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Lisbon roundup #1

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Isabel Nogueira

 

Esta rubrica da Contemporânea elege quatro exposições circunscritas a um tempo e lugar específicos, neste caso a rentrée da cidade de Lisboa. Um dos objectivos é mapear o cenário artístico da cidade, identificar tendências de fundo e reflectir sobre as propostas escolhidas.

 

Roundup #1

Lisboa: vários locais

 

Depois de o mundo praticamente ter parado, de tantos projectos e expectativas terem sucumbido, bem como perdas e danos de variada ordem, foi-se regressando a um lugar de relativa normalidade. Enfim, o que quer que isso represente. Mas, e concretamente no domínio das artes visuais, voltou-se em força. Muitas exposições e eventos a acontecerem e, sobretudo, propostas de notória qualidade. É daqueles momentos em que se torna prazeroso ser-se espectador. E a actividade crítica parte de uma actividade como espectador a que se segue, claro, um processo de elaboração sobre o objecto, assumindo-se este como o ponto de partida e de estímulo para uma qualquer viagem. E também por aqui voltámos. Para o Roundup escolhemos quatro eventos/exposições sobre as quais nos faz sentido reflectir, de modo relativamente breve, tornando-se passível operar uma proposta de panorama regular nas artes visuais.

 

Dealmeida Esilva

L.O.S.E.R. — Largar O Ser É Raro 

@Balcony Contemporary Art Gallery

 

A pintura tem-se vivenciado com intensidade. Cada momento vai tendo os seus suportes e inquietações. Na verdade, há umas décadas, a maioria dos artistas plásticos trabalhava sobretudo noutros suportes, como a instalação, a fotografia ou o vídeo. Temos vindo a observar uma espécie de “regresso à pintura”. Esta expressão naturalmente que não a trazemos com inocência ou acaso. Como se sabe, nos anos 80, tendo como mote um pós-modernismo citador, historicista e irónico, proporia um notável e luxuriante “regresso à pintura”, depois de os conceptualismos — em sentido lato — terem (quase) declarado a sua morte. Não efectivamente a “morte” da pintura enquanto técnica, suporte e linguagem, mas a “morte” da figuração, iniciada naquele processo de abstracção, que remonta ao século XIX e ao começo da arte moderna.

E este início também não acarreta acaso. Entramos na pintura de Dealmeida Esilva e a paleta é luxuriante e intensa, até sensorial. As obras possuem uma escala considerável, que efectivamente prende o olhar do espectador e parece assumir uma porta de entrada directa. Por vezes as cores apresentam fortes contrastes cromáticos, nomeadamente entre tons quentes e tons frios, assim como contornos marcantes, quase ao modo fauvista. Aliás, alguns trabalhos remetem para este universo. A pintura Bathers (2020), por exemplo, convoca corpos de um azul intenso e de pose matissiana, ou até ainda cezanniana. Os rostos são inquietantes. Possivelmente trata-se do elemento mais inusitado destas pinturas, que precisamente as vai pontuando. São rostos-máscara que nos olham sem olhos, como um coro da tragédia grega, talvez arauto de alguma Verdade. As referências à pintura e à História ocidental continuam, nomeadamente pela evocação clara de Francisco de Goya e das suas “pinturas negras”. E, literal ou metaforicamente, continuamos no universo da cor, que efectivamente é uma matriz do conjunto em causa. Nesta obra ainda a presença da caveira evocativa da vanitas e do sentido efémero da vida, mas também da ars moriendi  (“arte de morrer”), no consequente preparo — cristão — para uma “boa morte”. Talvez “um largar o Ser”.

As referências históricas permanecem em Three Graces (2021), por exemplo. Uma vez mais, a subversão faz-se notar. Em vez das três belas mulheres entrelaçadas numa dança, filhas de Zeus e amantes de Apolo, temos três máscaras. Os vasos clássicos parecem, em simultâneo, encerrar também qualquer enigma ou narrativa. As referência iconográficas clássicas — Apolo, Prometeu — são diversas e vão-se revelando à medida que a própria exposição se revela ao espectador, num conjunto referencial sofisticado e visualmente forte.

                 

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Dealmeida Esilva. L.O.S.E.R. — Largar O Ser É Raro. Vistas gerais da exposiçao na Balcony Contemporary Art Gallery. Fotos: Nikolai Nekh. Cortesia de Balcony Contemporary Art Gallery. 

