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Entrevista a Diogo Pinto

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David Silva Revés

A Contemporânea conversou com Diogo Pinto a propósito da exposição This is a Bar… ou Praia de Banhos — Joaquim Bravo, Turismo e o Algarve patente no Pavilhão Branco, em Lisboa, até ao próximo dia 21 de Agosto.

 

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David Silva Revés (DSR): Antes de nos determos na exposição que dá o mote a esta entrevista, fala-nos um pouco sobre a tua prática. Navegas entre uma produção quase exclusivamente pictórica e a curadoria, maioritariamente votada a autores históricos portugueses e que se encontram ainda num certo estado de lateralidade ou invisibilidade no panorama artístico e historiográfico nacional. No entanto, este curso não raras vezes hibridiza-se no mesmo objecto e momento expositivo, numa espécie de curadoria de afectividades que levas para dentro das tuas pinturas onde fazes por convocar símbolos, referências biográficas, lugares e visualidades intrinsecamente ligadas a esses autores. Gostaria que me falasses um pouco sobre todas essas relações.

 

 

Diogo Pinto (DP): Às vezes gosto de pensar a minha prática como um edifício de escritórios. Imagino quais seriam os vários slogans em cada receção, a arte que decora as paredes de pladur texturado e quais as intrigas interdepartamentais que assombram a copa à hora de almoço. De volta do bebedouro rodeiam-se os assuntos da ordem do dia, os diversos processos em curso e as novas metas a cumprir. O empreendimento seria de tal modo vasto que, entre cubículos, não se encontraria consenso sobre o propósito que a empresa serve; não por desnorte, mas por tamanha escala. Apesar de cada andar ter a sua função, seguem dentro das paredes parelhas organizadas de condutas de ventilação, cabos de eletricidade, redes de fibra-ótica e toda uma panóplia de ligações comuns que estruturam e unificam o dia-a-dia da máquina corporativa. Algures na fundação deste edifício, encontrar-se-iam carreiras de grandes arquivadores onde dentro de cada gaveta se catalogam rumores, histórias, conversas, fotos, desenhos e pinturas — de amigos, artistas, conhecidos e desconhecidos. Estes recursos seriam de livre acesso para todas as repartições que, em alturas diferentes para situações diversas, partilham a dedicação e o atento por aquilo que se encontra nestes gavetões e que, na verdade, alimenta toda a operação. Assim, os vários departamentos relacionar-se-iam na partilha da mesma curiosidade, vontade e ânsia pelo potencial desconhecido contido nestes arquivos. Pintura, curadoria, escrita e por aí fora seriam meios para um fim, balcões de sua volição, etapas de quotas e colunas da mesma grelha emotiva de excel.

 

 

DSR: Pergunto se sentes sequer a necessidade de separar entre curadoria e prática artística. Não só porque é o teu caso específico, mas de forma mais alargada — serão dois campos assim tão distintos ou as fronteiras deveriam ser mais vincadas?

 

 

DP: A única altura em que sinto essa divisão é na vivência burocrática quando, em prol de me encaixar ou de me candidatar a um qualquer fim, sou obrigado a pôr pontos em certos ii que às vezes não estão forçosamente lá; mas por mim tudo bem, há diferentes carapuças para diferentes alturas e quando servem, servem.
Os estudos que fiz foram em Belas-Artes e não especificamente em Curadoria, por isso a minha postura enquanto curador surge sempre contaminada pela minha prática artística e, à medida que a lista de projetos cresce, vice-versa. Para mim, as duas disciplinas operam de maneira corrente, em constante influência e diálogo, de tal maneira que, na grande maioria, só penso no rótulo de «curador» ou «artista» já em etapas finais de projetos; altura em que, lá está, há exigências burocráticas a obedecer.
Em geral, não tenho grande opinião sobre estas fronteiras. Há certos tipos de trabalho que escapam a tudo isso e são esses que me interessam. Seja em projetos realizados por curadores, artistas ou curadores/artistas, há qualidades muito mais relevantes: compromisso, sentido de propósito e várias outras sensibilidades imprevisíveis. Talvez por isso admire tanto práticas que implicam muitas «barras»: artista/curador, pintor/diplomata, escultor/poeta, etc. Parece-me surreal fazer-se uma única coisa.

 

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Imagens cortesia de Diogo Pinto. Trabalho do artista.

