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Meia-Noite: parte II

Beatriz Santiago Munoz © Jorge das Neves_001.jpg
Susana Ventura

Anozero’ 21-22 — Bienal de Coimbra curadoria de Filipa Oliveira e Elfi Turpin

 

 

Nota prévia: a presente crítica foca, apenas, a exposição central de Meia-Noite, no Mosteiro de Santa Clara-a-Nova, embora a Anozero’ 21-22 — Bienal de Coimbra compreenda um conjunto vasto de eventos colaterais e programas convergentes, entre exposições, acções performativas, conversas, workshops, entre outros. 

 

 

A primeira parte de Meia-Noite — proposta curatorial de Filipa Oliveira e Elfi Turpin para a Anozero’ 21-22 — Bienal de Coimbra — apesar de contida na sua estrutura e desenho [em estreito diálogo com a sala da cidade], funcionou como um sismograma do que estaria por vir, apontando para várias direcções possíveis, no sentido de convocar uma pluralidade de expressões que, afinal, caracterizam a arte contemporânea. Das promessas realizadas, a instalação Descolonizar o Pensamento, de Carlos Bunga, não teve qualquer reaparição, sendo seleccionado o vídeo Mother deste artista, datado de 2002, no qual a sua mãe rememora, sentidamente, o processo de fuga de Angola após o nascimento da irmã de Bunga. Na legenda da obra, aparecem as datas 2002-2022, como que inscrevendo o vídeo num ciclo que passaria pela instalação Descolonizar o Pensamento e terminaria no momento presente, na memória do próprio espectador, que inevitavelmente acorda esses fantasmas do passado colonial Português, coincidindo este ciclo, ainda, com a inscrição de elementos biográficos na obra do artista, que as curadoras justificam como momentos raros na produção de Bunga, muito embora a descolonização do pensamento seja, unicamente, possível quando esse passado é apreendido como colectivo e presente. 

Não serão, apenas, os fantasmas do passado colonial Português a serem evocados, emergindo da noite ecos e vozes múltiplas… O colonialismo e o imperialismo [incluindo a mutação mais recente — o capitalismo — e alguns dos efeitos mais severos que conhecemos, como a escravidão e o racismo] [re]aparecerão em diversas obras, como na primeira curta-metragem de Sarah Maldoror [que já tinha tido uma obra sua na primeira parte de Meia-Noite], Monangambeee, datada de 1969, cujo título vocaliza um grito associado aos ativistas anticoloniais durante a luta de independência de Angola, o mesmo grito que servia para alertar a chegada de esclavagistas Portugueses. O filme, a preto e branco, de atmosfera escura e, por vezes, impenetrável [cuja visualização poderia ter sido pensada para outro espaço], mostra-nos a condição humana deplorável em que os prisioneiros em Angola viviam sob a tortura e a opressão do seu colonizador. Outras obras serão, por exemplo, o filme Journey to a Land Otherwise Known, de Laura Huertas Millán, de 2011, em que a artista justapõe, de forma crítica, relatos de viajantes europeus ao depararem-se com esses mundos exóticos, a imagens do jardim botânico de Lille, evidenciando os mecanismos que, durante séculos, construíram e contribuíram para os estereótipos perpetuados pelo olhar e pensamento ocidentais. 

O filme Oriana, de Beatriz Santiago Muñoz, de 2021-2022, e a obra Trans_relations. I am the archive, de Euridice Zaituna LaKala, de 2020-2022, efectuam a ligação entre os sistemas opressores decorrentes das práticas coloniais abusivas e os problemas políticos de identidade, em que, no filme de Muñoz, por exemplo, se projecta num futuro livre do patriarcado, após a revolução e a luta armada liderada e vencida por Elas, entidade colectiva de mulheres, [d]escrita por Monique Wittig no seu livro Les Guérillères [1969], onde se lê:

se eu tomar o mundo, que seja para me desfazer dele imediatamente, que seja para forjar novos laços entre mim e o mundo.

A presença constante nas últimas décadas na arte contemporânea de questões associadas às práticas coloniais e aos movimentos, que procuram denunciar as feridas que permanecem abertas e presentes, corre o risco que gostaríamos que se evitasse, encontrando nesta passagem do texto de Wittig, não uma saída, mas um ímpeto ou um desejo: a obra de arte deve forjar novos laços entre nós e o mundo, logo após se desfazer dele, ou melhor, logo após desfazer tudo quanto bloqueia a passagem livre dos fluxos criativos e das composições plásticas, visuais, sonoras… 