 

 

Tiago Baptista

— Febre 

@ZDB—Galeria Zé dos Bois

 

Continuamos na pintura, numa curadoria de Natxo Checa. Agora a escala é subvertida, variável, troca as voltas ao espectador, parece brincar com ele. O jogo é outro. Qualquer coisa do banal ao fatal. Quer dizer, da simplicidade directa de uma bela talhada de melancia a um qualquer acontecimento que parece estar em suspensão, escondido na próxima sala. E, talvez, pronto a atacar. Aqui não é de se fiar na doçura. Talvez ela seja uma doçura inebriante, eventualmente febril. À pintura são intercalados — mas expostos na parede, como se mantivesse a forma de apresentação bidimensional — objectos: um ninho de pássaro, por exemplo. Como se de se um readymade se tratasse. Aliás, de um modo surpreendente, surge na parede uma Mão (1973), de João Vieira. Quer dizer, um readymade ela própria neste contexto. A mão (do artista) já existente.  

A sensação que se tem de imediato é a de uma entrada num enigma. A pintura de Tiago Baptista é de pendor realista e rigoroso, o que provoca a tentativa de organização narrativa do conjunto. E essa narrativa talvez, afinal, não exista. A não ser eventualmente encerrada no quadro que a contém. E, neste sentido, recordamos a tese de André Bazin, mediante a qual o quadro (pintura) seria centrípeto e o ecrã (cinema) centrífugo (Qu’est-ce que le cinéma?, 1958-1962), isto é, o quadro encerraria em si o assunto, a totalidade da narrativa. Ou, ao contrário, poderá esta pintura, afinal, contar isoladamente uma história? Nunca vamos saber. Curiosamente, o espectador parece andar sistematicamente à procura do raccord cinematográfico, da conexão e do sentido.

O virtuosismo técnico é inequívoco, particularmente evidente na atmosfera de animalia que pontua a exposição. Outras vezes o mistério aparece literalmente numa figura de um fantasma, por exemplo, ou de outra qualquer figura inusitada, até sinistra. A pintura encerra também alguma teatralidade. O pano preto que mostra a ave pernalta. E voltamos ao início. Qual é o mistério? Seguramente, e pelo menos, o mistério da pintura em si e da sua (eterna) possibilidade de reinvenção e de ser espaço de perplexidade.

 

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Tiago Baptista. Febre. Vistas da exposição na ZDB. Fotos: Bruno Lopes. Cortesia do artista e ZDB: Galeria Zé dos Bois. 

 

Klaus Mosettig

— It’s not About me Here —

@ UMA LULIK_

 

Claro que é. É-o sempre. A ironia atravessa a sala da galeria. Klaus Mosettig apresenta uma série de trabalhos a grafite precisamente evocativos de um estado de espírito, de um momento, de uma qualquer situação potencialmente vivenciada: "lovers and losers", "mother fucker". Profundamente pessoal e directo. Tal como as palavras e o seu desenho; a sua visualidade. O gesto e a emoção fundem-se numa sobriedade bicromática — branco e negro — intensa, profunda e reveladora. Aliás, este universo visual reporta-nos, de algum modo, ao expressionismo abstracto da designada “Escola de Nova Iorque”, sobretudo de Franz Kline, cujas influências vinham precisamente do automatismo surrealista (o movimento que o precedeu), da intensidade emocional do expressionismo (onde, de resto, foi buscar a denominação), e da arte abstracta desenvolvida pelas primeiras vanguardas, sobretudo, pelo cubismo e futurismo. O termo “expressionismo abstracto” seria usado pela primeira vez para designar o movimento, em 1952, pelo crítico Harold Rosenberg, no ensaio The American action painters.

E é justamente numa pintura/desenho de acção e intensidade onde situamos este trabalho de Mosettig. Performatividade e gestualismo assinalam esta expressividade que, afinal, as palavras confirmam. O rigor da escala intimista parece ser efectivamente aumentado para a escala da parede, tornando esta intimidade num espaço público, revelador, despido. A montagem é dinâmica e elegante e, na verdade, assume-se igualmente como um dos pontos altos da exposição. O olhar do espectador levanta, baixa, circula, como se de uma dinâmica paralela às obras se tratasse. Ou seja, coexistem — bem — duas camadas de visualidade e de fruição. Quanto aos desenhos, tendencialmente abstractizantes, há um que corta esta dinâmica. Trata-se de um “jogo do galo”. Não está finalizado, mas parece-se que ambos os jogadores perderam. E a peça em causa prosaicamente incorpora, até de modo redentor, a frase final: "Fuck you".    

