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Sónia Almeida: Ó (ó agudo)

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José Marmeleira

 

 

Podemos dizer que Ó (ó agudo), exposição retrospectiva de Sónia Almeida na Culturgest, com a curadoria de Bruno Marchand, coloca uma pergunta que traz consigo outra pergunta. A primeira pode tomar a seguinte forma: como podemos hoje ver pintura? A segunda pode ser formulada assim: como podemos hoje pensar e, portanto, compreender a produção digital de imagens com base nos elementos constituintes da pintura?

Num primeiro encontro com Ó (ó agudo), que reúne obras produzidas na última década e meia pela artista, não encontramos apenas opções pictóricas que associamos ao tempo do modernismo. Descobrimos, igualmente, referências a imagens pixelizadas (Nove e Meia e Ambidestreza), alusões a arquivos digitais (Bolsos e Mentiras) e padrões reticulares (Acelerando nas Rotundas) que nos trazem à memória superfícies não-pictóricas. O exterior — tão prosaico quanto complexo, por vezes desconcertante — está, assim no interior da exposição, embora traduzido pictoricamente e no quadro do que poderíamos designar de investigação (artística). Com efeito, Sónia Almeida pensa com a pintura, não só a sua constante instabilidade, mas o contexto digital (com as suas interfaces, ferramentas, experiências) no qual, enquanto prática, ela habita. Tal resposta não se transforma num gesto mimético. Ou seja, a artista não se fascina pelo carácter disruptivo dos novos media, não é motivada por um interessa por aquilo que fazem.  Não são “as novas artes” (quaisquer que possam ser os seus produtos) que espoletam o seu fazer. É a pintura, a pintura que ela coloca entre si e a realidade.

Ainda que enfatizando a opção pictórica da abstracção, escreveu-se que a pintura de Sónia Almeida comunicava um entretecimento das suas possibilidades, das suas dinâmicas[1]. Ora, é de facto essa qualidade que se renova no espaço da Culturgest. Dentro da exposição, estamos dentro da pintura, não só com pinturas. Embora diferentes entre si, as obras (com formatos e materiais distintos) partem de um todo, de um corpo, de um mesmo conjunto. Tal afirmação poderia ser feita a propósito de outro artista ou exposição, mas no caso de Ó (ó agudo) percebem-se os contornos de um “estilo” que se manifesta na repetição de motivos, na produção de padrões, na composição de formas mais ou menos abstractas ou até na presença de certas cores. Mas esse estilo, digamos assim, é suficientemente delicado, discretíssimo — quase tímido — para nos escapar, como se quisesse passar despercebido, não ser visto na totalidade (em particular nas séries de pinturas que vão marcando um ritmo nas e das salas).

Esta sensação de que as imagens nos escapam, ou que de algo delas fica nas margens da pintura, é amenizada com as ideias de movimento e mobilidade. As pinturas de Sónia Almeida não se satisfazem com a nossa capacidade de olhar, ver e observar. Ora sugerem a presença de um gesto passado (na série Esquerda/Direita Eu Sou Duas), ora implicam o espectador numa acção sobre a obra. Esta última situação surge diante do puzzle ambulatório Motores de Busca, cujas estruturas o espectador pode mover (ao ponto de, envolvido no processo, sentir que participa na obra) ou nas pinturas das quais pode revelar xilogravuras. Abrir e fechar, esconder e mostrar, separar e juntar são gestos continuamente convocados e é por esses gestos que a artista nos vai conduzindo à nossa experiência do digital. O facto de movermos as imagens — que têm peso, volume, bem como cores e formas que sugerem composições — permite-nos evocar gestos análogos ainda que muito diferentes, senão opostos ao da experiência proposta. Noutro plano, ainda que não distante, a instalação Acelerando nas Rotundas vai-se transformando numa atmosfera que cai que sobre os sentidos, ao ponto, de tanto vermos, deixarmos de ver.

Estará Sónia Almeida, a propósito destas obras, a produzir um discurso sobre a digitalização de mundo, semelhante àquele que o cubismo realizou sobre a geometrização do mundo? Sobre este assunto, Theodor W. Adorno escreve na sua Teoria Estética, que os artistas cubistas aceitaram essa geometrização do mundo, a fim de assegurarem a objectividade da experiência estética[2]. O mesmo pode ser argumentado acerca daquilo que a artista nos propõe? Porventura. Mas será certamente abusivo afirmar que essa experiência confirma apenas a ordem do digital. A sua objectividade é crítica.

Os motivos que vão circulando entre as salas sublinham um carácter intangível, fugidio, fluído, mas sempre pictórico, isto é, feito com a materialidade da pintura. Veja-se em especial esse trabalho notável que é A mão em concha atrás da orelha, no qual o nosso olho circula e navega. Ou Ó agudo e Bolsos e Mentiras, trabalhos nos quais a textura concreta do tecido interrompe a vertigem de Acelerando nas Rotundas. Mas será, talvez, nas últimas salas que Sónia Almeida permite libertar de uma determinada poética da pintura: aquela que, tendo diante de si a digitalização do mundo, lhe logra escapar, negando-o. Refiro-mo às pinturas onde se vislumbram fitas e cordas em movimento, paletas solitárias, figuras humanas cujo movimento fino contrasta com o esquematismo dos contornos, ou discretas notas musicais. Assim, se nada na obra de Sónia Almeida preanuncia qualquer tipo de utopia, não deixa de nos prometer alguma felicidade, uma felicidade que, pela intuição e da tensão da pintura — desejando ser compreendida e recusando a compreensão — permanece preciosa.

 

Sónia Almeida

Culturgest

 

José Marmeleira é Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação [ISCTE], é bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia [FCT] e doutorando no Programa Doutoral em Filosofia da Ciência, Tecnologia, Arte e Sociedade da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, no âmbito do qual prepara uma dissertação em torno do pensar que Hannah Arendt consagrou à arte e à cultura. Desenvolve, também, a actividade de jornalista e crítico cultural independente em várias publicações [Ípsilon, suplemento do jornal Público, Contemporânea e Ler].

 

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia. 

 

 





 

 

Sónia Almeida, Ó (ó agudo). Vistas gerais da exposição na Culturgest, 2023. Fotos: António Jorge Silva. Cortesia da artista e Culturgest.

 


Notas:

[1] Ver: https://www.publico.pt/2009/08/14/jornal/ser-ou-nao-ser-pintura-abstracta-0

[2] ADORNO, Theodor W. (2008); Edições 70, Lisboa; pág.475.

 

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