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Flamboyanzinho, Flor-de-pavão, Flamboyant-mirim, Barba-de-barata

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Isabella Lenzi

 

— Uma conversa com Julia Coelho e Renan Araujo

 

 

Flamboyanzinho, Flor-de-pavão, Flamboyant-mirim, Barba-de-barata toma como ponto de partida a Caesalpinia pulcherrima, planta que conjuga poderes medicinais curativos com a capacidade de envenenar, para discutir questões como o trânsito atlântico de corpos, espécies vegetais e saberes, a hibridização e o constante processo de apagamento de práticas e conhecimentos considerados inferiores. Além de reivindicar culturas e memórias subalternas e invisibilizadas ao longo da história, a exposição traz para o presente vozes e rituais de desobediência, resistência e sanação. Com curadoria dos brasileiros Julia Coelho e Renan Araujo, a mostra propõe uma experiência imersiva e um tanto alucinógena que segue até o dia 30 de janeiro do ano que vem na Galeria da Boavista, um dos espaços das Galerias Municipais de Lisboa. Em uma longa conversa com a dupla, que atualmente vive em Barcelona, falamos deste e de outros projetos desenvolvidos nos últimos anos.

 

Isabella Lenzi (IL): Podemos começar pela ideia que estrutura a exposição. Como vocês chegaram à Caesalpinia pulcherrima e de que maneira jogam com a dupla condição desta planta, que dependendo da dose leva à cura ou ao envenenamento?

 

Renan Araujo (RA): O nosso modo de investigação muitas vezes parte da biografia de personagens, por exemplo, de uma planta, como é o caso da exposição na Galeria da Boavista. Pode ser um personagem real, como na exposição que organizamos na Oficina Oswald de Andrade em São Paulo, construída a partir da figura do cantor Zé Ramalho; ou ficcional, como no texto para a individual de Sergio Pinzón, "Hena, Cássia e Ingrid",  sobre três mulheres que trabalhavam em uma lavanderia de jeans e sonhavam com uma aposentadoria tranquila em um predinho no Balneário de Camboriú. Em 2020, organizamos uma mostra que se distribuía pela cidade de Barcelona e seguia uma rota percorrida por uma mulher chamada Mercedes durante um dia de sua vida. A exposição era formada por esculturas públicas dos acervos da prefeitura de Barcelona e do MACBA, e pelas obras de duas artistas convidadas, Paula García-Masedo e Marina Guerreiro, que ocupavam a vitrine de uma joalheria e a entrada do túnel de um lava-rápido. 

 

Julia Coelho (JC): Quase em simultâneo a Mercedes, surge a Flor-de-Pavão. Em 2019, durante o meu mestrado em história da ciência, li um artigo de Londa Schienberger sobre o contexto das viagens científicas europeias do século XVIII, no qual ela traz a questão de como alguns saberes produzidos por mulheres naquele período não foram incorporados ao sistema de conhecimento científico dito oficial. A autora discute a ideia da não-transferência de conhecimento, desses saberes que circulam amplamente, que são relevantes em um dado contexto, mas que são enterrados pela literatura oficial. Me chamou a atenção o modo como ela apresenta o artigo, dizendo que aquilo que leríamos a seguir não trataria sobre um grande homem, nem sobre uma grande mulher ou mesmo uma grande planta como a do café ou do tabaco, mas sobre uma espécie vegetal que, embora pouco conhecida, teve um papel político importante no contexto colonial. O efeito abortivo daquela planta no corpo humano foi utilizado como ferramenta de contra-ataque por mulheres que tinham seus corpos subjugados e explorados sexualmente e economicamente naquele sistema escravista. A autora fala sobre como este uso, ou seja, esta aliança humano-vegetal, afetou aquele sistema econômico e político. O artigo se estrutura a partir da Flor-de-Pavão, e o formato me fez pensar no modo de investigação que Renan e eu desenvolvíamos, que girava em torno de personagens. Me surpreendi quando vi uma imagem da planta, que me era bem familiar. É uma planta muito comum no Nordeste do Brasil e na Bahia, que pode ser encontrada nas calçadas, crescendo na beira das estradas. Cresci com muitas delas em meu jardim, mas nunca soube de nenhum uso ou história associada a elas. Foi surpreendente descobrir como a composição química dessa planta, essa toxicidade, afetou não somente os corpos das mulheres nas plantações de açúcar do Suriname, mas todo aquele corpo político e social. 