 

 

DSR: O que te interessa nos autores que tens investigado, de que formas te relacionas com eles e o que te faz convocá-los como horizonte do teu trabalho? Mais do que um lastro de afinidades ou contaminações estéticas, há também uma postura focada numa certa remediação histórica, ou tentativa de reconciliação das atenções.

 

 

DP: É caso a caso. Mas, recorrentemente, há especial eleição pelo contexto em que obras de arte são criadas — por vezes, até mais do que as obras de arte em si. Nesse sentido, a investigação que faço e o que me leva a escolher certos autores têm que ver com um reconhecimento de potencial, dito: poético, plástico e narrativo. Os critérios acabam por ser utilitários porque apesar de a pesquisa partir assiduamente de detalhes — por vezes ínfimos — da vida e carreira desses autores, o resultado final procura ser um contributo, não só na divulgação de trabalhos e artistas «pouco vistos» mas também, e principalmente, num repensar coletivo de certas narrativas «Históricas».
Por exemplo, a exposição Joie de Vivre, que apresentei na Spirit Shop em 2021, centrou-se numa pintura homónima que José Escada criou para a coleção Peter Stuyvesant [a primeira coleção de arte corporativa na Europa] em 1960. Na altura, a encomenda fez parte de um projeto inovador que trouxe pinturas para dentro dos salões de produção industrial de uma fábrica de cigarros nos Países Baixos. As pinturas, criadas sob o tema «a alegria de viver», deveriam ser grandes e coloridas a fim de serem penduradas do teto da fábrica para assim «animarem» as condições do trabalho repetitivo e fabril dos funcionários. Escada, então com 26 anos e a viver em Paris com um historial político atribulado em Portugal, pintou uma deslumbrante composição floral. Com o passar dos anos, a coleção Peter Stuyvesant foi crescendo paralelamente à marca de cigarros [também de mesmo nome], que desenvolveu uma imagem de marca ligada a um certo lifestyle viajante [ou «conquistador»] característica das classes capitalistas dos finais do século XX; Escada voltou para Lisboa no início dos anos 70, com a saúde debilitada, e passou os seus últimos anos a pintar os seus dois cães e as vistas da casa que partilhava com a mãe no Alto de Santo Amaro.
As pinturas apresentadas na Spirit Shop — nas quais recriei pinturas e desenhos de Escada, anúncios da Peter Stuyvesant, fotos e até relatórios — retratam atenciosamente estas convivências e tensões entre um caso de estudo de abstracionismo corporativo versus realismo artístico. 

 

 

DSR: Conhecemo-nos na Associação Goela, da qual fazias parte e onde, além da rotina de atelier que também ali acontecia, começaste a desenvolver o projecto de programação expositiva “Ascensor”. Foi justamente dentro dessa programação que realizaste a primeira exposição de Joaquim Bravo, onde mostraste as Marinas assinadas pelo seu pseudónimo Brana, trabalhos que voltam agora a aparecer nesta exposição no Pavilhão Branco. Em primeiro lugar, gostava que me pudesses falar um pouco sobre o projecto “Ascensor” que desenvolveste na Goela.

 

 

DP: Foi na Associação Goela que a minha prática de ateliê se expandiu para organizar exposições — metafórica e literalmente [o meu atelier era no rés-do-chão e o Ascensor na cave]. Na Goela há uma sala, quase perfeitamente cúbica, que já no início da nossa ocupação do espaço da Rua dos Baldaques em 2017 foi reservada à mostra de exposições. Em 2018, em colaboração com Daniel Antunes Pinheiro [também membro da associação], pensou-se um programa que procurou cruzar exposições [maioritariamente individuais] de membros da associação com outros artistas e autores externos. A Marta Gaspar desenhou inicialmente uma identidade visual, houve sempre alguém convidado a escrever o texto da folha de sala e quando havia algum dinheiro fazíamos uma publicação. Tornou-se um espaço de colaboração, regular e público que procurou preencher alguns vazios culturais da paisagem institucional Lisboeta.
Em 2020, já sediado em Basel, candidatei-me com a ajuda da Mariana Tilly [que mais tarde viria a co-escrever o texto da folha de sala comigo] a um apoio da Gulbenkian para fazer uma exposição de Joaquim Bravo no Ascensor. Fazia um ano desde o último projeto que lá tinha organizado [a exposição Roda Rusga de Z. L. Darocha] e na altura tinha preso na memória um rumor sobre uns desenhos que Bravo fez, alegadamente para vender a turistas nas praias de Lagos. O apoio foi conseguido e descemos até Lagos; não só se encontraram os desenhos, como afinal descobriu-se que foram assinados com um pseudónimo — «BRANA» — e assim também foi assinada a exposição MARINAS no Ascensor, onde mostrámos estes seis desenhos como pretexto para reflexão sobre Arte e Turismo em Portugal.

