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João Onofre: Untitled (It’s About That Time crystal version) 

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Sara Castelo Branco

 

O aforismo italiano “traduttore, traditore” alude à origem comum entre as palavras tradução (tradurre) e trair (tradire), sendo uma locução que exprime a alteridade irredutível entre um objecto e as suas  transferências para outras versões ou meios de expressão. A figura retórica que constitui este aforismo, a paronomásia, consiste em empregar palavras semelhantes no som, mas diferentes no sentido. Esta expressão, que aqui exprime um movimento ricoeuriano entre o acolhimento e a infidelidade, parece ser um dos alicerces de Untitled (It’s About That Time crystal version) (2022-2023) de João Onofre (Lisboa, 1976), que tanto trans-pôs e trans-formou um objecto do âmbito da esfera cultural, como o fez através de uma ordem intermedial ligada à tradução, e relacionada com uma mesma ideia sonora.

Concebida para o espaço expositivo do Rialto6, Untitled (It’s About That Time crystal version) é constituída por uma sala forrada com espuma de isolamento aberta sobre uma vitrina que revela a paisagem urbana exterior. No interior desta câmara encontra-se uma escultura em vidro soprado por trompete e transferido para cristal, que representa os 13 segmentos de 20 segundos organizados em três grupos de frequências baixas, médias e altas, pertencentes a parte da composição It’s About That Time (1969) de Miles Davis. Este mesmo trecho da obra do músico norte-americano surge numa partitura presente numa antecâmara desta sala principal. A primeira visão sobre a exposição acontece porém no lugar ruidoso da rua, por intermédio desta espécie de vitrina, desacordando com a experiência silenciosa dentro da sala da exposição.

Untitled (It’s About That Time crystal version) mostra assim elementos não-audíveis do som através de diversos processos de transferência: o vidro é em si mesmo um fenómeno da mutação da matéria; a partitura, uma tradução do som em códigos; e, a escultura, uma metamorfose do material audível em material sólido. Trata-se portanto de um ver que desperta o escutar, uma vez que Untitled (It’s About That Time crystal version) actua sobre a corporeidade de um som diferido e ausente, operando entre o visível e o invisível. A instalação exprime também uma materialização da dimensão espácio-temporal do som: o que vemos na escultura e na partitura é uma duração em forma — a representação de um tempo em particular, de um it’s about that time.

O interesse pela cultura popular, e, em particular pela música enquanto arte fundamental no imaginário colectivo tem estado presente ao longo da obra de João Onofre, tal como sucede nesta instalação, cujo nome deriva de uma composição tocada integralmente por Miles Davis no álbum In a Silent Way (1969). Como afirma o curador Marc-Olivier Wahler, no texto do catálogo que acompanha a exposição, este álbum é considerado um marco na história do jazz fusão e na experimentação musical: Davis gravou-o inicialmente com todos os músicos a tocarem juntos no estúdio, e depois convidou-os a tocarem improvisações individuais. Num trabalho posterior em conjunto com o produtor Teo Macero, Davis empregou estas improvisações na concepção de uma gravação multipista, editando e montando estas diferentes gravações. O músico desenvolveu assim uma espécie de tradução daquilo que tinham sido as improvisações individuais dos outros músicos, recriando-as e reunindo-as numa composição multiforme.

