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João Seguro

 

McKenzie Wark

Sensoria — Thinkers for the Twenty-first Century

 [Verso Books]

 

De uma das autoras mais reconhecidas do campo do pensamento filosófico contemporâneo chega-nos o livro que podemos considerar a sequela do também impressionante General IntellectsTwenty-One Thinkers for the Twenty First Century (2017) no qual Wark propõe um mapeamento do pensamento filosófico contemporâneo com a perspetiva de ampliar a gama de aproximações ao campo filosófico clássico, extendendo-o a áreas cinzentas da tecnologia, ciência, cidadania, ambiente, natureza e humanidade, num contexto no qual a abrangência e os limites destas temáticas são convocadas diariamente para a discussão publica e mediática.

Em Sensoria, Wark continua esse mapeamento e apresenta-nos o pensamento de mais 19 personalidades que nos têm ajudado a colocar as perguntas necessárias num momento de estupefação generalizada que vivemos. A novidade aqui é que Sensoria traz-nos acima de tudo autores que estão radicalmente ligados ao campo cultural e da imagem, muitos deles nomes correntes do contexto das artes visuais como Kodwo Eshun, Hito Steyerl, Eyal Weizman (do coletivo Forensic Architecture), Tiziana Terranova, Lev Manovich ou Eduardo Viveiros de Castro, e outros que não sendo tão mediáticos têm sido impulsores de uma renovação do alfabeto do complexo sensível e os seus enunciados na época telemática.

As proposições exploradas por Wark em cada capítulo dedicado à obra de cada um destes autores, embora radicadas numa compreensão holística do mundo atual, têm como ponto de partida um discernimento estético. O mundo digital e as transformações que tem vindo a operar em todas os recantos da vida na terra é o fio condutor e isso percebe-se, desde logo, na divisão que faz das três secções: 1. Estética, 2. Etnografia e 3. Técnica. Esta divisão é meramente indicativa das famílias disciplinares nas quais radicam os pensadores visados mas há uma verdadeira “tarefa comum”que todos liga. Segundo Wark é imperativo resgatar o conhecimento do domínio académico e trazê-lo para o centro do que é partilhável e comum, no sentido de ser habitual e recorrente. Para isso Wark sugere que a tarefa que se impõe é a de um jogo no qual cada proponente — cada um destes autores seria interveniente neste jogo — atuaria de forma circunscrita à sua esfera de conhecimento com a cegueira estratégica característica que o conhecimento científico utiliza na sua metodologia. 

Na primeira secção, ensaiam-se elementos para o escape a uma estética de matriz clássica (leia-se eurocêntrica) através da análise/proposição de novas categorias cognitivas e estéticas que estariam arredadas da discussão filosófica do belo e seus derivados. Avançam-se noções não ocidentais, como os termos avançados por Sianne Ngai, a reversão de estratégias culturais de Kodwo Eshun, as ecologias da atenção de Yves Citton onde se observam os fenómenos de alteração e adaptação da percepção ao mundo da fluidez mediática que acompanha a fluidez do capital e que, no fundo, opera uma financeirização dos sentidos e uma captação do aparelho sensorial, minando desta forma o horizonte de possibilidades criativas; ou as propostas de Randy Martin que especula sobre formas de ultrapassar o impasse pós-capitalista através do abandono de modelos estéticos nostálgicos e da adopção de um conjunto de hipóteses não-especializadas e derivativas que incorporem a estranheza e ininteligível qualidade das formas de abstração às quais estamos subordinados. Nos capítulos seguintes, 2. Etnografias e 3. Técnicas, Wark mapeia questões que surgem da crescente mundialização da economia e dos problemas políticos e sócioculturais que esta exponencia. Colocando uma tónica nos obstáculos emergentes da época da informação e proliferação digital, produção de conhecimento algorítmico e consequente politização das ferramentas e dos dados informacionais que conduzem ao desmantelamento territorial, ao complexo climático, e à refundação da questão pós-colonial como pontos de ancoragem, apresenta-nos o trabalho e as principais linhas de discussão de autores emergentes como Benjamin Bratton, Achille Mbembe ou Lev Manovich que têm feito por abanar as fundações do que se conhece e da forma como se conhece e se funciona com base nesse conhecimento.