 

 

Brana, no Ascensor, Associação Goela. Imagens cortesia Diogo Pinto.

 

 

DSR:  Em segundo lugar, gostava que elaborasses um pouco sobre o retorno ao trabalho de Joaquim Bravo, que exploras ainda como centro rizomático da exposição do Pavilhão Branco e expandes por outras afinidades artísticas e imagens. Como foi trabalhar com o arquivo deste artista e quais as razões do seu trabalho existir como raiz de toda a exposição?

 

 

DP: Tudo começou por meio de amizades. Inicialmente o projeto das MARINAS só foi uma possibilidade graças a José Miranda Justo [também presente em This is a Bar…] que já em 2019 tinha escrito um ensaio para a exposição de António Ramos Rosa no Ascensor. José, amigo de longa data de Bravo, estabeleceu a ponte entre mim e Milu Cunha [esposa de Bravo] que logo recebeu com grande entusiasmo as nossas ideias e devaneios. Esse entusiasmo de Milu, cheio de hospitalidade e confiança, foi o que permitiu a exposição desenvolver-se da maneira que hoje podemos ver no Pavilhão Branco. O arquivo, feito de maneira informal pela própria, foi-nos deixado aberto e assim abriu-se cada pasta, puxaram-se as gavetas e retiraram-se quase todas as micas. Os longos dias em conversa, recolha e descoberta de fotografias, esboços e todo o tipo de papelada, foram o ponto de partida para as narrativas, ambientes e escolhas que formam This is a Bar… No entanto, originalmente a nossa visita cingia-se à procura dos desenhos de BRANA, mas a oportunidade era demasiado grande para ser desperdiçada e, de maneira natural, a «vistoria» foi feita e as ideias começaram a fluir e a crescer na direção de um potencial segundo momento, maior e mais abrangente a outras realidades que começámos a comprovar. 

 

 

DSR: Tomando o Algarve como lugar estético e político, e como ponto de partida das relações entre a produção artística e o turismo que procuras estabelecer nesta exposição, para além dos trabalhos de Joaquim Bravo e do seu pseudónimo Brana, assim como de um grande núcleo do seu espólio documental, fizeste por convocar outros artistas e agentes. No entanto, não só com artistas algarvios, ou que nessa região se foram fixando, nos deparamos no Pavilhão Branco. Convocas igualmente figuras que foram visitas regulares do Algarve ou que tomaram a região e as suas vivências [sociais, turísticas, etc.], como pontos de partida para trabalhos específicos. Como foste constituindo o restante grupo de presenças que fazem parte desta exposição?

 

 

DP: Já seguia o trabalho de muitos destes artistas antes da minha primeira visita a Lagos, através de pesquisa individual ou de conversas com algumas pessoas que já conhecia pessoalmente e que foram guias importantes: tanto o Miranda Justo, a Cristina Motta como também o Ricardo Valentim [originalmente de Lagos]. Mas foi especialmente no traçar do arquivo de Bravo e nas conversas paralelas com Milu, que surgiram menções de outros artistas que despertaram o meu interesse — o caso da Vera Gonçalves, Jorge Mealha, Peter e Rosa Jones, por exemplo. Passaram-se dias em viagem e visitas a ateliês, a encontrar monumentos e a construir conceitos que cada vez mais se pareciam traduzir numa possível exposição coletiva. A escolha foi muito mais orientada pelas narrativas que comecei a adaptar para um momento expositivo e, em conjunto com a Mariana Tilly, para o ensaio que co-escrevemos para a publicação, do que de uma tentativa histórica de organizar algo fidedigno às expetativas que teimam em rodear a prática de Bravo.
Tentou-se usar a oportunidade para contribuir com algo ainda não visto e uma perspetiva sobre estes artistas e trabalhos que procura preservar qualidades regeneradoras e não cristalizantes, em detrimento de propagar as lengalengas, os conhecidos e os supostos «best of’s» dos artistas e amigos.
Por exemplo, as presenças em This is a Bar… de Patrícia Almeida ou de Maria Altina Martins, não estando de qualquer maneira ligadas diretamente a Joaquim Bravo, revelam cruzamentos distintos das narrativas mitológicas que rodeiam o Algarve. No caso de Almeida, um olhar de alta precisão sobre a ocupação turística e todo o absurdo envolvido nesse processo. No caso de Altina, uma delicada e laboriosa tecelagem dos épicos nacionais que tanto alimentam mecanismos turísticos.

