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Jorge Queiroz, Arshile Gorky: to go to.

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Sérgio Fazenda Rodrigues

 

O Sr. Gorky vem jantar.

 

A exposição to go to. — Jorge Queiroz, Arshile Gorky, em exibição na Fundação Calouste de Gulbenkian, reúne trabalhos dos artistas Arshile Gorky [Khorkom, Arménia, c. 1904 — Sherman, Connecticut, 1948] e Jorge Queiroz [Lisboa, 1966], e adopta como título uma capicua que invoca a ideia de deslocação. A deslocação, ou a fuga, é algo que caracteriza a natureza das obras apresentadas e que enquadra um conjunto de singularidades estabelecidas entre os dois artistas, servindo de mote à exposição.

Partindo de um convite lançado em 2019, com o apoio da curadora Ana Vasconcelos, Queiroz concebeu um diálogo entre uma selecção de obras suas, algumas especificamente desenvolvidas para esta exposição, e um conjunto de obras de Gorky, provenientes do acervo da Fundação. Os adiamentos sofridos permitiram que a exposição integrasse obras da colecção Gulbenkian, obras da coleção da Diocese da Igreja Arménia de Nova Iorque [Oriental], em depósito na Fundação, e ainda uma obra cedida pelo Museu Thyssen-Bornemisza [Madrid], conhecida como a última pintura do artista arménio.

 

Arshile Gorky, Last Painting [The Black Monk], 1948. Vista de Exposição, to go to. — Jorge Queiroz, Arshile Gorky. Fundação Calouste Gulbenkian — Centro de Arte Moderna. Cortesia do Artista e do CAM.

 

O que vemos parte de uma premissa previamente estabelecida, que dita que as obras de Gorky são acolhidas na exposição de Jorge Queiroz, integrando-se em função do seu projecto autoral. Assim, não se trata de uma visão isenta, equitativa, comparativa, ou documental, tratando-se antes de uma exposição que, à semelhança de casos anteriores, é pensada como uma instalação. Uma outra obra, onde os trabalhos e os espectadores se tornam figurantes do mundo que Queiroz nos apresenta. Deste modo, o desenho anguloso das paredes, o macio pavimento amarelo, a inclusão de um busto na entrada [O senhor que gostaríamos de saber quem era — proveniente do Museu Nacional de Etnologia], ou a baixa altura e o imprevisível encadeamento das peças apresentadas, são opções expositivas que promovem a participação do visitante, mas também opções compositivas que respondem à lógica de uma obra global.

As esquinas evitam a existência de um olhar genérico, panorâmico e homogéneo, que poderia revelar o todo da exposição, levando antes à descoberta gradual de cada trabalho. Consequentemente, as diferentes espessuras e inclinações que apresentam delineiam cantos e pequenos núcleos que potenciam o surgimento de novos acontecimentos. Estas opções fomentam um sentido de curiosidade e descoberta, e enfatizam uma ambiência peculiar que é reforçada pela presença do pavimento colorido, onde se destabiliza o passo e o olhar. Remetendo a visão para baixo, as obras posicionam-se fora da altura convencional, levando à deslocação e à demora de quem as vê. A articulação do conjunto afasta a presença do tecto baixo e estabelece uma dinâmica que nos convida a percorrer a exposição por impulsos. Sucintamente, dir-se-ia que a esquivez que o ambiente instiga ecoa a estranheza que as pinturas e os desenhos promovem.

A exposição abarca um vídeo de Jorge Queiroz, um busto sem autor conhecido, e trinta e nove desenhos e pinturas dos dois artistas. As obras apresentadas mostram, em ambos os casos, uma propositada hibridez entre o desenho e a pintura, permitindo, também, perceber as diferentes abordagens adoptadas. Assim, se Gorky parte de uma raiz figurativa para se mover em direcção a uma síntese abstracta, Queiroz percorre o trajecto inverso. No caso deste último, o trabalho apoia-se numa realidade composta por várias camadas, abarcando, entre outras, a possibilidade da figuração. Na sua perspectiva, tal como no cinema de Jean-Luc Godard, como o próprio artista refere, a problematização do olhar surge pela aceitação de múltiplos estratos, opondo-se à redução que um exercício de síntese opera. Dir-se-ia então que, nas suas obras, a ideia de abstracção surge com a densidade da adição e com a consequente diluição de fronteiras entre práticas, imagens, narrativas e apreensões.

Gorky viu a sua vida ficar marcada por sucessivos e traumáticos períodos de mudança. Após testemunhar o genocídio do seu povo e a consequente morte da sua mãe que, em 1919, pereceu nos seus braços, o artista emigrou para Nova Iorque, com a sua irmã Vartoosh, onde urdiu uma nova identidade. Efabulando uma nova persona, Gorky tornou-se próximo do círculo surrealista e reinventou o seu trabalho por via do automatismo do desenho.