Aparte todas as qualidades deste livro de Wark, da sua inegável capacidade de sistematizar a enorme entropia especulativa que as consecutivas crises têm trazido para o centro da discussão teórica das últimas décadas, encontra-se um sentido maior na sua proposta — descentrar do eixo clássico da filosofia a dualidade entre humano e técnica, tentando ultrapassar a polaridade moralizante que esta ainda transporta e assim procurar compreender o que é o humano depois da técnica.

 

McKenzie Wark

Verso Books

 

João Seguro (1979), vive e trabalha em Lisboa. É artista e professor. Tem mostrado o seu trabalho em exposições, individuais e coletivas, nacionais e internacionais, estando representado em diversas coleções particulares. Lecionou, desde 2006, as cadeiras de Estética, Estudos de Arte, Teoria e Crítica da Imagem, Pintura e Seminários de Arte Contemporânea no Instituto Politécnico de Tomar e na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa.

 

McKenzie Wark
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Noé Sendas 

Vanishing Acts

— Photomontage & Assemblage Works 2009-2019 

[Skira]

Publicado em plena pandemia, este luxuoso volume de textos e imagens, agrega quatro grupos de trabalho que sintetizam obra de Noé Sendas ao longo da última década, de 2009 a 2019.

De subtítulo Photomontage & Assemblage Works, o livro é editado por João Silvério, publicado pela Skira, uma das mais importantes editoras de arte europeias, e conta com ensaios de João Silvério, Delfim Sardo, Stephan Klee e uma conversa entre o artista e Jean Wainwright.

Partindo das séries PEEPS, Crystal Girls & Guests, Unknowns e Old Studio, repreduzem-se ao longo de cerca de 200 páginas os quatro Vanishing Acts para que nos remete o título e que sublinha a relação do trabalho de Sendas com a noção de apagamento ou desaparecimento.

No seu texto sobre a obra de Noé Sendas, João Silvério discorre largamente sobre os processos e as intrincadas origens da sua muito própria iconologia, traçando a origem dessas preocupações à sua juventude, à forma como se relacionou com imagens no contexto familiar e posteriormente ao contexto escolar onde iniciou os seus estudos artísticos, passando pelo amadurecimento da sua consciência criativa e a importância da sua persona biográfica para a compreensão do seu «...universo pessoal e a criação da sua linguagem idiossincrática». Silvério explica quais os mecanismos desenvolvidos por Noé Sendas para estruturar os motivos narrativos que cada imagem possui. Neste universo parece fundir-se memória, mito e utopia e é através de uma muito particular condição agregadora que, aprendemos, Sendas constrói as suas imagens, as suas esculturas e os híbridos que contemplam imagem, linguagem e objetos tridimensionais, como um lugar no qual e memória da imagem, dos corpos e da linguagem podem habitar um mesmo plano. Apesar deste volume focar sobretudo a sua obra de cariz fotográfico, é importante compreender que, como sublinha Silvério «Noé Sendas não é um fotógrafo. É um artista que empreende uma aproximação Duchampiana à coleção de excertos, imagens e objetos quotidianos e os submete a um apagamento da dimensão mensurável do tempo.».

No seu texto intitulado The Sampler, Delfim Sardo enuncia cinco pontos essenciais no processo de trabalho de Sendas. Nestes pontos, Delfim Sardo explicita um esquema de observação, fragmentação, montagem e sequenciação que parecem ser atributos que transitaram desde a obra videográfica do artista para a obra recente, de cariz foto-escultórico, que apesar de se afastar dos meios temporais do vídeo e cinema, servem como âncoras à sua lógica de aproximação intersticial aos motivos que designa como material. E é dessa forma que Stephan Klee explica o conjunto de procedimentos que Sendas aplica às fotografias que coleciona e com as quais fabrica imagens como se elas (as figuras retratadas, e as próprias imagens) tivessem uma materialidade escultórica. Como o próprio artista explica «quando comecei a trabalhar em fotografias como se fossem esculturas, usando as noções de gravidade, peso e equilíbrio. Se apagares a perna esquerda de uma figura numa fotografia, deves adicionar uma pedra na mão direita da mesma figura, para ficar equilibrada e não caír.».