 

RA: Também nos pareceu interessante pensar no que acontecia no trânsito entre um continente e outro, porque a Flamboyanzinho chegava aqui na Europa totalmente dissociada daquele contexto. Aqueles significados e usos se perdiam nessa passagem. Ela chega aos principais jardins botânicos europeus como uma planta ornamental e exótica, tendo inclusive alguns usos medicinais, por exemplo, no tratamento de gripes, e vai integrar outro sistema econômico. Essa história a gente já conhece bem.

JC: Os usos e ações que a planta teve nos diferentes contextos nos abriram vários caminhos para pensar o projeto, por isso a ideia de trânsito é tão importante. Pensar o trânsito não só geográfico, mas também por dentro do corpo, do que esta planta pode ativar nesta passagem interior, que efeitos ela causa em nós. Pensar no trânsito de saberes, que circulam por instâncias não oficiais, e pensar também nestas instâncias, nestas instituições: os museus, os arquivos, o jardim botânico, a farmácia. A ideia de memória também nos interessava, memória como um lugar de invenção, de transformação, ligada à vida e à morte. Memória como algo que está sempre em movimento. São questões que vão surgindo para estruturar essa exposição, que não é uma ilustração da história da planta, embora a gente tome como ponto de partida essa história.

 

RA: Gostamos de pensar que a exposição se estrutura a partir da performatividade da Flor-de-Pavão, dada pelas propriedades venenosas e curativas que ela possui. Ou seja, o que ela é capaz de ativar, sua agência. Daí também vem um interesse por obras que de alguma forma se relacionam a essa ideia de performatividade.

 

IL: Achei interessante o fato de partirem de uma espécie pouco conhecida, que como a Julia dizia não tem a importância do café, do açúcar ou do tabaco na História colonial (com H maiúsculo), mas que foi central justamente para os corpos subjugados d+s nativ+s e escravizad+s.

 

RA: Sim, gostamos de trabalhar com personagens menores, com figuras esquecidas, contraditórias ou decadentes. Com meteoritos abandonados, ofícios em extinção ou parques de diversões falidos. Por exemplo, Zé Ramalho, uma figura que teve uma importante atuação no rock psicodélico brasileiro dos anos 1970 e anos mais tarde um papel ativo nas composições musicais das telenovelas da Globo. Ambas as fases nos interessam, uma não é mais importante do que a outra. Construímos uma exposição a partir do imaginário que criamos sobre essa figura. Outro exemplo é Mercedes. Ela é uma figura que só descobrimos morando aqui, uma senhora de meia idade que pode até acreditar no aquecimento global, mas ao mesmo tempo será alguém anti-vacina; pode ser uma militante a favor dos animais que também pode ir a manifestação contra a implementação da tecnologia 5G. Pode haver uma potência nessas figuras. Nos parece interessante entender a maneira como pensam e agem. E compreendê-las é fundamental para que não sejamos engolidos. Lembrando que Mercedes é uma personagem ficcional que está sob o nosso controle. Nós a manipulamos. E não o contrário. Flamboyanzinho é um arbusto comum, sem grandes festejos, que só não é uma planta invisível porque sua cor laranja fogo não a deixa ser! É uma planta relegada ao seu papel de coadjuvante que guarda em sua composição química a possibilidade de ativar outros corpos e sistemas.


JC: Acho que o interesse pela dupla condição da planta que você comenta na questão anterior também tem a ver com um interesse pela construção dessas personagens, por suas ambiguidades e complexidades que nos permitem acessar algumas questões de maneira mais ampla, que tentam ir além do bem e do mal, de saber se a personagem é a vilã ou a mocinha. Tentar habitar as nuances.

 

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IS: Na vossa proposta, o Flamboyanzinho e essa dupla capacidade que comentam (de cura ou envenenamento) funcionam como metonímia da formação de um continente marcado por intercâmbios, disputas, expropriação e dissidências. Esta imagem permite ampliar e complexificar a discussão para falar das condições e consequências dos trânsitos e contatos atlânticos no período colonial e dos seus ecos no presente. Por um lado, a violência ligada a exploração e submissão de corpos e do território, por outro, o processo de hibridização ou crioulização (enunciado pelo pensador martinicano Édouard Glissant) e as formas de resistência e desobediência conectadas com a imprevisibilidade e a capacidade inventiva das diásporas.
 


