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Grada Kilomba: O Barco

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Cristina Sanchez-Kozyreva

 

Um reconhecimento essencial.

 

Grada Kilomba é uma artista interdisciplinar, professora e escritora portuguesa. Ao longo dos seus anos de carreira, tem-se focado não só na recuperação de episódios esquecidos da história negra mediante a revisitação da memória e do trauma num enquadramento descolonizador, como também no questionamento das narrativas que se baseiam em conceitos coloniais de conhecimento, género e poder. No MAAT, apresenta a instalação O Barco, composta por cerca de 140 blocos de madeira queimada que, dispostos no chão, à beira do rio Tejo, formam a silhueta do fundo de uma nau de 32 metros de comprimento. Esta instalação ativa-se posteriormente através de uma performance com duração de uma hora que é executada por 30 performers portugueses negros de diferentes gerações — performers oriundos das diásporas africanas que trabalharam com Grada Kilomba no projeto e que vivem em Lisboa. Com produção musical do escritor e músico angolano Kalaf Epalanga, atualmente radicado em Berlim, O Barco desenvolve-se em torno de um poema: uma sucessão de palavras como "Uma Dor / Uma revolução / Uma igualdade / Uma afeição / Humanidade" etc. que a performance de Grada Kilomba interpreta através do som, de cenas visuais, declamações e canções, num estilo vagaroso, solene e cativante.

Em vários dos blocos centrais, gravadas na madeira, podemos ler partes do poema da artista, com tradução em algumas línguas africanas, como ioruba, kimbundu, crioulo e setswana, assim como em português, inglês e arábico. O ritmo da percussão unifica esta performance cerimonial, na qual os músicos e os performers — todos vestidos de negro, igualmente — se movimentam, brincam, recitam e dançam cerimoniosamente numa sucessão de quadros vivos cuidadosamente trabalhados que se entrelaçam pelos gestos, pelo som dos instrumentos e pelas vozes que, enquanto choram e lamentam, também afirmam e entoam numa tendência catártica. Aqui, temos um casal que cresce por entre os blocos e que é prontamente desfeito pelo destino para, no final, se reencontrar e reconciliar; ali, vê-se um baterista a ativar cada bloco com intenção e propósito, como se em reconhecimento da sua presença e daquilo que podem representar (os antepassados, a história, o tráfico de escravos, os traumas por resolver…); acolá, a belíssima solista cuja voz incarnada canta o poema de Grada Kilomba, acompanhada pela entoação do coro, em jeito gospel. Os códigos de representação e a mise-en-scène são simples, pelo que as mensagens também são particularmente evidentes: os corpos falam de travessias e escravatura, de dor e perda, mas também de esperança. A singularidade da representação, por sua vez, jaz não só no facto de todos os participantes serem negros mas também no contexto da performance — as referências históricas que comporta —, que provém diretamente das vozes que, até hoje, foram silenciadas pela história que os brancos escreveram. 

O Barco poderia muito bem conter a dedicação que figura na coletânea Memórias da Plantação — isto é, "Isto é feito em memória dos nossos antepassados". Escrita por Grada Kilomba e publicada em 2008, consiste aquela numa compilação de episódios de racismo quotidiano. No livro, a dada altura, ao falar dos seus tempos de infância em Lisboa, a artista lembra que a Rua Dr. João de Barros era frequentemente chamada Rua dos Macacos, ou República das Bananas — formas degradantes e exclusionárias de se referir ao bairro que albergava cada vez mais pessoas negras oriundas das ex-colónias portuguesas, bem como os seus descendentes. 

 

As memórias podem ser reescritas através do amor e do reconhecimento, e os traumas de que provêm, não sendo apagados, são potencialmente conciliáveis com a identidade negra contemporânea.

 

É impossível levar a cabo qualquer processo de luto ou qualquer género de crescimento pessoal sem antes se identificarem as questões subjacentes; talvez fosse este um dos objetivos de Grada Kilomba, tendo em consideração o seu contexto de formação, centrada na filosofia e na psicanálise freudiana, e o trabalho que vem desenvolvendo com veteranos de guerra de Angola e Moçambique. Portanto, é exatamente isso que a artista oferece aqui ao público: uma comovente e generosa experiência estética que, em confronto com a raridade generalizada de menção a tal, reconhece de todo o coração as dores da história — e as respetivas consequências — suportadas pelas comunidades negras em Portugal e no mundo, fixando assim um espaço seguro para se ser e para se ser visto.

A localização da própria instalação, junto ao rio, relativamente perto do Padrão dos Descobrimentos, em Belém — monumento construído em 1960 em celebração da glória dos descobrimentos portugueses, configurando a proa de uma caravela que parece zarpar em expedição e que se adorna nas laterais com as figuras escultóricas de célebres navegadores portugueses —, também tem uma importância simbólica e estratégica. Quando os portugueses pensam nesta localização, pensam num sítio de onde as naus partiam para descobrir o mundo; é um apontamento de uma história da qual os portugueses se orgulham, um capítulo do passado com um embrulho apelativo que se vai escapando à crítica — ainda que a ditadura que assim a fixou a fim de alavancar um sentido de orgulho nacional tenha terminado. Após a queda do regime salazarista e a independência das ex-colónias, o país centrou-se na sua própria reconstrução e na integração no projeto europeu. Por consequência, as narrativas em torno dos portugueses e da sua relação com o continente africano não se desapegaram das suas representações de glória e "colonialismo suave", tendo deixado de parte um conjunto de não-pormenores essenciais que urge abordar. É por isto que O Barco, na sua simplicidade, é tão empolgante: porque aborda de forma artística uma história sobre a qual ainda não se fala.

 

Grada Kilomba

MAAT

BoCA Bienal

 

Última performance no próximo dia 17 de outubro às 16h no MAAT.

 

Cristina Sanchez-Kozyreva é uma autora com experiência em relações internacionais e estratégia. Viveu na Ásia durante 15 anos. Actualmente trabalha e vive entre Lisboa e Hong Kong. É co-fundadora e editora-chefe da revista de arte Pipeline, com sede em Hong Kong (impressão 2011-2016). Contribuiu, regularmente, para várias publicações na Ásia, Europa e EUA, como Artforum, Frieze e Hyperallergic. É editora chefe da revista digital Curtain Magazine.

 

Tradução do EN por Diogo Montenegro.

 

 

 

Outro artigos sobre a artista:

 

— entrevista por Sílvia Escórcio

 

 







 

Grada Kilomba. O Barco. Vistas gerais da instalação e performance no MAAT. Fotos: Bruno Simão. Cortesia de BoCA Bienal.

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