os trabalhadores essenciais. A essencialidade que vale um salário mínimo que não paga um mês de renda. Morri quando, mais uma vez, fomos às janelas aplaudir os profissionais da saúde que estão na linha da frente. Ainda se ouvia o eco dos aplausos quando se soube que meio milhão de portugueses votaram num candidato que acredita que a saúde não é um direito universal. Morri quando as armas do ultramar pegaram Bruno Candé em plena luz do dia. No mesmo ano em que Alcindo Monteiro recebia uma placa em sua memória, 25 anos depois de sua morte. Vergonhosamente, ainda estávamos no processo de entender o que a sua morte significava. Morri ainda mais quando nas redes sociais partilhámos, dia e noite, George Floyd a perder o seu direito de respirar, Breonna Taylor a perder o seu direito de dormir. Morri quando dizeres racistas apareceram nas paredes de diferentes instituições. Morri porque quando os protestos que inflamaram o mundo chegaram a Portugal a resposta foi indignação e rejeição de candidatos protofascistas a artistas renomados. Morri quando não houve a mesma indignação às tochas acesas pela paixão fascista. Morri quando assistimos, silenciosos, a Rodrigo Saturnino ser silenciado por apontar um elefante gigantesco na sala que todos nós, comunidade cultural de Portugal, partilhamos. Deliciamo-nos na sua arte, na sua visão, na sua estética enquanto ignoramos as suas palavras. Agora temos dois elefantes nessa sala que ficou ainda mais pequena durante a pandemia. Talvez assim seja mais fácil partilharmos o drink do fim da tarde. Morri com a realização de que para ser trabalhador cultural, em Portugal, precisamos ter imagem e semelhança e, com sorte, algum dinheiro.

Em Portugal não se vive pela arte, morre-se. E eu morri.

Você pode me ouvir?

 

Carolina Elis, Perco-me dentro, encontro-me fora. (2020). Ilustração produzida para a publicação Fazer de Casa Labirinto, edição Balcony Gallery, 2020.

 

Carolina Elis (Belo Horizonte, Brasil, 1993) vive e trabalha em Lisboa. É uma artista autodidata e dedica-se, maioritariamente, à ilustração, ao desenho digital e à colagem. O seu trabalho tem como base a sua experiência enquanto imigrante, negra, queer e doente crónica. Assume-se como “artivista” e, através de narrativas negras, procura transgredir o padrão eurocentrado de beleza para demonstrar a experiência e resistência dos corpos negros. Tem participado em várias publicações independentes, foi colaboradora do blogue Cidade das Damas e integrou o coletivo Estrela Decadente até 2020.

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