JC: Na exposição, entendemos a palavra resistência a partir da noção de algo que permanece no tempo apesar das condições adversas. As estratégias para essa manutenção podem ser diversas e nos interessam aquelas que pressupõem movimento e transmissão. O saber manejar uma planta que pode matar, por exemplo. Hoje é a indústria farmacêutica quem detém esse conhecimento e em um contexto urbano ela define nossa relação com substâncias venenosas. Por isso conectamos a resistência à ideia de memória, de arquivo. A resistência através da preservação, do cultivo dessas práticas culturais e modos de relacionar-se com outras formas de vida que fazem parte de processos de cura ou mesmo de morte.

RA: Os trabalhos das artistas também tratam sobre modos de manter uma memória viva. Por exemplo, o Thiago Correia Gonçalves produz uma espécie de cortina feita com panos de prato utilizados durante o preparo da maniçoba. Para fazer o prato é necessário a folha de mandioca, a maniva, e os panos são usados como filtros que extraem a toxicidade das folhas. As receitas, principalmente as que utilizam ingredientes tradicionais ou ancestrais, carregam em si uma história e são passadas por gerações de maneira oral, como algo precioso. O Thiago aprendeu a fazer a maniçoba com a tia, um prato que tem relação com um lugar e com a história desse lugar. Tem aí uma questão de partilha, desse cultivo permanecer no tempo, ainda que a receita vá sendo adaptada a cada execução.

Outro exemplo é “La Charada China” de Candice Lin. Lin constrói uma instalação viva, um sistema de cultivo. “La Charada China” é um jogo de azar formado por simbolismos e tradições cubanas e chinesas, algo próximo ao Jogo do Bicho no Brasil, muito associado ao sonho e a fé, já que é comum quando alguém sonha com um animal e partilha esse sonho, a pessoa que escuta, diz: “joga cavalo no bicho”, “esse animal é 32 no bicho”. O jogo do bicho hoje é associado a máfia, no entanto, os primórdios do Charada China podem conter uma ideia de partilha. O montante das apostas poderia fazer com que o ganhador tivesse recursos para abrir o seu próprio negócio ou retornar para seu país ou simplesmente pagar as suas dívidas e se ver livre. A instalação de Candice é formada por altares que ficam ao redor de um túmulo, a silhueta desse túmulo é composta pela imagem presente na cartela do jogo La Charada China. Nos sulcos da imagem foram plantadas sementes de papoula que estão crescendo desde antes da abertura da exposição. É um túmulo-altar para essas pessoas que saíam da China para Cuba, devido às Guerras do Ópio, para trabalhar nas plantações de cana de açúcar dentro de um sistema que já não era considerado escravista, porém ainda mantinha um modo muito próximo a ele. Os trabalhadores contraíam dívidas antes mesmo de saírem da China que aumentavam e tornavam-se impagáveis. No vídeo que integra a instalação, a artista também traça um paralelo com as atuais condições de trabalho nas fábricas chinesas da Apple e os suicídios frequentes dos funcionários.
 


IL: Vocês relacionam a resistência com um desejo ou tentativa de manutenção da memória, da oralidade e da tradição dissidente. Ao mesmo tempo, também vejo no trabalho da Cecilia Bengolea uma resistência ligada à desobediência. É uma resistência bastante ambígua, de desafiar, jogar, de luta de poderes com os carros e com a natureza, porque sabemos que os raios têm a capacidade de matar e quando estamos em um território descampado, por mais que o corpo humano tenha uma escala pequena, também somos uma espécie de para-raios. De alguma maneira os dançarinos jogam com isso: respeitam, dignificam a chuva e a força da natureza, mas também desafiam e bebem desta força natural que é transferida aos seus corpos. Corpos sensuais, sexuais e desobedientes. Voltando a questão da hibridização ou crioulização, sinto que este trabalho fala das raízes africanas presentes nessas danças e nesses corpos, que no presente afirmam seu lugar e sua forma de estar no mundo.
 

