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Max Ruf: Radio

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Filipa Correia de Sousa

 

(...) então a água ficou quase tão lisa como um espelho; como uma madrepérola, abrira-se por cima a concha do céu, anoitecia, e sentia-se o cheiro a lenha das lareiras, sempre que o vento trazia os sons da vida (...).[1]

 

São, definitivamente, poucas as vezes em que, nos dias de hoje, temos oportunidade de ver pinturas sobre uma parede que não branca. Isto é, uma parede de fundo dito neutro, limpo de particularidades, estéril pela sua alvura e clareza. Como sabemos, a pintura pode pedir, exigir até, essa superfície branca pela liberdade e flexibilidade que oferece à sua disposição e instalação, bem como à nitidez resultante do jogo de luz e reflexos que é estabelecido no espaço onde a pintura é apresentada e, enfim, perscrutada pelo olhar atento dos espectadores. No entanto, não deixa de ser intrigante pensar acerca desses outros lugares, dessas outras paredes ou superfícies, onde a pintura, em tempos passados, tomava então lugar.

No início daquilo a que chamamos humanidade, a pintura surge na rocha das cavernas, nas profundas, húmidas e escuras grutas, para depois vir a ser admirada à luz do dia nos entalhes dos templos erguidos no cimo dos montes ou nos túmulos debaixo dos desertos, nos frisos e nas câmaras das antigas villas, nos tectos de capelas e de catacumbas clandestinas, nas majestosas cúpulas de catedrais, em enormes e sumptuosos salões, até às grandes ou recatadas salas, diminutos gabinetes de uma casa, nos quais as pinturas seriam iluminadas tenuemente pelas constantes variações e trepidações da luz de uma lareira, pelo fagulhar demorado da lenha que arde. Sobre paredes mais regulares ou mais irregulares, em salas mais faustosas ou mais modestas, é certo que até à época dos grandes Salões, a pintura tomava lugar nos mais diferenciados ambientes expositivos que em muito diferiam, naturalmente, das estéreis paredes brancas sobre as quais nos acostumámos a observá-la. Não será, decerto, estranho para o espectador deparar-se com obras que pareçam misteriosamente deslocadas, insuficientemente autónomas, quando expostas nas paredes neutras e sob o ambiente estéril de uma galeria ou de um museu. Na verdade, há histórias que se contam acerca de determinadas pinturas que perderam a possibilidade de serem observadas sob a luz exacta e no ângulo de visão certo, quando retiradas do seu contexto original, das salas onde eram instaladas sobre lareiras, sobre escadarias, sobre altares, sobre o acolhedor convívio entre pares ou sobre o recolhimento de alguém que medita.

É certo que estamos, hoje em dia, já muito longe dessas circunstâncias. Mas não deixa de ser, de facto, muito curioso, depararmo-nos com essas inesperadas situações em que, surpreendentemente, as pinturas não são tão-somente encontradas pelo espectador no espaço, em virtude da sua formalidade, mas antes, em que estas pareçam encontrar a sua forma no espaço onde são apresentadas.

A exposição Radio, de Max Ruf, inicia o projecto expositivo Figura Avulsa, organizado pela artista Ana Cardoso, o qual tem lugar num antigo prédio junto ao miradouro de Santa Catarina, em Lisboa. A primeira sala de exposição trata-se de uma antiga cozinha; reconhecemo-la pela grande chaminé e lavatórios de pedra, pelos mosaicos na parede. A luz é amena, e uma única pintura ocupa a parede. Ao título da pintura, sem título, é acrescentada uma breve indicação, ou sugestão, de uma descrição, entre parêntesis —“green, grey, red, blue”. O mesmo acontece com as pinturas apresentadas no espaço adjacente, no exterior.

O momento seguinte da exposição ocorre, então, no saguão do prédio. O espaço é frio, húmido; uma sensação evidentemente outonal. Mas a estranheza de observar pinturas num espaço exterior é quase de imediato mitigada pela nitidez oferecida pela luz natural que ali chega, indirecta, desde o topo dos prédios. É uma luz límpida e homogénea, vítrea, quase aquática. Ouve-se o som persistente de um ventilador, contrastado pelos sons provenientes de uma cozinha que tem a janela vizinha no saguão.

Ouvem-se talheres e pratos a ser manuseados, água a correr numa torneira, um curto diálogo de vozes, gargalhadas sinceras — os sons da vida, como escreveu Broch. E, olhando em redor, as pinturas parecem coabitar aquele espaço, como se sempre ali tivessem pertencido.

Suspensa na grade dessa janela vizinha, encontramos uma pintura de tom verde claro, pontuada por três pontos escuros. Na sua abstracção, a aplicação da tinta verde, diluída, sobre a tela, evoca reflexos de luz em ondulações, reflexos indistintos na água, sobre os quais os pontos emergem, contrastantes. Num jogo de velaturas, entre transparência, opacidade e densidade, os pontos parecem, por assim dizer, flutuar sobre a indefinição do fundo. Numa outra, uma grelha verde sobre um azul translúcido, aquoso. Não intitulada, a didascálica é dada entre parêntesis: “blue, green line horizontal, two green lines, vertical”. Em frente a esta, uma outra grelha que sobressai sobre um campo de formas indefinidas, irregulares, de cores fortes: “untitled (white lines, horizontal, green fields, horizontal, over yellow, orange and white wash)”. Tal como esta última convive, criteriosa e equilibradamente, com as grelhas da janela sobre a qual está instalada e com os degraus da escada de serviço que lhe é adjacente, uma quarta pintura sobressai naquele espaço. A sua potencial organicidade torna-se ali evidente, em virtude da sua instalação sobre uma parede que, marcada pelo tempo e pela humidade do lugar, a envolve, e com ela parece coexistir. Por fim, uma peça em madeira na parede: “objecto (dois)”, intitula-se. De maneira muito particular, este título parece sugerir um potencial mote para a dualidade entre elementos e forças, entre figura e fundo, entre campo e contracampo, peso e leveza, equilíbrio e desequilibro, manifestamente presente nas pinturas de Max Ruf. Regressar ao espaço da cozinha e revisitar a pintura que preludia a exposição, faz-nos concluir isso mesmo.