Para finalizar a componente textual do livro, a conversa entre o artista e Jean Wainwright — Noé Sendas: The Shape of Things to Come — é o testemunho mais personalizado das complexidades do trabalho criativo, suas origens, caminhos e desvios, cheio de referências menos óbvias e que, por vezes, não transparecem na superfície da obra do artista, uma viagem à vida e aos pensamentos do autor, mais do que uma decomposição da sua obra.

O volume, importa referir, além de ser profusamente ilustrado, tem a cadência de uma imagem por página, onde a escala das mesmas permite um olhar demorado e a qualidade da impressão uma observação atenta e detalhada.

Um livro que marca uma etapa de maturidade de um percurso artístico que tem tanto de sólido como de distintivo.

 

Noé Sendas

Skira 

 

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Eduarda Neves

NEM – ISTO – NEM – AQUILO

[Palimpsesto editora]

Pensadora, professora, curadora, crítica de arte; Eduarda Neves tem sido uma voz ativa no panorama das artes nacional e internacional, com projetos que aliam várias das vertentes em que movimenta a sua prática aquém e além fronteiras. Indisciplinado, o seu pensamento e a sua prática, ancorados nas vias que persistem da uma certa crítica institucional e no potencial crítico da poética que não se deixa fascinar pelo “ar do tempo”, mas que se compromete com o tempo presente. Assim é este livro que logo no título desconcertante nos indicia que não estamos perante um pensamento arrumado em gavetas e taxonomias, familiares no discurso crítico, mas ante uma proposta que tenta construir algo que se esquiva.

Como sublinha a autora na nota prévia aos ensaios que compõem o livro, «O conjunto de textos aqui reunidos (…) pertencem ao meu tempo. O tempo da minha memória que se quer nómada e indeterminada. Este tempo já não sou eu, a sua forma já não é a minha. Dissociações contemporâneas de si. (…) Dar textos para que possam ser ocupados. Deixar que neles sobrevoem outros idiomas.». Nota-se desde logo uma posição de desapego das próprias qualidades sintéticas que o trabalho especulativo normalmente comporta, colocando-se criticamente perante posturas apologéticas. NEM – ISTO – NEM – AQUILO serve portanto como mote desse funcionamento indiscreto que Eduarda Neves parece cultivar, manifesta uma saudável aproximação à dialéctica negativa que Adorno descreveu como uma forma de cortar o nó górdio do impasse provocado pelas suas próprias contradições, do pensamento, leia-se, mas também da prática artística. Parece ser isso que Neves ensaia aqui, formas de escapar às estruturas infecundas às quais muita da filosofia, teoria da arte, discurso artístico e curadoria se apegam desorientadamente, sem que dessa relação de dependência se vislumbre um caminho. Assim sendo mais vale errar, no duplo sentido da palavra, ensaiar o erro e vaguear, e fazer desse desapego uma táctica de détournement criativo e crítico.

O livro está dividido em três secções:

1. Sobre arte e artistas, 2. Enunciados para combinações possíveis e 3. Nem uma coisa nem outra.

Na primeira parte visitam-se obras de Martha Rosler, Jeff Wall, Jürgen Klauke e reflecte-se acerca do estatuto ontológico da imagem fotográfica na era do arrebatamento arquivístico, dos problemas dos museus no contexto da financeirização da cultura e das cidades (partindo do Museu de Serralves para pensar um fenómeno generalizado), e das circunstâncias da crítica. Alguns destes ensaios dão continuidade à investigação apresentada em O autorretrato. Fotografia e Subjectivação, um dos seus livros anteriores.

Na segunda secção, intitulada Enunciados para combinações possíveis, Neves agrupa um conjunto de textos escritos para exposições, coletivas e individuais, de autores que acompanha e com quem tem vindo a trabalhar. As combinações possíveis do título têm um sentido aberto pois tanto sugerem as combinações temáticas e artísticas que põe em marcha nos seus projetos curatoriais (no contexto dos quais estes textos foram escritos) como nas combinações estruturantes que desenvolve a partir da filosofia na qual radica muita da sua prática. De Sérgio Leitão a João Tabarra, Silvestre Pestana ou Nuno Ramalho ou a autores menos vistos como Daniel Moreira, Rita Castro Neves ou o coletivo DAS PLAST V PJS composto por Amarante Abramovici, João Vasco Paiva, Sérgio Leitão, Tânia Dinis e Vera Santos, é relevante entender estas aproximações como formas de resistência aos imperativos categóricos que normalizam as práticas curatoriais.