JC: Totalmente. Vemos no trabalho de Cecilia Bengolea uma situação de embate. A artista desenvolve a pesquisa a partir da água, dessa ideia de simbiose entre os corpos e a tempestade. A gente pode pensar talvez nessa ideia de hibridização através das condições meteorológicas daquele contexto da Jamaica, que é também uma ilha, e de como tudo isso afeta os corpos das que vivem naquele lugar. Ali pode haver uma relação de integração, mas também de embate entre essas forças da natureza e a força dos corpos daquelas pessoas que estão ali dançando na beira da pista.


IL: Também é muito forte o fato de eles estarem dançando na beira da estrada, com carros passando a toda velocidade. É como se houvesse ameaças por todos os lados. Mas ao mesmo tempo que a chuva, os raios e carros são uma espécie de ameaça, também fazem parte desta dança. A chuva e os raios fundem-se aos corpos, que por estarem molhados dançam de maneira mais fluída e sensual e como se fossem raios. A obra penetra no nosso corpo. É difícil vê-la e ficar parado. Me lembra da sensação de quando nossos batimentos cardíacos entram na cadência de uma música. Neste sentido, me faz pensar no duplo trânsito desta e de tantas outras plantas e espécies naturais que vocês comentaram antes: o fluxo geográfico e o que acontece dentro do nosso corpo. Podemos estabelecer uma relação com os distintos usos destas plantas —medicinais, psicotrópicos, ornamentais e estéticos— nas diferentes margens do Atlântico.

 


JC: Em uma escala macro, pensamos no deslocamento geográfico em trabalhos como o de Candice Lin e Thiago Correia Gonçalves, ou nas noções de movimento e perturbação, como no trabalho de Cecilia Bengolea e Andreia Santana. O interesse pela planta é sobretudo por seu poder de ação. Uma ação que é dada pela beleza de suas formas, mas também por sua composição química, inacessível aos nossos olhos. Aqui pensamos em outro deslocamento, em outra escala, que é microscópica, e nas reações químicas dadas pela interação digestiva entre o corpo humano e o vegetal. O nosso corpo é quem digere, mas é a planta, ou as substâncias que a compõem, que vão provocar ações em nós. Trata-se de uma relação que nem sempre nos permite estar no controle. Podemos ser enfeitiçadas por elas, levadas a outros lugares para além da nossa corporalidade. Em uma escala micro, podemos nos concentrar no interior de nossos corpos e pensar nos trânsitos metabólicos ou digestivos que nos constituem. Entender o estômago como um lugar onde também podemos guardar memórias e sentimentos. "Gastrite", trabalho de Castiel, nos direciona a esse lugar. Nas fotografias, o corpo daquela flor atravessa o corpo da artista, formando desenhos que se relacionam com os órgãos do sistema digestório e genital, órgãos de entrada e saída. Ao seu lado, exibimos a Pedra Bezoar, um composto mineral formado no estômago de animais ruminantes ao qual eram atribuídos poderes mágicos e curativos, o antídoto por excelência da ciência europeia até finais do século XVIII. Interações entre corpos humanos, minerais e vegetais que ocorrem a nível químico e que tem suas ações potencializadas por narrativas ou significados mágicos, isso nas duas margens do Atlântico. Passagens que não podemos alcançar com os olhos e que nos permitem ativar outros sentidos. Para esse debate trazemos o poeta E. M. Melo e Castro e sua "Viagem Interior", videopoema que vai explorar a força da geometria fractal enquanto um sistema perceptivo capaz de alargar a nossa experiência do mundo e das formas da natureza. Vemos essa mesma geometria no trabalho de Sarah Ancelle Schönfeld e Thiago Correia Gonçalves. O vídeo enquanto imagem em movimento e o som que se relaciona com outros objetos que também implicam em movimento: portas, cortinas, joias, túmulos, passagens subaquáticas…


 

IL: Os vários nomes dados a uma mesma planta — Flamboyanzinho, Flor-de-pavão, Flamboyant-mirim, Barba-de-barata— são um indicativo da resistência dos saberes ditos populares ou de uma cultura que mesmo que de forma minoritária ainda permanece oral. Também gosto do fato do título da mostra remeter a uma espécie de feitiço, mantra ou transe. Qual o lugar do ritual na exposição? E na sociedade ocidental contemporânea?

