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It's a date: Pedro Moreira

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Alberta Romano

 

It’s a date é uma rubrica da Contemporânea da autoria de Alberta Romano, dedicada a visitas a ateliês de artistas de Lisboa e de todo o mundo, tanto físicas como online.

 

Episódio nº 7:

Pedro Moreira

 

 

Lisboa, novembro de 2021

 

As coisas nunca acontecem por acaso.

 

Já faz algum tempo desde a última vez que fui a um ateliê com o propósito de escrever sobre a visita para publicação numa revista. Ao longo destes últimos meses que me distanciaram de novas visitas, foi-me recorrente o pensamento de que existem certos mecanismos e estruturas que só funcionam em certos momentos. It's a date é um desses muitos formatos que nasceram durante a pandemia, um momento em que, compreensivelmente, se nos acometeu uma ânsia brutal de ter dates, prazos de entrega, bem como uma vontade de partilhar basicamente qualquer interação que tivéssemos com os outros.

Hoje, a situação já é diferente: os compromissos sucedem-se uns aos outros, e as pessoas encontram-se com maior frequência, ao passo que a comunicação social continua a transmitir informações contrastantes. Não surpreende, portanto, que ainda nos sintamos um bocadinho confusos.

Sabes quando, por exemplo, estás no quarto e a visão fica turva ao olhar para algum ponto indefinido no espaço, e de repente tudo à tua volta parece cair numa espécie de surdina? Ultimamente, a quantidade de coisas que há para fazer tem-me deixado exatamente assim, mas não apenas durante meia dúzia de minutos — às vezes dura um dia inteiro, como se tivesse perdido o hábito de captar todo aquele ruído e como se o meu corpo precisasse de mais tempo para descansar numa atmosfera rarefeita, em surdina, suspensa.

 

"Nunca entendi muito bem a diferença entre real e imaginário. A vossa espécie [humanos] passa grande parte da sua vida a dormir. Isto ajuda-vos a processar informação. Quando neste estado, vocês vivem imagens imaginárias a que chamam "sonhos". Quando estão acordados, passam grande parte do tempo a processar imagens e sons. Informação que vos é transmitida. Imagens que enformam a vossa realidade. Mas todas estas coisas, de certa forma, são ilusões." [1]

 

 

Para me encontrar com Pedro Moreira, segui para o Porto pouco após chegar a Lisboa, depois de ter passado uma semana em Palermo. Agora olho para esses dias como uma única e longa viagem.

Assim que cheguei ao Porto, fui ao Museu de Serralves.

De bom grado me deixei perder na exposição Modus Operandi, que reúne um conjunto de obras que fazem parte da coleção desde 1989. Ao entrar na sala da arte povera, julguei que me ia despachar rapidamente — até pensei em passar a sala à frente —, mas, como não raras vezes é o caso com arte povera, a surpreendente delicadeza das peças conseguiu agarrar a minha cansada atenção. Entrare nell’opera [Entrar na obra], 1971, de Giovanni Anselmo, imperava na sala. A obra é simultaneamente uma fotografia de uma paisagem e um autorretrato, impressos numa tela enorme. Diz a lenda que Anselmo posicionou a câmara numa colina, ajustou o foco para um ponto específico e depois correu nessa direção até lá chegar. Entrare nell’opera é não apenas uma imagem na qual o artista assevera a vastidão da natureza em relação ao ser humano, mas também uma inflexão frenética para o infinito de um espaço inesgotável; sobretudo, trata-se de uma imersão desamparada na omnipotência da natureza.

 

"Mas nós [os Tripplesapiens] temos emoções idênticas às da vossa espécie. A nossa imortalidade permite-nos viver e desfrutar daquilo que nos rodeia, ser terra-a-terra, estar presentes. Valorizamos o que nos rodeia porque não nos é uma ameaça. A maior parte das coisas que enformam a nossa existência […] são coisas às quais a vossa espécie [humanos] também tem acesso. Mesmo que muitas vezes vocês as tomem por garantidas." [2]

 

Passear por uma cidade nova lembrou-me quão agradável é esta sensação de me deixar perder algures. Sempre o soube, mas, nos últimos tempos, parecia tê-lo esquecido. O isolamento compulsório, a dada altura, tornou-se confortável; e, enquanto viajava sozinha, descobri com orgulho que um dos meus refúgios favoritos parece ter a forma de uma independência porque sim.