A terceira secção, e que faz eco ao título do livro — Nem uma coisa nem outra — comporta três pequenos textos dispersos e duas entrevistas a, e por, artistas. Nem uma coisa nem outra, encerra o livro com a dispersão psicótica de quem ainda o está a escrever, ou, explicando a capa do livro desenhada por Rita Roque, «NEM-ISTO-NEM-AQUILO, a ilustração de uma petúnia pretende enfatizar a relação híbrida do que está ou anda “entre”, aproximando-se, portanto, de um lugar não binário.»

Na semana em que acabo de escrever estas linhas chega aos escaparates o novo livro de Eduarda Neves. Pensamento e ação à mesma velocidade para nos fazer olhar nem para isto nem para aquilo.

 

Eduarda Neves

Palimpsesto editora

 

 

Eduarda Neves
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Allan Sekula

Art Isn't Fair

— Further Essays on the Traffic in Photographs and Related Media

[MACK]

Allan Sekula é um dos mais destacados artistas, críticos e teóricos de arte dos últimos cinquenta anos. A sua influência exerce-se sobretudo na área da fotografia e imagem fotográfica mas não se esgotam nesses campos, estendendo-se normalmente à compreensão social e política da produção e consumo de bens, serviços e objetos culturais.

Falecido em 2013, tem sido grande a atividade expositiva e editorial em torno da sua obra e do seu legado, ao qual se junta este livro onde se compila ensaios que estavam dispersos em publicações periódicas, catálogos e livros, sob o título Art Isn't Fair: Further Essays on the Traffic in Photographs and Related Media e que “dá continuidade” ao corpo de trabalho teórico antes compilado em Photography Against the Grain: Essays and Photo Works, 1973–1983, reeditado pela MACK em 2016.

Esta obra, editada pela historiadora e companheira do artista Sally Stein e por Ina Steiner, fotógrafa, colaboradora e assistente de Sekula, reúne um conjunto de textos com alcances e proveniências muito diferentes mas que sublinham a reiterada atenção que Sekula prestou às insidiosas relações entre poder, economia e cultura ao longo da sua carreira e nas mais variadas instâncias.

Desde os seminais ensaios The Body and the Archive (1986), Photography between Labour and Capital (1983) ou Between the Net and the Deep Blue Sea (Rethinking the Traffic in Photographs) (2002) até a textos importantes sobre colegas artistas como Robert Mapplethorpe, Walker Evans, Michael Asher, Annetta Kapon ou Susan Meiselas.

O título do livro Art isn´t Fair é um bom ponto de partida para se compreender a forma de Sekula entender o poder crítico da arte e da prática artística. Art Isn’t Fair é o título da última peça de vídeo em que estava a trabalhar quando morreu e é precisamente uma seleção de imagens e textos dessa peça que fecham o conjunto de textos e trabalhos deste volume, que tanto contempla ensaios de grande fôlego sobre as temáticas clássicas da sua investigação — fotografia, história, capital, geopolítica, consumo e representação — como outros ensaios pontuais sobre obras seminais (embora algumas delas pouco conhecidas) de artistas que de uma forma ou outra acompanhou, e com cuja obra dialogou criticamente. Essa talvez seja uma das suas características enquanto teórico e crítico cultural, uma insuperável amizade e generosidade (às obras, aos artistas, aos amigos) que se reflete no irresistível e acutilante olhar crítico ao medium fotográfico como veículo e expressão das desigualdades provocadas pela finança, economia e política. Essa última obra de Sekula é um vídeo/ensaio visual onde o artista questiona a virtude da arte, num contexto amplamente minado pelo cinismo do capitalismo reinante e das suas insidiosas marchas no reino das artes. É um título irónico que tem a dupla função de trazer novamente para a discussão a cara de Janus da imagem fotográfica, a sua dupla função, mundana e politizada, no contexto de uma cultura à deriva e à mercê do mediatismo de teorias da conspiração e desinformação em roda livre numa época de proliferação acelerada da mesma em redes sociais.