Por sua vez, a obra de Euridice Zaituna LaKala recupera a forma antiga dos jornalistas tirarem notas [escrita estenográfica] para denunciar a ausência de personalidades negras numa colecção de fotografias de Marc Vaux, conhecidas por representar a cena artística do início do século XX, cruzando em painéis Led com letras a vermelho, em constante movimento, diferentes anotações, expressões, histórias, que remetem para o vazio deixado pelas estruturas de representação hegemónica [sendo a língua maior a primeira representação, a artista privilegia a língua afectiva ou menor — o crioulo — e formas de polifonia]. Não é de estranhar que outro grande tema desta segunda parte de Meia-Noite se centre, precisamente, nas questões de identidade, começando pelo próprio manifesto das curadoras que reivindicam uma curadoria feminista, descrevendo-a como um convite aberto à pluralidade, à diferença, à experimentação livre e crítica, à marginalidade, após, naturalmente, a destruição de todas as categorias normativas que regem, ainda, o pensamento moderno Ocidental. Deve questionar-se, hoje e cada vez mais, o intuito de uma Bienal de Arte numa determinada cidade. Numa cidade periférica, de média escala, como a cidade de Coimbra, significa uma abertura ao Mundo em que as obras de arte terão, necessariamente, de quebrar e destruir as designadas máquinas de poder segmentárias e ousar colocar em marcha pequenas rebeliões. 

A arte contemporânea não tem qualquer definição fixa, não apresenta esquemas genealógicos, serve-se, sem necessidade de justificações ou jogos da razão, da heterogeneidade que lhe é inerente. Pertence à sua natureza. Contudo, podemos reconhecer, entre várias outras características, um esforço de reclamar as diferentes forças, que condicionam o presente, para o seu domínio. O social, o ético, o político, o sexual, o económico são factores que entram no jogo de composição artística como todos os outros factores herdados da tradição estética. A criação da obra de arte é, indiscutivelmente, hoje um acto eminentemente cultural. Alguns movimentos de resistência — alguns cismados em doutrinas, outros expressão de uma liberdade absoluta só possível pelo acto criativo por si só — convivem [por vezes, pacificamente, por outras gerando grandes discussões — e que alegria pensar que a arte ainda mexe com os corações, além das acções de mercado, também] com movimentos globalizantes, em que as fronteiras são diluídas e as questões abandonam a sua especificidade para constituírem um fundo e um espírito comuns. 

Hoje, estamos em perfeitas condições para identificar este fundo comum e as questões que lhe deram origem. Este fundo tornou-se mais ou menos estável, as obras tornaram-se expectáveis, seguindo as novas narrativas, correndo esse enorme risco de homogeneização. Onde está a surpresa? O mistério? E o encantamento? Evocam-se mitos ancestrais [Seni Awa Camara], práticas ecológicas [Vivian Suter, Jessica Warboys] e indígenas [Daniel Steegmann Mangrané, Gabriel Chaile], elementos e criaturas naturais [Ru Kim, Maja Escher, Joana Escoval], as forças do tempo, a experiência da maternidade [Seni Awa Camara, Julie Béna] esperando que os corpos se abram à dor de não se reconhecer mais o próprio corpo [Julie Béna e nós, as mães]. O Zeitgeist é tramado, porque pode enevoar — qual nevoeiro hormonal produzido por uma máquina de fumo e a destilação de ervas com efeitos estrogénicos [Hormonal Fog, de Candice Lin & P. Staff, 2016-2018] — as qualidades estéticas das obras de arte. 

Ru Kim © Jorge das Neves_002
Maja Escher © Jorge das Neves_001
Paul Mpagi Spuya © Jorge das Neves_001
Yoan Sorin © Jorge das Neves_002
Sarah Maldoror © Jorge das Neves_001
Minia Biabiany © Jorge das Neves_001
Mané Pacheco © Jorge das Neves_001
Nelson Pereira dos Santos © Jorge das Neves_001
Lygia Pape © Jorge das Neves_002
Laura Lamiel © Jorge das Neves_001
Luidgi Beltrame © Jorge das Neves_001
Laura Huertas Millán © Jorge das Neves_001
Julie Béna © Jorge das Neves_004
Julie Béna © Jorge das Neves_002
Jessica Warboys © Jorge das Neves_002
Jessica Warboys © Jorge das Neves_001
Jesse Darling © Jorge das Neves_001
Jarbas Lopes © Jorge das Neves_001
Gabriel Chaile © Jorge das Neves_001
Euridice Zaituna Lakala © Jorge das Neves_002
Candice Lin & P. Staff © Jorge das Neves_002
Beatriz Santiago Munoz © Jorge das Neves_002
Aurélia de Souza © Jorge das Neves_001

Vistas de exposição do slideshow em ordem:

— Ru Kim, Maja Escher, Paul Mpagi Spuya, Yoan Sorin, Sarah Maldoror, Minia Biabiany, Mané Pacheco, Nelson Pereira dos Santos, Lygia Pape, Laura Lamiel, Luidgi Beltrame, Laura Huertas Millán, Julie Béna, Julie Béna, Jessica Warboys, Jessica Warboys, Jesse Darling, Jarbas Lopes, Gabriel Chaile, Euridice Zaituna Lakala, Candice Lin & P. Staff, Beatriz Santiago Munoz, Aurélia de Souza.