 

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Julian Rosefeldt

Penumbra

@Galeria Bruno Múrias

 

O filme, em loop, tem a duração comum de um filme de cinema, quer dizer, o tempo não é exactamente o expectável de apresentação em galeria, mas o tempo médio da sala de cinema, neste caso, cerca de 90 minutos. Esta condição, sobretudo em dias de calor de início de Outono, poderia ser uma limitação. Entramos. E aqui tudo se transforma. O universo é encantatório, sedutor, belo. A curiosidade aguça-se e deixamo-nos levar. Afinal, não está assim tanto calor. Ou já nos fomos esquecendo dele. Ou, por outro lado, fomo-nos lembrando do planeta, da natureza, de nós próprios. A noção de tempo altera-se completamente. Claramente convocada nesta peça a visão ligada ao antropoceno, que nos faz reflectir sobre o impacto das acções do ser humano no clima e nos ecossistemas. 

Termo popularizado, entre outros, pelo cientista Paul Crutzen, nos anos 90 do século XX, o antropoceno adverte para o resultado do aquecimento global, para a escassez de recursos naturais e para as consequências sérias da intervenção do ser humano na natureza. Reflecte-se sobre a materialidade do planeta e sobre o colapso ecológico iminente. Naturalmente que esta realidade tem implicações nos discursos artísticos, nas obras e nas exposições que amiúde sobre estas questões se debruçam. Efectivamente, uma das primeiras exposições que colocaram em causa o capitalismo industrial foi Fragile Ecologies: Contemporary Artists' Interpretations and Solutions (The Queens Museum of Art, Nova Iorque, 1992), com curadoria de Barbara Matilsky, e que se tornaria itinerante, evidenciando a sua importância na consciencialização sobre a crise ecológica e suas consequências. 

Na obra de Rosefeldt entramos no nosso planeta, deixamo-nos conduzir e embalar a um ritmo envolvente. Ritmo absolutamente oposto ao do neoliberalismo agressivo e dominador. A beleza das imagens é inequívoca e imersiva. De algum modo, recordam —não obstante neste caso não estarmos a falar de uma sucessão de imagens fixas — o filme histórico La Jetée (1962), de Chris Marker, que transporta o espectador para um tempo pós-guerra nuclear, no qual um sobrevivente da III Guerra Mundial está obcecado com memórias distantes e desconexas do Aeroporto de Orly. Marker foi também um denunciador de diversas realidade políticas e sociais. Precisamente como sentimos em Penumbra. Como se a beleza imagética fosse também capaz de incomodar e de denunciar. Na verdade, como o próprio Marker afirmava "Les mots peuvent faire dire tout ce qu'on veut aux images". Certamente. Entretanto, esquecemo-nos definitivamente da temperatura. À saída dizem-nos que ainda está calor.

 

Isabel Nogueira (n. 1974). Historiadora de arte contemporânea, professora universitária e ensaísta. Doutorada em Belas-Artes/Ciências da Arte (Universidade de Lisboa) e pós-doutorada em História da Arte Contemporânea e Teoria da Imagem (Universidade de Coimbra e Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne). Livros mais recentes: "Teoria da arte no século XX: modernismo, vanguarda, neovanguarda, pós-modernismo” (Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012; 2.ª ed. 2014); "Artes plásticas e crítica em Portugal nos anos 70 e 80: vanguarda e pós-modernismo" (Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013; 2.ª ed. 2015); "Théorie de l’art au XXe siècle" (Éditions L’Harmattan, 2013); "Modernidade avulso: escritos sobre arte” (Edições a Ronda da Noite, 2014). É membro da AICA (Associação Internacional de Críticos de Arte).

 

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.

 

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Julian Rosefeldt, Penumbra. Vistas da exposição na Galeria Bruno Múrias. Cortesia do artista e Galeria Bruno Múrias.

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