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João Onofre: Once in a Lifetime [Repeat]

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Carlos Vidal

João Onofre afirmou-se com trabalhos de forte impacto em algumas colectivas de finais dos anos 90. Poderia citar a III Bienal de Arte AIP’98, a Bienal de Arte Contemporânea da Maia: Identificação de uma Cidade (1999) ou a transdisciplinar Arritmia: As Inibições e os Prolongamentos do Humano (2000), onde surgiram obras que se revelariam tematicamente premonitórias (isto é, que fixariam o autor a questões constantes como o corpo-máquina, o corpo performativo “trabalhando” o seu limiar ou o corpo relacional nas séries Untitled de embates de corpos, de 1998-99, e também Untitled [We will never be boring, 1997]), tendo também marcado a sua trajectória internacional a primeira individual em Nova Iorque (I-20 Gallery), em 2001.

Onofre é agora antologiado com eficácia na Culturgest por Delfim Sardo (curador), em Once in a Lifetime [Repeat], mostrando-se um eficaz “desenhador” de paisagens do nosso tempo.

O autor liga-se, sublinhe-se, a meios formadores das neovanguardas, como o vídeo, o filme e o desenho (informativo, textual ou tautológico) e, como outros decisivos artistas, faz e refaz as estruturas constituintes dessas mesmas linguagens.

Como a “escultura em campo expandido” teorizada por Rosalind Krauss, disciplina que passou a entretecer a paisagem, a arquitectura e a não-arquitectura como nova forma de paisagem, e a não-paisagem como outra forma de fazer arquitectura (sendo a escultura o elemento transversal a todo este jogo), a arte de João Onofre parece-nos ligar a performance ao filme, ou criar um tipo de performance como forma de não-filme (quando na obra predomina a corporalidade) e uma não-performance (é evidente que o filme GHOST, 2009-2012 não é uma obra performativa a priori) como filme. Entretanto, enquanto em Krauss a “nova escultura” atravessava, fazia parte ou integrava a paisagem e a arquitectura, ou a não-paisagem e a não-arquitectura, em Onofre, por seu lado, é a imagem que atravessa todos os pólos citados (performance, filme, não-performance e não-filme), ligando-os em original cadeia.

Stanley Cavell, em The World Viewed: Reflections on the Ontology of Film (1979), é um dos pensadores que melhor define este estatuto simultaneamente mecânico e maleável à tematização individuada da nova imagem, considerando as inovações de Debord ou Godard, nomeando dois casos evidentes. Leia-se Cavell: “A base material do medium dos filmes (tal como consideramos um suporte bidimensional e delimitado a base material da pintura) é, nos termos do seu aparecimento, uma sucessão de projecções automáticas do mundo. A ‘sucessão’ inclui os vários graus do movimento nos filmes: o próprio desenho do movimento; o curso de frames sucessivos que o constituem; a justaposição da montagem. A ‘projecção’ refere-se ao facto fenomenológico do ver, e à continuidade dos movimentos da câmara que ingere o mundo. O carácter ‘automático’ enfatiza o facto mecânico da fotografia, em particular a ausência da mão humana na formação dos objectos”.

Ou seja, se optarmos por uma espécie de cinema vérité que ignore os ensinamentos, exemplifiquemos, de Jean Rouch ou Dziga Vertov (que propunham, sobretudo este último, uma câmara-olho que revelasse a imprevista complexidade da banalidade quotidiana); de outro modo, se optarmos por um cinema vérité que aproxime o mecanicismo da câmara de filmar — colocando-a apenas diante de qualquer coisa — da evidência da câmara escura (que só regista), percebemos a ideia de Nam June Paik quando dizia que o vídeo era a porta de saída daquele que entrou no corredor do (ou pelo) readymade. Esta mecanicidade da câmara readymade (como a denomino) é fria, exactamente, mas nunca o é completamente. Porque, sobretudo em Vertov, aí se transfigura a realidade para melhor a conhecer e, noutro ponto, em Debord se recolhe e monta-se a realidade para elaborar sofisticados discursos político-ideológicos. Mas, seja como for, não é esta a via de João Onofre.

Este busca antes — de entre os três tópicos de Cavell: sucessão, projecção ou automatismo — os dois primeiros, a sucessão e a projecção. É esta acção sucessiva e projectiva que o leva aos seus temas claros e constantes, como disse. O “interstício espácio-temporal entre dois corpos”, usando os seus termos, apontando para o carácter extremamente problemático de uma relação (que pode gerar imobilidade, como em Untitled [We will never be boring]); a sombra omnipresente da morte (veja-se a série fotográfica Every Gravedigger in Lisbon, 2006); o som (na instalação na Appleton Square com a respiração e a obra completa de Carlos Paredes, 2016); a impossibilidade relacional-afectiva entre os corpos e os seres (não se tratando apenas de “corporalidade”); a performatividade que põe os corpos numa existência limite (o cubo Box sized DIE featuring… [banda Death Metal convidada no momento]), ou seja, no limite da existência e do suportável; mas, desenvolvendo, Onofre também nos pode já colocar definitivamente no outro extremo, o da perda irremediável e num jogo que se sabe perdido de antemão (no filme Untitled [Leveling a spirit level in free fall feat. Dorit Chrysler’s BBGV dub], 2009).