O som emerge da vibração conduzida através da propagação de uma fonte sonora para um detector ou receptor, sendo essencial que entre os dois existam meios materiais (sólidos, líquidos ou gasosos) para que exista propagação. Por esta razão, o som não se difunde no espaço cósmico, uma vez que não se propaga no vazio. A vibração de uma fonte sonora origina assim um movimento ondulatório que viaja em todas as direcções através de ondas sonoras ou acústicas invisíveis. Apesar da necessidade de materialidade para se propagar, o som acontece especialmente no tempo, como ocorrência repetida dentro de uma certa frequência. Por outro lado, o silêncio não se opõe ao som, mas é-lhe co-presente. Neste sentido, a escultura produzida e selada em cristal desta instalação é quase uma espécie de objecto-performance, que materializa um primeiro momento temporal, aquele em que um músico fixou no seu trompete uma surdina firmada na cana de um mestre vidreiro. Enquanto o soprador-trompetista tocou a partitura durante 20 segundos, o soprador de vidro assegurou que a pasta de vidro fundido inchava e arrefecia homogeneamente face ao ar libertado pelo músico[i]. Neste sentido, em Untitled (It’s About That Time crystal version), o silêncio faz-se ou torna-se presença — seja pela experiência silenciosa do visitante dentro desta câmara isolada, ou pela comparência do som nas suas manifestações mais mudas. Esta instalação evidencia a ideia de que o som é uma experiência espácio-temporal que se dá na espacialidade da sua realização no tempo. A instalação Untitled (It’s About That Time crystal version) é portanto a materialização de um tempo, bem como a concretização de um modo de presença pelo qual se manifesta uma ausência.

 

João Onofre

Rialto6

 

 Outros artigos sobre João Onofre: 

— Once in a Lifetime [Repeat] por Carlos Vidal

— Untitled (Orchestral) por Sérgio Fazenda Rodrigues

 


 

Sara Castelo Branco trabalha como investigadora, curadora e escritora. Tem vindo a fazer a curadoria de exposições e de ciclos de cinema experimental como Back of My Hand (Carpintarias São Lázaro, Lisboa, 2022), Blinding Light (CRIPTA 747, Turim, 2021), To Film With One Hand My Other Hand (Galeria Zé dos Bois, Lisboa, 2021), Under the Ground (Galerias Municipais de Lisboa, 2020) ou Out Off Nature (Arsenal – Institut für Film und Videokunst, Berlim, 2019). Realizou residências de investigação artísticas em instituições como CRIPTA 747 (2021, Turim) e Cité Internationale des Arts (2023, Paris). Em 2023, criou o projecto Solarity Prospects, cuja primeira apresentação irá acontecer em Berlim, numa parceria com instituições como ACUD Macht Neu e o ICI Berlin Institut for Cultural Inquiry. Tem um doutoramento em Arts et Sciences d’Art e Ciências da Comunicação, numa co-tutela entre a Université Paris 1 - Panthéon Sorbonne (Paris) e a FCSH-Universidade Nova de Lisboa (Lisboa), enquanto bolseira da FCT. Actualmente, é investigadora colaboradora do ICNOVA (FCSH-UNL) e investigadora integrada do CITAR (Universidade Católica do Porto). Tem um mestrado em Estudos Artísticos – Teoria e Crítica da Arte (FBAUP, 2014) e uma licenciatura em Ciências da Comunicação e da Cultura (ULP, 2012). Na área da investigação e da crítica contribui regularmente com artigos e ensaios para revistas, monografias e catálogos de arte (Contemporânea, ATLAS Projectos, Mousse, Archive Books, entre outros).

 

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia

 


Nota:

 

[i] Ver texto do curador Marc-Olivier Wahler, no catálogo que acompanha a exposição, para uma descrição deste processo: “com base num molde cilíndrico, as frequências baixas e altas são sopradas de modo a gerar formas esféricas e elípticas. Outro molde, igualmente cilíndricos, é totalmente preenchido pelo sopro das frequências médias, dele resultando formas cilíndricas. Começa, então, um longo trabalho que, como uma gravação multipista de Miles Davis, integra técnicas de corte e montagem para produzir uma composição complexa em 13 fases, 13 formas, cada uma nascida da formalização de um tempo único” (Wahler, 2023, p. 11).

 


As duas primeiras imagens: João Onofre: Untitled (It’s About That Time crystal version), 2022-2023. Vidro soprado por trompete, transferido para vidro cristalino Atlantis soprado.18 x100 x17 cm. Espaço Rialto6, 2023. Fotos: Bruno Lopes. Cortesia do artista e Galeria Cristina Guerra. Última imagem: João Onofre, Untitled (It’s About That Time crystal score), 2023. Água-tinta, gofragem, grafite. 66 x 47 cm. Fotografia: Vasco Stocker de Vilhena. Cortesia do artista e Rialto6. 

 

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