Tal como a criança, diz-nos Rothko, que, por instinto, principia as suas representações do espaço desenhando, no fundo de uma folha de papel, uma linha para criar o chão, e, no topo da folha, uma linha para criar o céu, também o gesto do pintor nos faz reconhecer essas forças que substanciam o nosso lugar no mundo. O lugar que ocupamos entre aquilo que está mais longe ou que está mais perto, entre aquilo que é o horizonte e aquilo que assume uma verticalidade, o que está acima ou abaixo de nós, entre aquilo que se clarifica, adiante, e aquilo que é oculto, atrás. É aí que o ímpeto da pintura se perfaz: na convocação desse meio onde a sensação e a experiência do movimento do corpo tem lugar, entre recuos e aproximações, prolongamentos e suspensões. Aí, nas palavras de Rothko, onde o cumprimento de uma ideia na pintura “depende da representação do espaço que ela utiliza”[2].

A abertura do hiato entre aquilo que vemos e as possibilidades daquilo que pode ser visto, que pode ser vislumbrado, a partir dos caminhos tomados para a abstracção, cumpre-se, neste caso, mediante as obras encontrarem, sem esforço, o seu lugar no espaço. Nesta exposição, as obras conhecem o seu lugar entre paredes antigas, húmidas, transfiguradas, esverdeadas, erodidas pela substância do tempo que faz e do tempo que passa. Sobrevêm sob uma luz particular, límpida, familiar, e fixam-se por entre esses sons da vida, momentâneos, cristalinos. E é verdade que, como bem notou Virginia Woolf, para conservarmos um dado momento, “precisamos de nos lembrar do que vimos[3]. A tal “marca na parede” que Woolf evoca, imagem inesperada (seria “um prego, uma folha de roseira, uma racha na madeira?”) no cimo da chaminé, é trazida ao pensamento por entre o fumo do cigarro, pelo calor do lume aceso num dia de Inverno, pela faixa de luz na página do livro, pelas flores que jazem na jarra, pelo som suave de ramos a bater na janela. Não é essa memória holística, experiência genuína do sentimento do real, a “prova de que algo mais existe para além de nós próprios”, que é engendrada e, porventura, cumprida pela abstracção na pintura?

Estamos já longe, aparentemente, de encontrar a pintura fixa nessas outras paredes, suspensa sobre essas outras realidades, observável nesses outros espaços onde as mesmas parecem sublevar-se e encontrar o seu potencial lugar, íntimo. Mas se é certo que não podemos exigir uma morada permanente para a pintura, é também certo que, de tempos a tempos, a pintura parece fazer-nos recordar e reconhecer, instintiva e surpreendentemente, esse espaço que habitamos, no qual o nosso corpo se sabe no mundo e se sabe finito, mediante essas tão inesperadas mise-en-scènes dotadas de vida, das quais somos espectadores.

Max Ruf

Figura Avulsa  

 

Filipa Correia de Sousa (Lisboa, 1992) é curadora independente, ensaísta e co-directora do espaço UPPERCUT, em Lisboa. Mestre em Filosofia-Estética pela FCSH: Universidade Nova de Lisboa, pós-graduada em Filosofia Geral pela FCSH: Universidade Nova de Lisboa e licenciada em Pintura pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa.

 

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia

 

 

max f-1
max f-2
max f-12
max f-6
max f-3
max f-9
max f-5
max f-4
max f-10

Max Ruf, Radio. Vistas gerais da exposição no espaço Figura Avulsa. Fotos: João Neves. Cortesia do artista e Figura Avulsa.  Obras: Untitled (two green fields, one red field,1-4), 2019, óleo s/ tela, 90x60 cm; Untitled (green, grey, red, blue), 2019-20, óleo s/ tela, 90x60 cm; Untitled (green, three green points, composition), 2020, óleo s/ tela; Untitled (blue, green line horizontal, two green lines, vertical), 2019, óleo s/ tela, 90x60 cm; Untitled (white lines, horizontal, green fields, horizontal, over yellow, orange and white wash), 2019, óleo s/ tela, 150x100 cm; Objecto (dois), 2020, madeira, cola, parafusos.


 

Notas:

 

[1] Hermann Broch, A Morte de Virgílio, trad. de Maria Adélia Silva Melo, Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2014, p. 13.

[2] Mark Rothko, A realidade do artista. Filosofias da arte, trad. de Fernanda Mira Barros, Lisboa: Edições Cotovia, 2007, p. 139.

[3] Virginia Woolf, “A Marca na Parede”, in Contos, trad. de Miguel Serras Pereira, Manuela Porto, Clara Rowland e Margarida Vale de Gato, Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2004, p. 11. (sublinhado nosso)


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