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O desenho impreciso de cada rosto humano, reflectido! Retratos de Júlio Pomar

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Isabel Nogueira

 

O retrato é, como se sabe, um dos géneros tradicionais da arte bidimensional, a par da paisagem e da natureza-morta. Mas o retrato retém o “real” — na sua dimensão imagética, claro — de um modo potencialmente intenso, único, até afectivo. A imagem é, neste caso, entendida, e sublinhando a pertinente perspectiva de Hans Belting (Bild-Anthropologie, Antropologia da imagem, 2001), como um “objecto destinado a simbolizar e a representar a experiência do mundo, do corpo e da própria História”. Na verdade, o retrato pictórico — que é o assunto desta exposição — constitui uma espécie de dissimulação, quer dizer, está na vez de alguém, e é nessa dissimulação que continua a assentar o fascínio que, inevitável e historicamente, provoca. De facto, opera-se um jogo de presença-ausência, de permanente tensão entre o domínio perceptivo — plástico, material — e de quem é visto através dele. E esta dinâmica pode tornar-se intensa e envolvente.

Com curadoria de Sara Antónia Matos e de Pedro Faro, o Atelier-Museu Júlio Pomar apresenta uma mostra de retratos realizados por Pomar (1926-2018) ao longo da sua vasta carreira. A montagem da exposição denota dinamismo e coerência nos agrupamentos de obras, de entre os quais se destacam os trabalhos neo-realistas dos anos 40 e 50, movimento artístico de que Júlio Pomar foi um dos mais destacados representantes. Entre os vários retratos que produziu nesta fase, muitos deles denunciadores das condições de vida difíceis, e que o Estado Novo tornaria ainda piores, nesta exposição está o estupendo retrato de um homem-trabalhador-anónimo. Merecem também referência a singularidade e a elegância de retratos mais intimistas, por exemplo, de Tereza Martha, mulher do artista. O traço é inequivocamente seguro e esvoaçante, ao mesmo tempo. As experiências artísticas de Júlio Pomar, mais figurativas ou mais abstractizantes, ou ainda pontualmente ligadas à prática de assemblage, vão pontuando o espaço expositivo e conduzindo o olhar do espectador. E, além do traço, a cor é outro elemento fundamental e por vezes intenso.

Do ponto de vista das pessoas retratadas, percebem-se afectos, memórias, apreço intelectual, artístico, político ou musical. Estão retratados Carlos do Carmo, Mariza, Mário Soares, Graça Lobo, José Cardoso Pires, António Vitorino de Almeida, Ilse Losa, Mário Dionísio, Alice Jorge, entre tantos outros, num total de cerca de 50 obras. Mas, curiosamente, vemos também retratos de indivíduos que Júlio Pomar nunca viu, naturalmente, pela disparidade cronológica, tais como, Baudelaire, Camões, Dante, Allan Poe, ou Samuel Beckett. Quer dizer, estes retratos foram construídos a partir de outros retratos, estes últimos, acabando por se estabelecer como uma categoria de retrato icónico, capaz de atravessar o tempo e até a estética.

Há algo de imutável aqui, que poderá ir além da particularidade de um rosto. E estamos a reportar-nos, claro, e também, ao lugar do observador.

Marie-José Mondzain (L’image peut-elle tuer?, 2002) afirma que a imagem dá “visibilidade a uma ausência”. Comunicar pela imagem seria colocar, de facto, em evidência uma “visibilidade sem matéria”. Mas esta matéria é amplamente significativa sobretudo quando assume a forma retrato de alguém. Por meio de uma delimitação física, material e deliberada, institui-se um espaço de legibilidade fundado no poder dos olhares: de quem constrói e de quem vê, o que — e neste caso reportando-se à fotografia — Roland Barthes definiu como operator e spectator, tendo como ligação o spectrum, isto é, o objecto em si e o que representa ao mesmo tempo. Da pintura à fotografia, o retrato do indivíduo é inequivocamente causador de fascínio.

Na verdade, podemos afirmar que o retrato é resultado de uma afirmação genérica de modernidade, sobretudo a partir do Renascimento, no século XV, e da compreensão do indivíduo como ser único dentro de um colectivo. Essa individualidade toma, naturalmente, uma densidade inevitável quando o sujeito é retratado só. E é efectivamente uma constante na história da arte do Ocidente. E também na obra de Júlio Pomar. Os retratos mais intensos são os retratos sós, onde toda a composição converge para uma única pessoa. E retratar é, de facto, conferir singularidade e permanência, ao tornar intemporal e fixa a imagem de alguém.

Tal como sucede na divisão dos suportes e técnicas — pintura, escultura, fotografia, vídeo, instalação, etc. —, também podemos interrogar o sentido da divisão tradicional das artes bidimensionais em retrato, paisagem e natureza-morta. Não possuímos uma teoria dogmática sobre isto. A liberdade e a variedade que a técnica, a linguagem, e o tema assumiram, sobretudo a partir de meados do século XX, é assinalável. Podemos, legitimamente, pensar estas divisões como mera especulação teórica. Mas podemos também olhar para elas como uma forma operativa de continuar a pensar a arte, a reflectir sobre ela e sobre o seu lugar no mundo. O retrato é um óptimo pretexto. A obra de Júlio Pomar também.    

 

Atelier-Museu Júlio Pomar

 

 

Isabel Nogueira (n. 1974). Historiadora de arte contemporânea, professora universitária e ensaísta. Doutorada em Belas-Artes/Ciências da Arte (Universidade de Lisboa) e pós-doutorada em História da Arte Contemporânea e Teoria da Imagem (Universidade de Coimbra e Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne). Livros mais recentes: "Teoria da arte no século XX: modernismo, vanguarda, neovanguarda, pós-modernismo” (Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012; 2.ª ed. 2014); "Artes plásticas e crítica em Portugal nos anos 70 e 80: vanguarda e pós-modernismo" (Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013; 2.ª ed. 2015); "Théorie de l’art au XXe siècle" (Éditions L’Harmattan, 2013); "Modernidade avulso: escritos sobre arte” (Edições a Ronda da Noite, 2014). É membro da AICA (Associação Internacional de Críticos de Arte).

 

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.

 

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O desenho impreciso de cada rosto humano, reflectido! Retratos de Júlio Pomar. Vistas gerais da exposição no Atelier-Museu Júlio Pomar. Fotos: António Jorge Silva, Cortesia de Atelier-Museu Júlio Pomar.

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