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The Otolith Group: A Sphere of Water Orbiting a Star

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Maria Kruglyak

 

Dando continuidade ao mito de Drexciya — originalmente criado na década de 1990 em Detroit pela dupla de techno afrofuturista homónima, constituída por James Stinson e Gerald Donald —, The Otolith Group (Anjalika Sagar e Kodwo Eshun) convida-nos a entrar na espacialidade especulativa subaquática de A Sphere of Water Orbiting a Star, patente no HANGAR — Centro de Investigação Artística. Com curadoria de Margarida Mendes, esta exposição vincula a lendária contracultura drexciyana à realidade atual e histórica da economia esclavagista atlântica — um contexto em que as companhias de seguros chegavam a pagar indemnizações pelo homicídio de pessoas escravizadas. Abarcando uma investigação crítica na qual se inclui um espaço arquivístico semificcional, uma instalação multicanal e uma apresentação semanal de Hydra Decapita (2010), A Sphere of Water Orbiting a Star procura desenvolver aquela mitologia, transportando o seu afrofuturismo especulativo para as atuais realidades pós-coloniais, decoloniais e abolicionistas.

A exposição inicia-se com um arquivo que integra não apenas elementos semificcionais do movimento de contracultura drexciyano, como discos, textos e pósteres, mas também as suas contrapartes não ficcionais, de que são exemplo The Black Atlantic, de Paul Gilroy, e Spectres of the Atlantic, de Ian Baucom.[1] Desta forma, A Sphere of Water Orbiting a Star cria um arquivo especulativo em torno dos míticos drexciyanos — descendentes subaquáticos dos nascituros de mulheres africanas escravizadas que foram atiradas ao mar no período do comércio transatlântico de escravos — que se associa à realidade histórica do "cemitério que é o Atlântico", usando as palavras de Kodwo Eshun.

Do lado oposto desta biblioteca, encontra-se uma impressão de um artigo do The Wire, “Drexciya: Fear of a Wet Planet” de Eshun, que aqui é descrito como "mestre do mito". Este ensaio dá continuidade ao trabalho que tem desenvolvido com Anjalika Sagar, vinculando agora as manifestações musicais, artísticas e críticas do mito drexciyano àquilo que este significa de um ponto de vista sociopolítico. "O ciclo drexciyano sonda as profundezas do Atlântico negro, investigando os seus «processos de mutação cultural e de incansável descontinuidade» a níveis extremos", escreve o autor. "Como o crítico cultural britânico Paul Gilroy teoriza, o Atlântico negro é a «rede» tecida entre os Estados Unidos e África, a América Latina e a Europa, o Reino Unido e as Caraíbas através da qual, desde os tempos da escravatura, se têm transportado, reencaminhado e cruzado informações, pessoas, registos e sistemas de desmaterialização forçada. […] A ficção drexciyana exacerba esta desumanização, saturando o mundo de alucinações impalpáveis que nos exasperam."

Assim se lança o mote para uma exposição cujos pontos focais, num sentido artístico e inspiracional, se localizam noutras latitudes — Detroit, Londres e Liverpool —, mas que se relaciona profundamente com a realidade portuguesa e com a tendência atual de reconhecimento do seu passado e presente colonial. Neste contexto, a forma do futuro especulativo revela-se um expediente para superar as limitações das realidades fundadas na matriz ocidental; e é esta postura especulativa que enforma o ponto de partida da principal instalação da exposição, instalada ao fundo da sala obscura. À esquerda, apresenta-se num ecrã de grandes dimensões um vídeo filmado junto à costa de Galway, na Irlanda, acompanhado de uma instalação site-specific de áudio de oito canais que reproduz um pequeno excerto das oito horas de entrevista de The Otolith Group a Remnant of a Hydrogen Element (suposta e aparentemente um dos mestres fundacionais do mito drexciyano). À direita, as palavras que se ouvem surgem transcritas noutro ecrã de tamanho idêntico.

Nesta instalação, com a sua inquietante coreografia — as vozes que se ouvem melhor do lado esquerdo, o texto escrito no lado direito —, pede-se ao entrevistado que explique a geografia de Drexciya.  Em resposta, Remnant of a Hydrogen Element diz que tudo foi conceptualizado e criado "a pensar no mar, a pensar no oceano. […] Emoção inteiramente marinha, à falta de melhor palavra." Em havendo alguma geografia, explica, seria apenas o fundo do mar. A dissonância entre os dois ecrãs espelha o espaço transatlântico, criando neste interstício um espaço expositivo subaquático. Aqui, é-nos perguntado se, a partir da massa continental da superfície da Terra, somos capazes de aceder a uma realidade diferente; ou será que a superfície "geográfica" do nosso planeta está tão agarrada à teia imperialista que temos de superar a história, a geografia e a realidade antes de sequer começar a imaginar um mundo diferente — um mundo sem escravatura?