Num dos excertos dessa peça, Sekula cita um dos seus mentores (seu professor de juventude e amigo de longa data) o artista John Baldessari, numa linha onde este afirma que para um artista — visitar uma feira de arte é como observar os pais a fazer sexo. Este tipo de sarcasmo e os jogos de palavras e de sentidos (fair é usada no duplo sentido de mercado e de justiça) são uma das grandes marcas do pensamento e da escrita de Sekula. Este conjunto de textos, rigorosamente arrumados de forma cronológica, ajudam a compreender o avanço do percurso teórico de Sekula, mas acima de tudo a descodificar que, embora os meios de produção e distribuição da imagem fotográfica tenham mudado radicalmente nas últimas décadas, e esta se tenha tornado na principal forma de comunicação, as suspeições quanto à sua total virtude se devem manter.

 

Allan Sekula

Mack Books

 

Allan Sekula
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Manuel Botelho

Ateliês e tutoriais: Reflexões sobre o Ensino da Arte

[F.B.A.U.L.]

 

Ateliês e tutoriais: Reflexões sobre o Ensino da Arte é um livro especial. É uma versão aumentada da “última lição” de Manuel Botelho na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, proferida aquando da sua jubilação do cargo de Professor Associado em Novembro de 2020. Após 25 anos de carreira docente Manuel Botelho descreve e analisa a sua atividade docente e pensa de forma fundamentada sobre as questões levantadas pelas necessidades do ensino de arte, e sobre as questões e problemas  que se levantam ao ensino de arte nos dias de hoje.

O livro está dividido em seis grandes secções:

1. Projecto artístico, 2. Ateliês e tutoriais, 3. Percurso letivo, 4. Ensino à distância  e 5. Post Scriptum.

Na primeira parte, subdividida em nove capítulos temáticos, Botelho apresenta-nos a questão essencial do ensino artístico que é a da premência da ideia de projeto artístico, ou seja, da procura por linhas orientadoras na qual a prática individual se possa ancorar, estruturar, crescer, criticar, desconstruír ou reconstruír. Segundo Manuel Botelho, e esse parece ser o maior desígnio desta proposta, o ensino artístico deve sobretudo contemplar uma relação de aproximação entre os jovens artistas e a história da arte e das aproximações e práticas que os antecedem, mediada por artistas praticantes.

«Como no passado, a arte pode e deve ensinar-se, transmitindo aspetos fundamentais do que herdámos da tradição e atuando de acordo com as práticas contemporâneas, com todas as contradições e paradoxos que daí possam advir. E o papel dos artistas é aqui fundamental, pois terão que ser eles a assumir os aspetos nucleares dessa passagem de testemunho.»

Manuel Botelho faz deste aspeto da mediação dos conhecimentos e da experiência teórica e prática da arte a grande mensagem que o seu estudo acerca das formas da pedagogia da arte nos oferece.

Botelho explica, a partir da sua experiência de artista praticante e observador militante, que o espaço da aprendizagem e ensino da arte é hoje um lugar polifónico e fluido onde «sem  fronteiras  ou  regras  definitivas,  ensina‐se  em  função  de  grandes  linhas orientadoras consensuais, as únicas que podem servir de referência matricial no  interior  desse  território  flutuante  onde  praticamente  tudo  se  tornou  possível.  Em  traços muito gerais, a escola de arte poderá ser vista como um ponto de passagem, um  lugar  transitório  “destinado  a  fornecer  aos  estudantes  as  ferramentas  práticas  e  teóricas para navegarem, por si próprios, um presente em constante mutação”». É assim que explica o funcionamento de uma cadeira de projeto artístico, como cerne incontornável da aprendizagem artística, e define o seu funcionamento através de aturados diálogos onde a individualidade dos alunos, as suas formas de reflexão e ação são enriquecidas com a contextualização das suas ideias no espectro alargado da história da ideias artísticas através de uma visão pedagógica que ora se assume como transgressiva, sugerindo uma definição radical do posicionamento artístico dos jovens perante o passado e o presente, ora se propõe como um lugar terapêutico, no sentido em que «se assume identicamente como um como um espaço de igualdade e libertação criativa (…) que dá prioridade a uma outra ordem de fatores, encorajando a sociabilidade através do reforço da criatividade e sua aplicação aos mais variados aspetos da existência humana.».