 

"Todos aqueles que aqui são conduzidos decorrem de uma relação de causa-efeito. Muitos julgam deter total controlo sobre as escolhas que fazem, mas o caminho que os indivíduos levam, incluindo aqueles capazes de autoidentificação, nunca se desvia sobremaneira de um conjunto de movimentos predeterminados." [3]

 

 

Naquela manhã, a caminho do ateliê de Pedro, acabei finalmente um pequeno livro que já fazia um mês que levava comigo para qualquer lado: Da Terra à Lua, de Jules Verne.

Nunca fui grande fã de romances de ficção científica, e ainda menos quando falam do espaço, de galáxias e de cálculos astronómicos. No entanto, encontrei este livro na biblioteca do meu avô — é uma velha edição de 1963 que provavelmente fora comprada para oferecer ao meu pai. A história, na qual os três protagonistas estão dispostos a isolar-se do resto do mundo e talvez até a morrer por amor à sua investigação, foi-me particularmente inspiradora. Ao mesmo tempo, enquanto lia, suscitou-me algumas questões: será que o meu pai se entusiasmava com esta ideia de viagem galáctica quando era mais novo? O que é que terá pensado quando a Apollo 11 finalmente aterrou na lua? Acima de tudo, alguma vez sonhou em fazer essa viagem — e, se sim, o que esperava encontrar?

 

"A sobrevivência está inscrita no ADN de todo e qualquer ser vivo; é como que um código, ou um software. O mar e a terra dão-nos aquilo de que precisamos para continuarmos a viver neste vastíssimo multiverso. Mas já pensaste na vida eterna? Parece-me um formidável empreendimento para toda a humanidade […]." [4]

 

 

Finalmente cheguei ao ateliê; por essa altura, ainda não sabia que todas as peças de Pedro são feitas a partir da perspetiva de uma das personagens do vídeo The Tripplesapiens: Pilot, 2018 (aonde fui buscar todas as anteriores citações). Este vídeo é o primeiro episódio do projeto Tripplesapiens, concebido por Pedro numa residência cujos intervenientes se isolaram com videojogos no campo. O mundo habitado pelos Tripplesapiens é um mundo utópico onde os seres transcendem géneros, raças e nacionalidades. Os Tripplesapiens são imortais, e passam o tempo a desenvolver as suas capacidades individuais e a aprender mais coisas sobre mundos novos e antigos. Tlön (um dos Tripplesapiens), que serve de guia ao espectador em quase todos os trabalhos de artista, refere-se sempre a Pedro como "o humano".

Pedro: "Foi em 2017, quando basicamente me isolei em residência no meio de uma região rural. Não tive contacto com ninguém durante um mês inteiro. A minha mãe trazia-me comida, deixando-a à porta de casa. Durante esse período, só acordava, jogava, comia, jogava outra vez e ia dormir. Mas também ia passear pela zona, e foi aí que me comecei a sentir um bocado confuse com os sons e as paisagens. Na altura, passava-me pela cabeça que talvez as coisas simplesmente estivessem programadas para funcionar daquela maneira."

 

Alberta: "Como eram os teus sonhos nessa altura?"

 

Pedro: "Sentia que os meus sonhos eram mais reais do que a minha realidade."

 

Depois, Pedro mostrou-me algumas esculturas: seres com dentes, "nus", mas também assustadores. Algumas faziam-me lembrar tubérculos, o que não lhes minguava a agressividade de todo; pelo contrário, tornavam-se ainda mais perigosos, já que, pensava eu, também seriam capazes de existir debaixo da terra.

Mas não demorou muito até Pedro me mostrar outro jogo — desta feita, um jogo de mesa, não de computador. A Primeira Pedra, 2021, é um jogo no qual os diferentes jogadores podem jogar uns com os outros ou uns contra os outros para resolver uma série de problemas situacionais que lhes dão pontos. Aquilo que me chamou mais a atenção foram os peões, as verdadeiras estrelas do jogo — feitos de barro, são seres hieráticos e imperturbáveis de cujos corpos nascem pequenos ganchos nos quais podemos pendurar as pedras que vamos ganhando ao longo das jogadas.