Capa: Beatriz Santiago Munoz

 

 

Existirão sempre obras que escapam às teias do presente, constituindo-se como movimentos livres na experimentação que iniciam. São verdadeiramente iniciáticas, porque recusam categorias, contendo uma alegria originária [que nada tem que ver com a alegria, que nós humanos, podemos sentir; por vezes, sucede o contrário, experienciamos uma tristeza impessoal absoluta], uma loucura sã e devaneios inimagináveis… Le Santa Maria, de Yoan Sorin [2022] é uma dessas obras e uma das que mais explora a relação com o espaço onde é exposta, no qual uma antecâmara recria o ambiente de um restaurante com fotografias manipuladas e pintadas nas paredes, quando o olhar persegue a luz violeta forte e o som pulsante de batuques, que advêm de uma sala contígua. O corpo é obrigado a contornar o espaço para descobrir a peça central de Sorin: uma estrutura metálica de grandes dimensões com nove potes de argila com manchas de cor salpicadas que vibram ao som da música com inspiração crioula, contaminando o corpo que sucumbe às ondas invisíveis e começa, inevitavelmente, a dançar. O impulso é imediato [suspeitando que poucos serão capazes de resistir]. 

A plasticidade do som é explorada, igualmente, pelos Musa paradisíaca na sua obra Cartola de Fumo [2022], exposta numa das capelas exteriores do Mosteiro, utilizando fragmentos de conversas com diferentes agentes da cidade de Coimbra, que distorce, sobrepõe efeitos e ecos loucos, retarda e alastra notas e timbres, risos e pontos de interrogação, de exclamação, como num movimento mágico [sendo um mágico, um dos convidados desta peça sonora]. Há um riso e uma perplexidade contagiantes no trabalho plástico do som [e que não é literal] nesta obra, levando-nos a abandonar a pequena capela com os sentidos mais abertos [e não só os ouvidos, pois o som tem essa particularidade de viajar pelo corpo e pelos diferentes órgãos]. 

Estas duas últimas obras revelam, ainda, a atenção dada à relação entre as diferentes obras e os espaços onde são expostas [como constatamos, também, em Un chant d’amour, de Laura Lamiel, ou na obra que abre o circuito expositivo Io vivere vorrei addormentato entro il doce rumore della vita, de Elisabetta Benassi, 2022, em que duas Lâmpadas Morse, nos dois extremos do longo corredor do piso térreo do Mosteiro, comunicam um diálogo escrito pela artista a partir de poemas de Pier Paolo Pasolini e, apesar de mais intensa quando visualizada à noite, a escuridão na qual este corredor se encontra, mesmo durante o dia, acentua-lhe os contornos enigmáticos como num sonho, ou ainda no dítpico de Jessica Warboys, na escultura de Joana Escoval, entre outros exemplos], contudo a estrutura conventual, após algumas edições, parece começar a esgotar o modelo, sobretudo perante esta heterogeneidade e pluralidade de temas, expressões, vozes, reverberações, em que as obras estão reduzidas a espaços compartimentados. Os diálogos, que algumas obras poderiam suscitar entre si, são, apenas, virtuais, e totalmente dependentes dos visitantes que se predispuserem a esse esforço. 

Muitas outras questões poderiam ser levantadas. Esta edição da Anozero’ 21-22 — Bienal de Coimbra apresenta artistas estrangeiros pouco usuais nos circuitos expositivos nacionais, alguns dos quais em fase de ascensão [veja-se o exemplo de Gabriel Chaile, cuja obra está, actualmente, em exposição na Bienal de Arte de Veneza e inaugurará, brevemente, uma exposição individual na Kunsthalle, em Lisboa], optando, contudo, por um conjunto de artistas Portugueses consagrados com obras comissionadas, que acabam por confirmar os respectivos percursos, quando desejaríamos ver estes artistas, perante uma mudança de território, a correr alguns riscos, a abrirem-se ao desconhecido… Afinal, não é esse, também, o desafio da noite? 

 

Anozero'21-22 Bienal de Coimbra, Meia-noite

 

Susana Ventura [Coimbra, 1978] Arquitecta de formação [darq-FCTUC, 2003], contudo prefere dedicar-se à curadoria, à escrita e à investigação, cruzando diferentes áreas do conhecimento. Gosta de pensar sobre arte, arquitectura, fotografia, cinema e dança, e ensaiar, ora em textos, ora em exposições, outras possibilidades de pensamento. [Por isso, também, doutorou-se em Filosofia, na especialidade de Estética, FCSH-UNL, 2013, sob orientação científica de José Gil]. Foi co-curadora de Utopia/Distopia, no Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia de Lisboa [MAAT]. Recentemente, foi curadora  da exposição Corpo Radial de Mariana Caló e Francisco Queimadela na Galeria da Boavista, em Lisboa.

 

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.

 

Meia-Noite: parte II. ANOZERO’ 21-22 — Bienal de Coimbra. Vistas gerais da exposição no Mosteiro de Santa Clara-a-Nova. Coimbra, 2022. Toda a fotografia neste artigo: Jorge das Neves. Cortesia de ANOZERO’ 21-22 — Bienal de Coimbra. 

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