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Mauro Restiffe: Amanhã de Manhã

Mauro Restiffe-6-©Bruno Lopes.jpg
Isabella Lenzi

A vida como ela é

 

“Você está na cozinha e eu na sala. Você parte amanhã de manhã e eu estou triste.” 

 

A imagem de um bilhete escrito à mão e deixado na mesa da cozinha abre a individual de Mauro Restiffe na galeria Zé dos Bois. A fotografia, que dá título à mostra, condensa algumas das questões tratadas em geral na obra de Restiffe e nesta exposição talvez com ainda mais ênfase. O texto e a literatura, os instantes compartilhados, a passagem do tempo, os corpos no espaço e sua ausência, as trocas de olhares, os rastros e o ato de estar no mundo com uma câmara. A fotografia como registro documental de algo que de fato aconteceu, e passou.

Com curadoria de João Maria Gusmão e Natxo Checa, Amanhã de manhã permanece até o dia 31 de julho no que antes foi um casarão lisboeta. A atmosfera doméstica e de intimidade das imagens percorre todos os espaços da mostra. Vida privada e pública, o íntimo e o social e político se cruzam e passam por um processo de fusão nos diferentes ambientes da antiga residência. A vida como ela é.

 

 

O registro da carta de amor está logo na entrada, antes mesmo de chegar ao espaço expositivo. A imagem remete para um ambiente específico e para um passado que já foi. Mas também, para um “amanhã de manhã” que ainda não chegou e talvez nunca chegue. O aspecto granulado, característico da fotografia de Mauro, sempre analógica e na maior parte das vezes a preto e branco, ressalta as camadas do tempo e a sensação de estarmos vendo algo que podia ser um sonho, uma memória ou pura imaginação. 

Na chegada ao primeiro andar te recebe um conjunto de fotografias de Lianna, companheira do artista por muitos anos, que carrega na barriga um dos filhos do casal. O políptico faz pensar no aspecto cíclico da vida e no que está por vir. Em um futuro e uma existência ainda incerta e desconhecida. Em uma das transformações mais profundas e vertiginosas que alguém pode passar. Como se tratasse de uma sequência cinematográfica, Lianna escolhe com calma a roupa que vai vestir. A ação não podia ser mais banal e corriqueira, mas não importa. O importante é o olhar [ou o sentimento por traz dele] de quem a captou. Alguém que participa da cena, que está ali presente, e que apesar de carregar uma câmara em alguns momentos passa quase desapercebido. O conjunto funciona como preâmbulo do que virá mais adiante.

 

 

As fotografias estão sem moldura, ampliadas em diferentes tamanhos e montadas diretamente em uma superfície rígida. Como em mostras anteriores, Mauro volta a exibi-las em linha, apoiadas em pequenas prateleiras. A ausência de barreiras entre as imagens permite cruzá-las em uma leitura mais contínua. Ao mesmo tempo, a arquitetura fragmentada da ZDB, dividida em salas de distintas dimensões, acentua a impressão de que estamos,, pouco a pouco percorrendo os capítulos de um livro ou de um filme. 

Na sala seguinte, muitos dos personagens são apresentados. O filho Matheus, que ao invés de olhar para o autorretrato de Rembrandt, olha para a câmara — e para nós. Rembrandt também nos olha, neste jogo de miradas que Mauro trabalha e retrabalha com frequência na sua fotografia. A representação se mistura e se confunde com o que chamamos realidade. O olhar frontal, e também a ausência do olhar, volta a aparecer no registro de um encontro no qual o único que nos encara diretamente é — assim como Rembrandt —  alguém que não está presente fisicamente na reunião. Seu retrato está impresso em uma transparência e é sustentado por uma silhueta que vemos de costas. 

 

 

O espelhamento e a propagação de miradas está também no registro de uma sessão de um filme de Yasujirō Ozu. A presença de uma imagem dentro de outra e as referências à história da arte e ao cinema são constantes na obra do artista. E não é casualidade a escolha do diretor japonês, conhecido por seus retratos da vida doméstica com planos frontais e perspectivas profundas que atravessam uma sucessão de espaços, revelados ou semiescondidos por portas corredeiras de madeira e papel de arroz. Neste plano específico captado por Mauro, uma criança de costas assiste na televisão a uma luta de sumô. É a moldura dentro da moldura, dentro da moldura. Neste jogo de geometrias e eixos, as linhas do teto convivem com as da parede, que se cruzam com uma cortina de xadrez e terminam nas curvas do moletom da criança, no canto direito da imagem projetada. 

Em outra obra, um corpo nu revela sua própria silhueta ao rosquear uma lâmpada. Esta e outras imagens funcionam como metáforas do próprio meio fotográfico e da necessidade da luz para sua existência. A luz da lâmpada, do projetor de cinema, dos raios de sol. Uma luz que desenha, cria arquiteturas e nos permite ver o que os olhos de Mauro um dia viram.

Completa a sala uma fotografia dos pais do artista, em um momento de descanso e intimidade. A imagem volta a falar de um tempo suspenso, da circularidade da vida e da capacidade da fotografia de documentar algo ou alguém que não está mais lá.

E assim segue. Em cada sala os diferentes aspectos introduzidos anteriormente — o rebatimento de olhares, a vida comum, o fotógrafo no mundo, a representação e a realidade... — vão aos poucos sendo desdobrados e ampliados. Não existe na exposição um desejo retrospectivo, de apresentar de maneira cronológica ou por temas a obra de Mauro. As imagens são de diferentes momentos, captadas em situações e espaços distintos. Sua seleção e aproximação são o resultado de um mergulho profundo e sensível no arquivo, no modo de olhar e de estar no mundo do fotógrafo. 

Podia seguir descrevendo cada uma das imagens expostas, cada uma delas única ao mesmo tempo que conectada a outras — e a muitas outras não presentes na mostra e ainda guardadas nos arquivos do artista. Percorrer a exposição é como vivenciar a vida de uma pessoa ou a nossa própria vida, com seus momentos domésticos e cotidianos e também suas situações extraordinárias, como o dia do enterro de um importante arquiteto ou da eleição do próximo presidente do Brasil. 

 

 

 

Mauro Restiffe

 

Galeria Zé dos Bois

 

 

Este texto foi escrito em português do Brasil.

 

 

Mauro Restiffe, Amanhã de Manhã. Galeria Zé dos Bois, Lisboa. Fotografias: Bruno Lopes. Cortesia do artista e ZDB.

 


 

Isabella Lenzi. Pesquisadora e curadora de arte latino-americana no departamento de coleções do Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía,  MNCARS, Madrid. Dirigiu por sete anos [2013-2019] o espaço cultural do Consulado Geral de Portugal em São Paulo / Camões I.P., no qual consolidou um local de debate e experimentação para artistas emergentes e históricos portugueses e brasileiros. Também integrou o núcleo de programação da Associação Cultural Videobrasil [2013-2015], trabalhou com exposições na Galeria Vermelho, em São Paulo [2012-2013], e foi assistente de curadoria de Agnaldo Farias na XI Bienal de Cuenca, no Equador [2011-2012]. Desde 2016 vive entre o Brasil e a Europa. Entre outros projetos, atuou como pesquisadora e assistente de curadoria na Whitechapel Gallery, em Londres [2017], colaborou em exposições realizadas no Nouveau Musée National de Monaco [2018] e no PAC - Padiglione d’Arte Contemporanea de Milão [2018] e foi coordenadora de exposições na Fundación MAPFRE de Madrid [2020].

 

 

 

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