Um dos peões, o Sporekin, fez-me lembrar Il Guerriero di Capestrano [O Guerreiro de Capestrano], uma grande escultura em calcário de um guerreiro piceno que remonta ao século VI a.C. e que, hoje em dia, se encontra no Museu Nacional de Arqueologia de Abruzzo, a região italiana em que nasci e cresci. O guerreiro tem um chapéu com uma aba enorme, um disco que lhe protege o peito e as costas, um cinto largo, alguns colares e braçais. Embora estudos recentes identifiquem o guerreiro como um homem, o encanto desta escultura sempre se conteve na sua ambiguidade. As curvas, os adornos sempre fizeram do guerreiro de Capestrano uma personagem misteriosa com a qual era muito fácil passar o dia a sonhar, especialmente numa altura em que, nos tempos da minha juventude, na década de 90, a moda parecia impor normas inflexivelmente binárias.

Aquilo que Pedro diz e afirma através dos seus jogos confere: "Ao jogar, consegues aprender novas coisas, desenvolver novas capacidades e refletir sobre ti mesme."

Ainda assim, ouvimos recorrentemente frases como "Para que é desperdiças o teu tempo nesses jogos?" "Não podias ir antes fazer algo mais produtivo?"

Acho que a melhor forma de responder a estas questões, mas também de terminar este texto, será uma revisitação a uma frase de Pedro, assinada mais precisamente pela sua persona virtual Ped.Moreira, que uma vez leu algo parecido, reinterpretando da seguinte maneira:

"Experienciar pode ser gerador; não precisas de ser autore de tudo."

 

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Pedro Moreira é ume artista queer multirracial cuja obra se contextualiza na linguagem do criacionismo e nos seus paralelismos com paisagens virtualmente terraformadas, como é o caso dos videojogos e das redes sociais, explorando a relação entre a idealização dos espaços virtuais e a fenomenologia teológica ou mitológica/utópica. Recorrendo ao worldbuilding enquanto ferramenta narrativa, a pesquisa de Moreira materializa-se através da sua prática multidisciplinar em vídeos, instalações, performances e esculturas, retendo tipicamente algum grau de interatividade. As suas exposições mais recentes incluem Curva, CACE Cultural (Porto, 2021), Sarau (Porto, 2021) Generaciones (performer), La Casa Encendida (Madrid, 2020), Polly’s Wood, Goleb (Amesterdão, 2019), Corpo(a)Terra (Ourense, 2019), A Ripple in Time a Footprint of Carbon (individual), Nigredo Espacio (Madrid, 2019), Collectives Not Collections, Raven Row (Londres, 2019) Me Gustas Pixelad_, La Casa Encendida (Madrid, 2019), Skeuomorph (individual), Picnic Gallery (Londres, 2019), Hypermesh, Assembly Point (Londres, 2019), Un_Becoming, SomoS (Berlim, 2018) e Bored but Secured, Zone d’Utopie Temporaire (Lisboa, 2018). Antigue camarada do coletivo PACTO Research, Moreira esteve envolvido numa variedade de eventos organizados pelo PACTO, tal como PACTO’s Pool Party, Public Pool Gallery (Los Angeles, 2019), This Will Take Time (Los Angeles, 2019) Collectives as Catalysts, Raven Row (Londres, 2019), PACTO, 18 Malden Road (Londres, 2018), COMPACTO, Centro de Artes Visuais de Aarhus (Aarhus, 2018), e It’s Their Thought That Counts, Croydon Art Store (Londres, 2018).

 

 

Alberta Romano é historiadora de arte e curadora de arte contemporânea. Nasceu em 1991 em Pescara. Atualmente é curadora da Kunsthalle Lissabon. Desde 2017, tem trabalhado com a Fundação CRC em Cuneo, coordenando as aquisições para a coleção de arte contemporânea desta instituição. Depois de se formar em História de Arte na La Sapienza em Roma e terminar o Mestrado em Culturas Visuais e Práticas Curatoriais da Academia de Belas Artes de Brera, em Milão, frequentou o programa curatorial CAMPO16 na Fundação Sandretto Re Rebaudengo, em Turim. Escreveu para publicações como Artforum, Flash Art, Contemporânea, Kabul Magazine e outras revistas.

 

Imagens: Cortesia de Pedro Moreira.

 

Tradução do inglês por Diogo Montenegro.

 

 


Notas:

[1] Discurso de Tion, in: The Tripplesapiens: Pilot, 2018, de Pedro Moreira.

[2] Ibid.

[3] Ibid.

[4] Ibid.

[5] A Level Playing Field, 2017

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