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Alexandre Estrela: A Third Reason e Igor Jesus: Clavier à Lumières 

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José Marmeleira

 

Refira-se a coincidência. A presença simultânea no espaço Rialto6, em Lisboa, das exposições A Third Reason de Alexandre Estrela (Lisboa, 1971) e Clavier à Lumières de Igor Jesus (Lisboa, 1989) não foi planeada. Um conjunto de circunstâncias ditou a reunião de obras de dois artistas com sensibilidades comuns e cujas práticas incluem procedimentos vizinhos. Por exemplo, o uso inesperado do som e da imagem, o interesse pela sinestesia, uma curiosidade por outros modos de conhecimento, em especial o científico, uma abordagem entusiasmada, mas rigorosa à técnica.

Já será precipitado afirmar que entre os dois existem afinidades fortes ou, latentes, diálogos incontornáveis. Afinal, cada artista lida com questões específicas e parte de momentos distintos de uma produção. Por exemplo, A Third Reason assinala o regresso, a título individual, de Alexandre Estrela ao circuito expositivo nacional, enquanto Clavier à Lumières conta com a curadoria de Natxo Checa. E, no entanto, dito isto, as duas exposições afirmam uma coerência estética e conceptual.

Igor Jesus apresenta Poem of Fire e Water-Hole, instalações onde a imagem se anima pelo som. São trabalhos que não visam apenas a percepção, mas o corpo. Isto é, actuam sobre o corpo que chega e vê. Produzem, mediante o cruzamento das imagens e dos sons, um efeito sobre os sentidos que se aproxima de uma vertigem indiscernível, uma ressonância indefinível. Diante dos sons e das luzes de Poem of Fire, o espectador recuará para logo avançar, atraído pela imagem simbolista que a luz estroboscópica ilumina e activa. Trata-se de um cartaz realizado para o poema musicado Prometheus: The Poem of Fire do compositor e pianista russo Alexander Scriabin (1871-1915) que também explorou as relações entre as imagens e os sons. No Rialto6, contudo, não se escutam notas de um piano, mas sons produzidos por um sensor de ondas luminosas que ressoam como os de uma harpa eléctrica. Do outro lado da imagem, escondida dos olhares do visitante, a eletricidade traduz pulsões solares (recorrendo aos contributos da radioastronomia, bem como a espectrogramas e granuladores) que trazem consigo sons. Dito de outro modo, é como se o som revelasse a luz ou vice-versa, a partir de uma realidade extraterrena: o sistema solar.

É precisamente à volta de uma realidade extraterrena e extra-humana que a instalação seguinte, Water-Hole, se constrói. Com o auxílio do engenheiro eletrotécnico Carlos Gorjão, o artista captou sinais lunares (inaudíveis pelo ouvido humano) e integrou-os, por meio de um processo sofisticado, numa imagem (no caso, uma capa do disco 53º Norte de Setaoc Mass, autor e produtor alemão de música eletrónica). O efeito não é muito diferente daquele produzido por Prometheus: The Poem of Fire, mas identificavam-se nuances: desta vez, a técnica (a maquinaria) é revelada e a imagem aguarda o visitante num palco, o que confere um cariz cénico à experiência dos sons ocultos dos astros. Este elemento não é despiciendo: embora Igor Jesus indague outros sons e imagens — e outras imagens nos sons (e vice-versa) — a memória dos objectos e das imagens terrenas não desapareceu no universo planetário e na experiência, não sensível, dos campos magnéticos do Sol e da Terra. Permanece terrena.

 

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Igor Jesus. Clavier à Lumières. Vistas gerais das instalações no espaço Rialto6, Lisboa, 2021. Fotos. Vasco Stocker Vilhena. Cortesia do artista e Rialto6.

 

Se a pesquisa artística leva Igor Jesus para fora da Terra (sem dela sair), as obras de Alexandre Estrela revelam uma pesquisa mais introspectiva e concentrada, encerrada num feixe singular de objectos, imagens, experiências, dialécticas, afinidades. Como em outros trabalhos, o artista permanece espantado diante do que vê, faz e descobre. E há elementos e referências que persistem: a sinestesia, o cinema experimental, os confins culturais e artísticos das vanguardas e das pós-vanguardas, a materialidade da imagem, as possibilidades da técnica ao serviço da arte, a dúvida e o prazer da percepção. Ruin Marble é inspirada, na pedra paesina, fragmento de rocha feita de calcário e argila e originária da Toscânia. Quando fatiada, esta pedra exibe padrões de cores que sugerem representações de paisagens ou cenários surrealistas. Movido por esta criação visual da natureza e da geologia, Alexandre Estrela compôs num ecrã uma paisagem em devir: as imagens desta foram produzidas com graus de zoom de uma pedra semelhante à mencionada (e que pertencente à colecção do artista) e são animadas pelo som (gravado da bateria de Gabriel Ferrandini) e por um algoritmo. Num espaço horizontal, aparecem, em planos distintos, formas que se assemelham a rochas, ruínas, veios minerais, pináculos. Mas a experiência da contemplação acaba sabotada. O som bruto agita e constrói uma paisagem diante dos nossos olhos e do nosso corpo, deformando perspectivas e pontos de vista. Não há profundidade, apenas a ilusão que o som, quase físico, trai.

A Third Reason pode ser interpretada como um conjunto de imagens produzidas pela criatividade computacional. Vemos ou vislumbramos no escuro, a um ritmo particular, imagens que se tornam sempre noutras imagens, isto é, imagens que antes não existiam, quaisquer que seja o tempo do espectador na exposição. São também imagens feitas de outras imagens. Compostas de uma reprodução fotográfica do escritor Jorge Luis Borges e de imagens de restos de um espelho são-nos ditadas por Genesis P-Orridge, poeta, música, antigo membro dos Throbbing Gristle e dos Psychic TV. É a sua voz que, sob a direcção de uma máquina de inteligência artificial, lê um poema que, como as imagens, nunca é o mesmo, numa evocação das pesquisas de Brion Gysin e Ian Sommerville.  É justificado considerar se o que temos diante de nós é de facto uma máquina que produz, autónoma, imagens e frases inéditas, colagens sem fim ou um modo de fazer que o artista desenhou e realizou com o auxílio de uma equipa de colaboradores.  A resposta mais adequada tenderá a situar-se num espaço intermédio, incerto, mas A Third Reason nunca existiria sem a memória humana onde, precisamente, repousam os artistas e os autores que Alexandre Estrela resgata para a sua obra.

 

 

Alexandre Estrela

Igor Jesus

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José Marmeleira é Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação (ISCTE), é bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) e doutorando no Programa Doutoral em Filosofia da Ciência, Tecnologia, Arte e Sociedade da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, no âmbito do qual prepara uma dissertação em torno do pensar que Hannah Arendt consagrou à arte e à cultura. Desenvolve, também, a actividade de jornalista e crítico cultural independente em várias publicações (Ípsilon, suplemento do jornal PúblicoContemporânea Ler).

 

O autor escreve de acordo  com a antiga ortografia.

 

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Alexandre Estrela. A Third Reason. Vistas gerais da exposição no espaço Rialto6, Lisboa, 2021. Fotos. Vasco Stocker Vilhena. Cortesia do artista e Rialto6.

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