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Lisboa Soa

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Isabel Nogueira

A escuta como inadiável necessidade

O som é dos elementos mais importantes num ambiente em que permaneçamos ou em que simplesmente circulemos, podendo constituir uma fonte tanto de profundo prazer como de total desconforto e reactividade. Por vezes, trata-se de um fenómeno subtil, até imperceptível, mas que está lá e que, a seu modo, nos entra no corpo, às vezes de modo visceral, e que, para o bem e para o mal, imprime uma marca. Nas cidades de maior dimensão, como Lisboa, o silêncio pode ser raro e valioso. Nos últimos anos, as grandes cidades sofreram com um extremar do ruído, que se foi tornando numa infeliz banalidade. O som das cidades corrompeu-se. Talvez nos tenhamos apercebido de imediato. Talvez não. Quando se deu por esta realidade, o ruído imperava. A título de exemplo, o confinamento a que recentemente estivemos sujeitos permitiu claramente evidenciar o impressionante contraponto entre ruído e silêncio.

A consciência do som através da escuta activa é francamente importante, uma vez que pode verdadeiramente alterar a nossa percepção, estimulando-a, sofisticando-a, problematizando fenómenos, e inclusivamente modificando comportamentos. Associada a esta questão do ruído e da necessidade de incrementar a escuta, surge outra questão relevante. Trata-se da noção de espaço colectivo, portanto, partilhado por todos, e do impacto sonoro que cada comportamento individual pode produzir nessa escala. A necessidade de atentar sobre a escuta, partindo da arte — objectos, instalações, concertos, performances sonoras, passeios auditivos —, é um modo operativo de também fomentar a consciência do lugar, do Outro e, claro, do Eu. Parte-se da arte para a vida e regressa-se à primeira, de um modo orgânico e problematizante.

O evento Lisboa Soa, com direcção artística de Raquel Castro, é uma iniciativa singular neste âmbito de reunião de pensamento e de propostas artísticas, cujo enfoque se encontra no som, e que acontece em diversos espaços da capital, este ano na sua 5.ª edição, no âmbito de “Lisboa Capital Verde Europeia 2020” e integrada no programa “Lisboa na Rua”, da EGEAC. Nesta edição, foram ainda atribuídas seis bolsas de criação artística a artistas residentes em Portugal, e que foram convidados a mostrar as suas peças. Antes de destacarmos algumas das propostas do evento, um elogio à resiliência de continuar a produzir cultura em tempos, por diversos motivos, difíceis, como este que vivemos. Ao longo de quatro dias, alguns lugares icónicos de Lisboa — Estufa Fria, Panteão Nacional, Museu de Lisboa-Palácio Pimenta, Palácio Sinel de Cordes, Mãe d’Água, Terraço EPAL, entre outros espaços —, seguindo as normas de segurança recomendadas, lançaram ao espectador a proposta de conferir ao som o protagonismo da acção, sob diversas maneiras.

Entre uma breve mostra de bicicletas sónicas (Environmental Bike), capazes de produzir sonoridades quando pedaladas, passando por performances/concertos de música exploratória — Vítor Rua, Sara Anjo, Luís Antero & João Lourenço, Raw Forest, Nuno Rebelo & Constanza Brnčić, Vítor Joaquim & João Silva, Angelica Salvi & João Pais Filipe, Gabriel Ferrandini, Joana Sá & Luís Martins, entre outros artistas —, ou por passeios sonoros, com Margarida Mendes ou com o colectivo West Coast, ou ainda por entre instalações – Colectivo Suspeito, Eunice Artur, Gonçalo Alegria, Henrique Fernandes + Tiago Ângelo, Ana Água + Carmo Rolo + Ricardo Guerreiro, Nuno da Luz, entre outros –, cujo som é, como seria expectável neste contexto, um organismo vivo e parte fulcral da composição, o Lisboa Soa aconteceu, gerando cumplicidade e curiosidade. Mas foi sobre três instalações que particularmente pendeu a nossa atenção.

Gil Delindro apresentou a obra Fictional Forests (Palácio Sinel de Cordes). O espectador é convidado a fruir um espaço que se encontra ocupado por centeio — produto nacional seleccionado pelo artista —, criteriosamente disposto na vertical, rodando em pequenos molhos, cujo subtil toque em microfones produz uma poética e sensitiva sonoridade. O conjunto ganha mais subtileza pela qualidade da iluminação e do consequente efeito luz-sombra que emana, capaz de envolver e de criar um espaço fortemente intimista e até hipnótico. Por oposição, Nuno Mika, um dos artistas seleccionados através do open call, construiu Non-Place (Garagem EPAL), uma excelente instalação de sons industriais, metálicos e agressivos. A luz é também impactante e poderosa. O conjunto propõe ao espectador uma relação quase potencialmente ficcional, improvável, até assustadora, com o espaço. O som, sobretudo ele, claro, a revelar-se.

Finalmente, destacamos a bela instalação de Marco Barotti  na Estufa Fria. Clams é uma obra, como o título indica, constituída por conchas iguais entre si, construídas a partir de plástico reciclado, com um dispositivo de som no seu interior, que emana a sonoridade e, simultaneamente, a concha faz o movimento de abertura e fecho resultantes dos dados recolhidos por sensores de qualidade da água colocados no Tejo. É uma obra delicada e surpreendente: conchas a comunicar no meio do espaço verde. Entretanto o dia começou a cair. O Lisboa Soa está a terminar. No centro do lago da Estufa Fria, inicia o concerto de Joana Sá e Luís Martins. O Outono também se começa a fazer ouvir. É só prestar-lhe alguma atenção.

 

Lisboa Soa

 

Isabel Nogueira (n. 1974). Historiadora de arte contemporânea, professora universitária e ensaísta. Doutorada em Belas-Artes/Ciências da Arte (Universidade de Lisboa) e pós-doutorada em História da Arte Contemporânea e Teoria da Imagem (Universidade de Coimbra e Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne). Livros mais recentes: "Teoria da arte no século XX: modernismo, vanguarda, neovanguarda, pós-modernismo” (Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012; 2.ª ed. 2014); "Artes plásticas e crítica em Portugal nos anos 70 e 80: vanguarda e pós-modernismo" (Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013; 2.ª ed. 2015); "Théorie de l’art au XXe siècle" (Éditions L’Harmattan, 2013); "Modernidade avulso: escritos sobre arte” (Edições a Ronda da Noite, 2014). É membro da AICA (Associação Internacional de Críticos de Arte).

 

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.    

 

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Lisboa Soa. Vistas das instalações: Fictional Forests (Palácio Sinel de Cordes); Clams (Estufa Fria)Non-Place (Garagem EPAL). Fotos. Vera Marmelo. Cortesia de Lisboa Soa.

 

 

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