 

 JC: Acho que a experiência de visitar uma exposição sempre acaba sendo um pouco ritualística. Pensando em um contexto urbano, que é de onde posso falar, acho que nossos rituais são muito mediados por relações econômicas, pensando nas festas e mesmo nos enterros. Mas entendo o ritual como algo que só ganha sentido quando há um senso de comunidade envolvido, e acho que vai estar também muito ligado com essa necessidade de celebrar uma memória, daí vem os simbolismos dos objetos ou mesmo dos gestos. Pensar também que o ritual implica em ação, movimento, troca. O título está relacionado a essa ideia de performatividade. Todos os trabalhos de alguma maneira se relacionam com essa ideia, que pode estar ligada mais diretamente a ideia do ritual, como nos trabalhos de Thiago, Castiel, Candice e da Pedra de Xangô, ou a ao movimento, a ação e interação. De uma performatividade dos objetos, como no caso do portal de Andreia Santana, que orienta o trânsito naquele espaço, que precisa ser manuseado para dar passagem às escadas; ou de uma performatividade do software, como nos vídeos de Melo e Castro, produzidos a partir de um programa gerador de fractais; ou de uma performatividade da matéria, pela reação química entre as substâncias psicotrópicas e fotográficas, como vemos no trabalho de Sarah Ancelle Schönfeld. Essas noções de agência e performatividade também passam por esses lugares da linguagem, como fica evidente no título.

RA: E tem também as peças do Museu da Farmácia, o anel e a pedra bezoar, que em algum momento foram joias carregadas por pessoas, que acabavam performando um certo status. O anel, que possui um compartimento secreto para conter veneno, também nos remete ao clássico da dramaturgia: o envenenamento.
 

IL: Esta performatividade também está na maneira como ocuparam o espaço da Galeria. Na importância dada aos diferentes estímulos sensoriais e do ambiente de transe proposto pela exposição.

 

RA: O espectador é recebido pela instalação de Candice Lin, que produz essa iluminação rosada em boa parte do espaço e causa um efeito óptico em nossa visão, transformando a luz amarela do fundo da sala em uma luz esverdeada. Logo que o espectador caminha até esse lugar e atravessa a peça de Thiago, que acaba também filtrando a luz, o verde se dissipa, ficando apenas a iluminação amarela. Inicialmente pensamos no trabalho de Candice para o primeiro andar do edifício, como um ambiente mais recluso. Até então ele não seria esse personagem que daria as boas-vindas ao espectador. Depois da equipe técnica fazer o cálculo estrutural e ver que as quase três toneladas de barro não poderiam ficar no piso de cima, tivemos que readequar o espaço passando a instalação para o térreo. A obra foi montada, com a supervisão da artista à distância, pela Terrapalha, uma empresa especializada em construções de barro e palha. A partir daí vimos o potencial que poderia ter a palha, que acaba saindo do interior da estrutura central da instalação e passa também a formar parte do espaço, integrando um pouco mais as obras da exposição. Apresentamos duas peças do acervo do Museu da Farmácia, que precisam de condições técnicas específicas para estarem ali, mas tentamos não hierarquizá-las na mostra. Essas peças dos séculos XVII e XVIII convivem em um mesmo patamar de importância com um trabalho recente. O piso térreo é uma grande experiência imersiva. O público entra por dentro desse corpo. A palha vai assumindo outras formas, quase como uma maneira de transformar o espaço a cada passagem das pessoas. Outra coisa importante na exposição é o som, desde o som ao caminhar sobre a palha, até o trabalho de Melo e Castro. O vídeo no meio da exposição conduz o espectador com uma sonoridade quase meditativa, é possível escutá-lo em qualquer parte do piso. No fundo da sala também encontramos a fotografia de Sarah Ancelle Schönfeld que ocupa toda a parede e magnetiza o olhar, causando uma espécie de contrapeso à outra extremidade da sala. São vários estímulos simultâneos. Fazia sentido ter uma montagem mais carregada e menos cubo branco, já que estamos falando sobre modos de ver.
 

IL: Vocês reforçam esta ideia de circulação e fluxo de corpos, matérias e saberes ao transbordar a exposição para fora da galeria da Boavista com apontamentos e obras em outros espaços da cidade, como o Jardim Botânico.