Noutra dimensão, GHOST eleva à última potência uma das facetas de Onofre: o sonho, ou melhor, uma vocação intensamente visionária, tão intrínseca que ela é, genericamente, à criação artística e que o autor possui, a esse visionarismo se entregando: uma árvore, uma ilha, ambas à deriva no largo mar do Tejo até à barra…

E citaria ainda outra situação: uma muito peculiar forma de “caravaggismo” onde as imagens lutam por uma presença que as faz desaparecer; e obtemos a luz que cega no filme Untitled version (I See a Darkness), de 2007. Corpo, luz, som, experiência do limite e da impossibilidade. Bom mote conceptual para entrar nesta exposição antológica.

Vejamos a montagem. De um lado (o seu preâmbulo ou epígrafe), Untitled (Leveling a spirit level in free fall feat. Dorit Chrysler’s BBGV dub); no lado oposto, encerrando o percurso, a obra que aqui se estreia, Untitled (Zoetrope). Esta obra fecha mas, ao mesmo tempo, abre, ou melhor, recorda as obras com que Onofre inicia a sua trajectória artística: os embates de corpos Untitled, já citados, de 1998-99. Nestes vídeos, recordemo-nos, trata-se de expor um nítido esforço numa ginástica de abraços violentos, como choques que impossibilitam a afectividade em todas as dimensões.

Se esta obra mais recente continua a falar-nos de impossibilidade, no entanto já não o faz como nas obras de 1998-1999. Aqui assistimos a um acto performativo cujos personagens são um colectivo de música gospel e uma equipa de râguebi. Quando alguém se aproxima de um microfone para cantar I Want to Know What Love Is (dos Foreigner), outro alguém o impede: este jogo não tem uma dimensão sofrida, parece mesmo evocar uma alegre teatralidade.

Um apocalipse alegre em João Onofre? Talvez. Mas o humor como antítese da dor derradeira sempre andou por esta obra, ainda que numa espécie de fantasmagoria. Por exemplo, não tendemos agora a levar a sério estes fotografados “coveiros de Lisboa”; a sua proximidade e exibição curiosamente afasta-os de nós, parece que esta série nos diz que eles não farão a nossa cova. Mas também é possível que sim, que seja um deles a abri-la. A proximidade conjuga-se com a distância. Estão aqui, junto a nós, na parede, fotografados, mas distantes e anonimizados de óculos escuros. Quem são estes personagens? Os nossos coveiros? Resposta: sim e não. Porque eles darão assento aos mortos, mas também morrerão. Falam-nos (fala-nos o autor) da morte com extrema serenidade. Por aqui a exposição, a curadoria, tende a acertar: desdramatizando o sentido das percepções.

Voltemos ao filme Untitled (Leveling a spirit level in free fall feat. Dorit Chrysler’s BBGV dub). Metáfora da finitude e do fracasso da condição humana? Certamente, mas muito mais do que isso: este filme é um jogo infinito, é o homo ludens de Johan Huizinga em todo o seu esplendor.

Temos um atleta, campeão europeu de queda-livre que transporta no seu peito uma câmara VHD, e executa cinco saltos (os seleccionados) durante os quais tenta colocar em posição de equilíbrio um objecto que serve para o medir, um nível de bolha. A banda sonora do vídeo é uma versão em theremin  concebida e interpretada por Dorit Chrysler do tema Good Vibrations dos Beach Boys. O som e o loop remetem-nos para uma atmosfera de eterno retorno, em que o objectivo parece ser o de uma eterna procura de equilíbrio. Mas o sentido da obra acaba por ser o inverso: trata-se antes da eterna busca e apresentação do nosso desnível e desequilíbrio. Trata-se de figurar e de dar corpo a um presente perpétuo de desequilíbrio, a contínua exposição da condição humana.

Deste modo, Onofre consegue conferir extensão ao tempo presente (mudado para presente perpétuo), porque procura representar o eterno retorno do desequilíbrio que nos impele e, por isso, não nos paralisa, porque se o equilíbrio é uma nossa aspiração, o desequilíbrio é a sua e nossa condição. O desequilíbrio dá-nos vitalidade.

João Onofre

Culturgest

Carlos Vidal. Artista, crítico e professor. Trabalha entre Lisboa e Madrid. Licenciado em Pintura pela FBAUL, onde lecciona Temas da Arte Contemporânea, Pintura, Estudos de Pintura. Doutorado em Pintura com a tese Invisualidade da Pintura: História de uma Obsessão (de Caravaggio a Bruce Nauman), publicada em Portugal e Espanha (2 edições, Brumaria, Madrid). Representado em colecções particulares e institucionais (Museu de Arte Contemporânea-Serralves, Porto; MEIAC, Badajoz; CAV, Coimbra, etc). Publicou recentemente Deus e Caravaggio: A Negação do Claro-Escuro e a Invenção dos Corpos Compactos (1ª edição: 2011; 2ª edição: 2014; duas
edições espanholas: 2016, 2017).

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João Onofre, Vox, 2015. Vídeo still. HD video, cor, som, 10'30''. Dimensões variáveis. Cortesia do artista.

 

 

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