Também Hydra Decapita, que configura uma espécie de preâmbulo da exposição, integra uma versão mais longa da entrevista da qual a instalação parte. Assinado pelo The Otolith Group, este filme de 2010 contextualiza Drexciya através da conjugação de excertos mais longos daquela entrevista, de cenários oceânicos, de uma música e de uma transcrição lida por Novaya Zemlya, que se ocupa de transcrever as vozes dos drexciyanos — "a falar de forma especulativa", claro está, usando a expressão que se ouve no filme. Nesta história, em Novaya Zemlya (a localização de um dos principais ensaios nucleares da União Soviética), detetam-se vozes hipnóticas até então desconhecidas; e é a própria Novaya Zemlya que transcreve a história do Zong, o navio do qual, em novembro de 1781, 130 africanos escravizados foram atirados ao mar devido à escassez de água potável, por sua vez decorrente de uma sequência de erros de navegação por parte do consórcio esclavagista de Liverpool.

Ainda que a oratória de Novaya Zemlya possa ser uma realidade especulativa, o massacre do Zong é um acontecimento histórico real que teria permanecido no esquecimento, à semelhança de tantos outros massacres no contexto da escravatura transatlântica, não fosse a questão judicial que se levantou quando do regresso da embarcação, altura em que os esclavagistas pediram indemnizações às respetivas seguradoras pelas pessoas escravizadas que tinham perdido — ou, aliás, assassinado. Escrevendo sem rodeios: a chacina do Zong teve direito a recompensa monetária. Primeiro, o tribunal decidiu a favor dos esclavagistas; após recurso (por esta altura, já sob o escrutínio da comunicação social e das militâncias abolicionistas), o Lorde Chief da justiça britânica deu razão à companhia de seguros. Cerca de 60 anos depois, a matéria despertou o interesse de J.M.W. Turner, que pintou The Slave Ship (1840); por sua vez, John Ruskin, que recebeu a pintura por oferta do seu pai, recorda-a no volume I de Modern Painters (1848), que faz parte do arquivo da exposição. Ambos os trabalhos rememoram e chamam a atenção para o massacre, que viria a tornar-se um elemento-base da mitologia drexciyana do ponto de vista das artes visuais.

Como tal, A Sphere of Water Orbiting a Star situa-se no intervalo entre a ficção e a realidade. Se o massacre do Zong aconteceu, os drexciyanos são especulativos; se Novaya Zemlya foi base fundamental das experiências nucleares de um estado comunista, também se revela mitologicamente capaz de configurar uma centralidade na qual se possibilita a comunicação entre mundos distintos. The Otolith Group, à semelhança de qualquer mestre do mito drexciyano que o tenha precedido (e venham a suceder), cria aqui um espaço subaquático que existe para lá da geografia e que gera condições para sarar, compreender e empoderar. E, ainda que possamos encontrar algumas dificuldades na transposição do sentido e da crítica da exposição para o contexto colonial português[2]  — note-se a sua ausência no espaço expositivo —, a mostra pode ser vista particularmente como um convite para desenovelar estas realidades presentes e históricas num espaço especulativo que transcende a geografia. Talvez falar de forma especulativa seja o único caminho a seguir.

 

The Otolith Group

HANGAR

 

Maria Kruglyak é pesquisadora, crítica e escritora especializada em arte e cultura contemporânea. É editora-chefe e fundadora de Culturala, uma revista de arte e teoria cultural em rede que experimenta uma linguagem direta e accessível para a arte contemporânea. É mestre em História da Arte pela SOAS, Universidade de Londres, onde se focou na arte contemporânea do Leste e Sudeste Asiático. Completou um estágio curatorial e editorial no MAAT em 2022 e atualmente trabalha como redatora freelancer de arte.

 

Tradução do EN: Diogo Montenegro.

Revista pela autora e pela editora.

 


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The Otolith Group: A Sphere of Water Orbiting a Star. Vistas gerais da exposição no HANGAR—Centro de Investigação Artística, Lisboa, 2023. Fotos: Ana Garrido. Cortesia The Otolith Group e HANGAR.

 


Notas:

 

[1] De notar a inclusão de The Black Atlantic: Modernity and Double Consciousness (1993) e Small Acts: Thoughts on the Politics of Black Cultures (1993), de Paul Gilroy; Assembling a Black Counter Culture (2022), de DeForrest Brown Jr.; The Deep (2021), de Rivers Solomon; Spectres of the Atlantic: Finance Capital, Slavery, and the Philosophy of History (2005), de Ian Baucom; e The Many-Headed Hydra (2000), de Peter Linebaugh.

 

[2] Curiosamente, no contexto atual da comunicação social portuguesa, assiste-se a um debate em torno de um novo memorial às vítimas da escravatura. Concebido pela artista Kiluanji Kia Henda a partir da iniciativa da Djass (Associação de Afrodescendentes), este memorial, que consiste num campo de canas de açúcar pintadas de negro, recebeu luz verde da câmara municipal em 2017; desde então, não obstante a urgência da sua construção, tem vindo a sofrer adiamentos sucessivos, devido tanto à pandemia como a questões administrativas. Em junho deste ano, no entanto, a câmara propôs transferir o monumento da sua localização original, no Campo das Cebolas — uma praça de grande visibilidade —, para a entrada das Docas da Marinha, junto ao Terreiro do Paço, assim implicando uma redução de escala e uma reconfiguração do projeto. Este plano foi severamente criticado pela DJASS, que inclusivamente acusou o presidente da câmara de boicotar o memorial. Ver “«Câmara de Lisboa não quer memorial às pessoas escravizadas», Djass”, Bantumen (30 June 2023).

 

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