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Untitled (Orchestral)

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Sérgio Fazenda Rodrigues

Atento à forma como o som marca e constrói a perceção do espaço, João Onofre apresenta a instalação Untitled (Orchestral) na Sala das Caldeiras do antigo edifício da Central Eléctrica de Lisboa: MAAT.

O edifício assume a lógica de uma construção industrial e a sala destaca-se pelo seu grande pé-direito, no entanto é a dimensão e a complexidade das grandes caldeiras, que ali se encontram, que tornam o espaço coeso e que caracterizam o seu ambiente. O local é lido como um gigantesco embrenhado de sombras, máquinas, escadas e passagens, onde tudo aponta para um imbricado mundo de surpresas, e as quatro caldeiras, com caminhos e perspectivas inesperadas, reforçam a curiosidade de um percurso pelo seu interior.

Refira-se que a oportunidade de atuar numa lógica site-specific e num ambiente que difere do tradicional white cube, atento à relação que se estabelece com o local, abarca um desafio mais exigente, mas, também, mais aliciante. Um desafio que, no caso desta sala, pela sua densidade, natureza e atual funcionamento museológico, comporta uma dificuldade acrescida.

Tendo em conta este conjunto de exigências e um contexto tão especial, João Onofre cria uma instalação sonora, in situ, que ocorre em tempo real e possui um carácter performativo. E, de forma sensível e inteligente, ao conceber algo que vive de e com o espaço existente, sem se opor à lógica do que lá encontra, nem se deixando esmagar pela natureza do que ali está, o artista consegue, numa ação cirúrgica, manipular o ambiente da sala.

Em boa verdade, a tubagem, os suportes e os restantes componentes metálicos que compõem as caldeiras são utilizados como instrumentos de percussão, gerando o som da instalação. A forma como o som se propaga provém da difusão que é feita por um elaborado sistema de microfones e colunas mas, também, da própria configuração do espaço. Esta nova camada sonora que o artista introduz é ativada por um conjunto de painéis solares e por uma câmara de captação de imagem que, de acordo com a intensidade da luz, transforma a amplitude sonora e, por arrasto, a maneira como se apreende o espaço. Dir-se-ia que, de modo preciso e assertivo, a instalação funciona como um pequeno microrganismo que, agindo internamente, altera a dinâmica de um corpo maior.

A instalação de João Onofre foi desenvolvida com o apoio de uma vasta equipa contando, entre outros, com o curador Benjamin Weil e com o compositor Miquel Bernat mas, também, com um grupo alargado de engenheiros de som e programadores sonoros. Esta equipa dispôs de quatro meses para pesquisa e experimentação; testando a conceção e a construção dos aparelhos, sistemas e programas informáticos que viabilizaram a produção, captação e transmissão/espacialização do som, bem como a sua articulação com a energia do sol.

Quer isto dizer que, para concretizar a intervenção da forma prevista, houve todo um complexo procedimento que, só foi possível, através de um conhecimento alargado do local. Algo que ditou a organização cuidada dos vários mecanismos que, não estando visíveis, evitaram que a obra resvalasse para uma celebração de aparato tecnológico.

A intervenção de João Onofre utiliza os meios que dispõe e os elementos que fabrica, com cuidado e lucidez. Pequenos martelos, berbequins, microfones especiais para captação de sons metálicos e uma elaborada distribuição de diferentes fios, colunas e sub-woofers, criam uma biblioteca de sons, escolhidos em função dos sítios que vão ocupar. Desta forma, o som que ouvimos não corresponde necessariamente àquele que é produzido no exato local onde estamos, mas sim, àquele que, sendo gerado na sala, obedece a uma partitura que o distribui no tempo e no espaço.

A distribuição do som reforça a ligação ao movimento do sol e desloca-se, alternadamente, de nascente para poente. De igual forma, o vigor da sua cadência advém da intensidade da energia solar e essa transformação faz com que aquilo que se apreende — a composição e o modo como ela influi na sala — esteja em permanente mudança.

Paralelamente aos sons que são mais presentes e que provêm de um tipo de percussão, escutam-se outros que são mais graves, pontuais e demorados (como os que decorrem dos berbequins), que têm origem noutro tipo de percussão. Ambos respondem ao trajeto e à força da luz exterior, mas enquanto uns se encadeiam longitudinalmente, outros aparentam vir do fundo para a superfície. Estes últimos, emergindo da sombra, ou do meio da sala, convocam uma dimensão interior que dá espessura ao espaço. Por isso, João Onofre trabalha o som de forma cinematográfica quando o associa à deslocação (nascente-poente), mas também de maneira escultórica quando o associa à profundidade (dentro-fora).

João Onofre não se limita a inserir o seu trabalho no interior da sala mas, com grande astúcia, constrói algo que parte do próprio edifício. O que ouvimos decorre, assim, de um novo uso do local, que remete para o seu antigo funcionamento e passado industrial.

Numa central elétrica desativada, acolhe-se um registo que se alimenta, em tempo real, da energia do sol. E através desse registo, nasce um convite à efabulação da memória. Algo que, como a história, é de todos, mas que, como o fascínio, é pessoal. Algo que, como o artista nos vem habituando, de forma irónica, altera o funcionamento das coisas.

Untitled (Orchestral) é um obra ímpar que, de modo singular, indaga o espaço, a história e a instituição que a acolhe. Curiosamente, talvez o mais irónico seja o facto de tudo isso ser posto em andamento pela lente de uma câmara, à qual João Onofre parece não escapar.

 

João Onofre

MAAT

 

 

 

Sérgio Fazenda Rodrigues. Arquitecto e Mestre em Arquitectura (Construção), foi doutorando em Belas Artes e é doutorando em Arquitectura, onde investiga as relações espaciais entre Arquitectura e Museologia. Faz curadoria de arquitectura e artes visuais e integrou a direcção da secção portuguesa A.I.C.A. Desenvolve com João Silvério e Nuno Sousa Vieira, o projecto editorial Palenque. Foi consultor cultural do Governo Regional dos Açores, tendo a seu cargo, nesse período, a construção da coleção de arte contemporânea do Arquipélago – C.A.C. 

 

 

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