A sua intuição e experiência pessoal, aliadas a um conhecimento vasto e estruturado das metodologias de ensino em vários contextos e épocas históricas, suportam a sua penetrante viagem ao âmago do pensamento artístico e seu desenvolvimento no contexto escolar, ao trabalho que realizou com muitas gerações de artistas nos ateliês em longos e intensos tutoriais, com um pendor pessoal e humano únicos, numa época em que a autonomia e a liberdade pedagógica é cada vez mais espartilhada por princípios burocráticos exteriores  ao pensamento criativo.

A última parte do livro transcreve porções de tutorias que ocorreram já no período da pandemia, num contexto de isolamento durante o qual alunos e professores comunicavam por meios digitais, sem acesso aos espaços de partilha e criação dos ateliês. Por fim, uma secção de imagens onde se ilustra o dia a dia da vida nesses espaços de pensamento, ação e convivialidade que são o combustível da criação e onde se dá conta da vitalidade e necessidade radical desses lugares físicos de partilha.

Este livro consegue ser em simultâneo uma ressonância magnética ao cérebro, ao coração e aos membros do ensino artístico contemporâneo, uma crónica do funcionamento da instituição onde Manuel Botelho lecionou e onde deixa marcas pedagógicas profundas, um tratado acerca dos processos e metodologias ideais aplicáveis ao ensino artístico de hoje, uma autobiografia profissional e um testamento às gerações futuras.

 

Manuel Botelho

F.B.A.U.L.

 

Manuel Botelho
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David Santos

A palavra imperfeita

[Documenta – Sistema Solar]

 

David Santos tem dedicado grande parte da sua atividade à crítica de arte e à curadoria, áreas próximas, por vezes afins, mas com formas de ação necessariamente diferentes. O seu mais recente livro — A palavra imperfeita — traz-nos um conjunto amplo de textos escritos nos últimos vinte anos, uma topografia pessoal para a convergência entre a sua prática crítica e curatorial que, como Pedro Lapa indica no prefácio, é da ordem da “afeção sensível”.

Estes textos, aqui agrupados por ordem alfabética de forma a permitir que se evadam às lógicas nas quais foram originalmente publicados (apesar de uma pequena porção dos textos ser inédita), e também de escapar a uma certa insipidez da organização cronológica, permite ao leitor uma aproximação ao universo crítico, teórico e afetivo de David Santos. O conjunto de textos selecionados facilita um mapeamento muito amplo das práticas artísticas nacionais e da contextualização das mesmas em discussões abordadas por teóricos e artistas internacionais do período em causa — entre os anos noventa do século passado e o tempo presente; são cento e quatro textos e ensaios, encadeados em cerca de mil páginas.  Este mapeamento é naturalmente filtrado por essa afeção sensível, bem como por uma filiação teórica nos passos da teoria e crítica pós-estruturalista, que também tem sido uma das grandes fundações das práticas artísticas das últimas décadas. Pode-se mesmo afirmar que essa contiguidade entre os regimes teóricos a partir dos quais ensaia as suas aproximações à prática artística e as instâncias mundanas nas quais funcionam os artistas e as obras visadas, não são mais que idiomas comuns que permitem o acontecimento dessa afeção sensível ou da afinidade intelectual.

David Santos introduz esta antologia com “Na extremidade do saber e da ignorância”, explicitando a sua aderência ao pensamento através da escrita (e da leitura) no encalço de Deleuze, que cita: «...Só escrevemos na extremidade do nosso próprio saber, nesta ponta que separa  o nosso saber e a nossa ignorância  e que faz passar um ao outro. É apenas deste modo que somos determinados a escrever. Suprir a ignorância é transferir a escrita para depois ou, antes, torná-la impossível. Talvez tenhamos aí, entre a escrita e a ignorância, uma relação mais ameaçadora que a relação geralmente apontada entre a escrita e a morte, entre a escrita e o silêncio»..

É neste exercício subtilmente pendular entre a extremidade do que se julga conhecer e o que se procura demarcar que David Santos ensaia estas leituras. São caminhos, como o próprio afirma, ou hipóteses de entendimento de um conjunto de obras que experiencia (assim, no Presente), invocando a sincronia tática que Rosalind Krauss reivindica para a experiência e percepção estética. Sem fronteiras, errante, imediata, fragmentária, progressiva, em permanente toque entre a arte «que assalta os sentidos e a mente» e o mundo real com que conversa.