 

JC: Na Farmácia Barreto apresentamos a obra de Sarah Ancelle Schönfeld na vitrine, que é um dispositivo de mediação entre o comércio e a rua, entre o dentro e o fora. A vitrine já é utilizada pela farmácia para expor seus produtos, o que permite ao trabalho integrar-se à dinâmica daquele lugar, uma dinâmica bem distinta a de um espaço como a Galeria da Boavista. As pessoas vão lá para comprar seus remédios, algumas retornam com frequência, estabelecendo uma relação comercial que se mistura a uma relação de confiança com as vendedoras. A gente gosta da ideia de criar relações entre as pessoas e os trabalhos de arte que não precisem passar necessariamente pelos espaços de arte. Escolhemos especificamente a Farmácia Barreto não só porque ela contribuiu para a formação do Museu da Farmácia, doando objetos e documentos, mas também por que conserva um mobiliário de época e possui um acervo de potes em faiança e vidro ainda com resquícios de químicos do século XIX, que divide as prateleiras da loja com os produtos que estão à venda. É um espaço interessante que se relaciona com a exposição por questões temáticas, sendo ele mesmo, enquanto farmácia, mais um dos objetos que integram a mostra, e como um espaço de exposição e memória, onde temporalidades se sobrepõem. A fotografia quase pode ser lida como parte dos objetos da farmácia, porque lembra imagens de laboratório. A forma redonda remete ao que vemos através da lente de um microscópio. Você passa na frente e fica meio confusa se perguntando de onde veio aquele objeto, que a fotografia talvez seja muito grande para estar ali sem nenhuma propaganda de produto. Se chega mais perto, pode ler a legenda que indica que a peça faz parte de uma exposição que continua na Galeria da Boavista, não muito longe dali. Pode ler também o título da obra "All You Can Feel / Planets, Opium", que faz pensar no significado histórico daquela substância que é utilizada até hoje pela indústria farmacêutica. 

 

RA: Também queríamos que a exposição pudesse continuar no catálogo. Convidamos a escritora Djaimilia Pereira de Almeida para colaborar com um texto que ampliasse as questões da mostra. "Alguém" é um excerto escrito a partir do conteúdo inédito que inicialmente fazia parte de "A Visão das Plantas" – publicado pela primeira vez em Portugal em 2019 –, mas que não entrou na edição final do livro. O Jardim Botânico é outro espaço que entra na exposição como um objeto. Qualquer um pode ir visitá-lo tendo em mente que aquela imagem que ocupa a vitrine da Galeria da Boavista pertence ao herbário do LISU, que integra o mesmo complexo que o Jardim Botânico de Lisboa. A Caesalpinia pulcherrima finalmente aparece na exposição, ainda que morta e do lado de fora da Galeria. Ela aponta para o exterior. A Flamboyanzinho não se adaptou ao clima de Lisboa e infelizmente não podemos vê-la frondosa habitando os canteiros centrais da cidade.

 

 

 

 

Galeria da Boavista

Julia Coelho e Renan Araujo 

 

Isabella Lenzi. Pesquisadora e curadora de arte latino-americana no departamento de coleções do Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía,  MNCARS, Madrid. Dirigiu por sete anos (2013-2019) o espaço cultural do Consulado Geral de Portugal em São Paulo / Camões I.P., no qual consolidou um local de debate e experimentação para artistas emergentes e históricos portugueses e brasileiros. Também integrou o núcleo de programação da Associação Cultural Videobrasil (2013-2015), trabalhou com exposições na Galeria Vermelho, em São Paulo (2012-2013), e foi assistente de curadoria de Agnaldo Farias na XI Bienal de Cuenca, no Equador (2011-2012). Desde 2016 vive entre o Brasil e a Europa. Entre outros projetos, atuou como pesquisadora e assistente de curadoria na Whitechapel Gallery, em Londres (2017), colaborou em exposições realizadas no Nouveau Musée National de Monaco (2018) e no PAC - Padiglione d’Arte Contemporanea de Milão (2018) e foi coordenadora de exposições na Fundación MAPFRE de Madrid (2020).

 

O texto foi escrito em português do Brasil.

 

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Flamboyanzinho, Flor-de-pavão, Flamboyant-mirim, Barba-de-barata. Vistas gerais da exposição na Galeria da Boavista. Fotos: © João Paulo Serafim. Cortesia de Galerias Municipais/Egeac.

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