As dezasseis obras que Queiroz seleciona datam da década de 40 do Século XX e testemunham uma época de fulgor e transformação, onde as referências pontuais à cultura arménia e a vontade de uma gradual e progressiva abstracção caracterizam a produção deste artista. Consciente de algumas particularidades comuns, da emigração para Nova Iorque, à pesquisa do desenho e da pintura, Queiroz abeira-se de um conjunto de situações que motivam o surgimento de novas obras, mas também o diálogo com trabalhos mais antigos. Atente-se, por exemplo, no modo sagaz como se ecoa a relação particular de Gorky com a sua família, ou a inquietude da sua vida incerta, entre a ficção e o real.

 

Jorge Queiroz, A Day Later, 1-5, 2020. Vista de Exposição, to go to. — Jorge Queiroz, Arshile Gorky. Fundação Calouste Gulbenkian — Centro de Arte Moderna. Cortesia do Artista e do CAM.

 

A atenção prestada à correspondência que Gorky trocava, especialmente com a sua irmã, levaram à produção de cinco novas pinturas [A Day Later 1-5, 2020]. Estas cinco obras repetem as linhas horizontais do papel de carta e, sobre elas, efabulam um imaginário visual. Dir-se-ia que o gesto caligráfico é substituído pelo gesto da pintura, administrando a descoberta e a curiosidade que surge pelo emprego de diferentes materiais, reacções, origens e modos de fazer. Neste caso, recorrendo à impressão serigráfica, ao acrílico e ao óleo, entre a camada da pintura e o traçar do desenho, a imagem migra entre a figura e o fundo, entre um pormenor, um objecto e uma potencial paisagem, ou responde apenas à composição pictórica, mantendo um olhar inquieto que perscruta e se encanta. Estas obras destacam-se ainda pelo formato e pelo alinhamento que estabelecem, bem como pela sequência linear com que são apresentadas, reforçando a sugestão de correspondência, ou troca, que agora surge entre os dois artistas.

Com duas conhecidas pinturas em mente, em que Gorky hesita ao captar as mãos da sua mãe, Queiroz produz um vídeo [56 Seconds, 56’’, 2020] que simula a figura de um cão. Num jogo de dedos que a sua mãe lhe ensinou, o artista utiliza as mãos para sugerir o contorno do animal, captando a fugacidade de algo que é pontualmente reconhecido; remetendo-nos para uma brincadeira de infância e para a invocação de uma memória familiar.

Das vinte e três obras que Queiroz apresenta, importa ainda salientar uma outra, em que uma presença feminina sobressai na composição [Now I’ve got a Witness, 2021]. Nela, uma figura reclinada no bordo da pintura aparenta fitar uma sucessão de imagens dentro de imagens, que se deixam romper por uma mancha escura. A ausência que essa mancha instala sugere um campo de acontecimentos que existe para lá da superfície, multiplicando a profundidade do olhar. Curiosamente, entre o olhar que mergulha para lá da imagem, e a visão do que se apõe sobre a simulação de um papel de carta, esta obra e a sequência das cinco pinturas já mencionadas, são aquelas que em conjunto com o busto, que adquire notórias parecenças com a figura de Gorky, surgem proeminentemente frontais. Assim, quando se entra na sala de exposições, estes são os elementos que se afirmam de face para o observador, interpelando-o perante um todo que apenas se revela, passo a passo, numa visão obliqua.

Importa ainda referir uma última obra, de Gorky, na vizinhança do busto que ecoa a sua figura. A pintura Last Painting [The Black Monk], 1948, que topeja o final da exposição, surge identificada como a última que o artista produziu. Nela, a densidade do fundo marca-se a negro e o traço torna-se mais espesso. Contrariamente a outras que pontuam a exposição e que ensaiam a sobreposição do desenho a uma base clara, [também elas constituídas por uma estratificação de camadas], o acto de riscar perde aqui acutilância, repensando a relação entre os níveis da pintura.

O busto que nos recebe e a última pintura que lhe está contraposta, marcam uma ligação que enfatiza a presença de Gorky. Não sendo esta uma exposição sobre o seu trabalho, a sua existência é tida como um eco que alimenta o imaginário de Jorge Queiroz. Como um convidado cerimonioso de uma soirée, ou talvez de uma séance, que comparece, mas não se demora.

 

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to go to. — Jorge Queiroz, Arshile Gorky. Vistas de Exposição. Fundação Calouste Gulbenkian — Centro de Arte Moderna. Cortesia do Artista e do CAM.

 

 

 

 

Jorge Queiroz

 

 

Arshile Gorky

 

 

Fundação Calouste Gulbenkian — Centro de Arte Moderna

 


 

 

Sérgio Fazenda Rodrigues é Arquitecto e Mestre em Arquitectura [Construção], foi doutorando em Belas Artes e é doutorando em Arquitectura, onde investiga as relações espaciais entre Arquitectura e Museologia. Faz curadoria de arquitectura e artes visuais e integrou a direcção da secção portuguesa A.I.C.A. Desenvolveu, com João Silvério e Nuno Sousa Vieira, o projecto editorial Palenque. Foi consultor cultural do Governo Regional dos Açores, tendo a seu cargo, nesse período, a construção da colecção de arte contemporânea do Arquipélago: C.A.C.

 

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

 

 

 

Arshile Gorky, Sem Título [1943]. Cortesia Fundação Calouste Gulbekian — Centro de Arte Moderna.

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