A lista de artistas tratados é extensa e de grande alcance, exteriorizando uma abertura e uma vontade de aproximação ao “real” como prerrogativa de todos os questionamentos — «Estamos perdidos e procuramos o caminho.» como diz a certa altura a propósito da obra de Fernando José Pereira — e esta frase bem podia sumarizar a sua postura conversante com universos tão diversos como os de Antoni Muntadas, Ângelo de Sousa, José Maçãs de Carvalho, Vito Acconci, Sara & André ou Andreas Gursky. Outra coisa que transparece na escrita de David Santos é o comprometimento com os valores (humanos, éticos, políticos, sociais) a que parece aderir apaixonadamente em cada texto. Há uma «reflexividade discursiva» que se entende num continuum, como se a escolha de artistas e obras a tratar (há que sublinhar que os textos aqui compilados apareceram originalmente em contextos muito diversos e não estão aqui sequenciados por qualquer ordem especial) fosse apenas uma forma de permitir ao autor continuar a escrever, a pensar, a viver. Afinal, não é para isso que a arte serve?

 

David Santos

Documenta – Sistema Solar

 

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Carlos Vidal

As Quatro Invisualidades — de Velázquez a Richard Wagner

[Edições do Saguão]

 

Publicado pelas Edições do Saguão, na coleção Sanguínea, o mais recente livro do crítico e ensaísta Carlos Vidal. Tomando como impulso um capítulo do magistral Invisualidade da Pintura — Uma História de Giotto a Bruce Nauman, publicado pela Fenda em 2015 e entretanto já esgotado, este volume aborda e aumenta a aproximação do autor àquilo que nomeou de quatro invisualidades.

O presente livro divide-se em duas partes:

1. Do ocularcentrismo à invisualidade e 2. As quatro determinantes da Invisualidade.

Na primeira parte Vidal sintetiza as linhas de força do pensamento ocidental que nos trouxe a primazia da ocularidade como forma de certificação da verdade e motor do conhecimento tendente à primazia da visualidade e deixa algumas advertências acerca das materialidades que histórica, processual e metaforicamente acompanham a prática da pintura e o pensamento conducente à execução do “quadro”.

Na segunda parte, Carlos Vidal decompõe e explica então as quatro determinantes da invisualidade, a saber: 1. O Visível, 2. O Visual, 3. O Invisível e 4. O Invisual. Estes quatro subcapítulos estão subdivididos em subsecções que permitem ao leitor uma divisão muito didáctica das grandes linhas de força que constituem a história da pintura e desaguam no argumento refundador de Vidal.

Como o autor sintetiza e questiona, depois de uma larga sucessão de explicações acerca do processo de construção histórica das noções de representação e pintura: «A pintura é a invenção, ou o desejo obsessivo para a invenção de processos que visam a “recuperação” (ou re/visualização) da opticalidade, a pintura é, assim, a reinvenção da opticalidade, ou seja, é a sucessão de momentos que ocultam e, ao mesmo tempo, procuram reinventar formas  de opticalidade. Ora, a cada tentativa inédita (…) de recuperação da opticalidade deverei, nos termos de Alain Badiou, chamar acontecimento, ligando seguidamente a pintura às outras artes e a arte ao amor, à ciência e à política.». Pode-se dizer que é precisamente a partir desta asserção que Vidal desenvolve os argumentos da sua narrativa acerca do “acontecimento” da pintura, e, na pintura, trazendo para o centro da discussão a imaterialidade do gesto — “paradigma de um meio sem fim» e que permite a Vidal fazer a ponte entre uma visão materialista da história da pintura e a proposta radical de que a arte existe previamente no mundo, sendo anterior à concretização «que nada concretiza, pois o gesto pictórico(…) pertence a um tempo anterior.».

A grande virtude deste livro, além de isolar as teses antes apresentadas das quatro determinantes da invisualidade, reside precisamente na qualidade sintética e no valor prático do itinerário que Vidal traça, desde as discussões acerca da racionalidade ocularcêntrica fundadora, até às temáticas da definição essencialista do medium da pintura, terminando numa desenvolta atualização do problema da criação artística que parece encontrar a solução para muitos dos seus impasses na negação radical das determinantes históricas que a definem — «...o gesto pictórico resiste a tornar tudo da ordem do visível.».

 

Carlos Vidal

Edições do Saguão

 

Carlos Vidal As quatro invisualidades
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