 

 

DSR: Se, por um lado, de forma a “enredar as relações subtis entre arte e turismo em Portugal, realçando várias estratégias e reacções artísticas às mudanças provocadas pelos mecanismos turísticos no Algarve desde os anos 60” [citando a folha de sala da exposição], reúnes bastantes obras que evidenciam um certo lado precário ou menos solene, na execução e recursos materiais, por outro, convocas trabalhos que desenvolvem relações mais ilustrativas com o contexto referenciado e onde a “qualidade artística” [queira isso dizer seja o que for] não é tão importante. Como foi sendo feita essa escolha e gestão das presenças/visualidades.

 

 

DP: Gostava de explicitar que não concordo com o uso dos termos «precário» e «menos solene» na tua questão; por vezes, são precisamente os «descuidos» ou os gestos efémeros, feitos sem pensar duas vezes, ou por «tabela» das suas ocupações de subsistência, que acabam por refletir, neste caso, o impacto direto do turismo e da região na obra destes artistas — nesse sentido sim, devemos falar de impactos e situações profissionais precárias.
Rabiscos feitos no verso das grelhas de clientes de uma agência de viagens inglesa, ou canecas toscas e t-shirt’s souvenirs não são coisas a desprezar; são monumentos de uma certa atitude independente [DIY] que, de maneiras diferentes, foi partilhada por artistas que viveram e trabalharam sem grandes apoios e reconhecimentos num espaço de turismo massificado. Muitos dos artistas representados em This is a Bar… se emanciparam da precariedade geral que sustenta a cena artística portuguesa ao adaptarem-se às economias turísticas do Algarve — e isso é exemplar.
Este tipo de julgamentos sobre «qualidade artística» não existe quando estou a organizar exposições; pelo contrário, acho que instintivamente há um olhar horizontal e reivindicativo que encontra potencial artístico independente de hierarquias que possam ser criadas acerca de «qualidades» materiais. Acho que muitas vezes, especialmente em Portugal, esses julgamentos vêm pré-feitos e acabam por fechar muitos artistas em «caixinhas» que não merecem.

 

 

DSR: O dispositivo cenográfico de toda a exposição é muito forte. E há gestos que me parecem muito consequentes e inteligentes, tais como a possibilidade de assistirmos ao documentário Continuar a Viver ou Os índios da Meia-Praia, de António da Cunha Telles, deitados numa espreguiçadeira, ou a projecção de slides da série Portobello, de Patrícia Almeida, assentar sobre um plinto de tijolos, o que realça os efeitos contraditórios e perversos da exploração turística em locais já de si bastante debilitados. No entanto, há também uma certa “coolness” que trespassa toda a exposição, dividenda do aparato estético. Se isso pode ser, em alguns momentos, conflituante com os trabalhos expostos, pergunto se essa tensão não poderá igualmente um sintoma das realidades artísticas e sociais algarvias que são exploradas na exposição.

 

 

DP: Bom, é assim mesmo o Algarve, cheio de contradições. It’s so cool e problemático. Mas quero dizer: nem no ensaio que vamos publicar, nem na exposição, foi tomada uma atitude unicamente crítica, negativa ou fatalista das condições atuais do Algarve.
O Algarve turístico é um sítio dramático, de excessos e extremos entre rambóia e descanso, marcado pela especulação imobiliária e legados históricos mal resolvidos, onde relva verdadeira e relva sintética crescem lado-a-lado na base de monumentos aos «Descobrimentos Portugueses». É simultaneamente lindo e feio.

 

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DSR: Apesar de ser referido na folha de sala que esta exposição não visa uma perspectiva histórica, há, no entanto, uma relação com a História [conjuntural e nacional] que não é posta de lado, antes, até, evidenciada. Não falo só da mostra de arquivo e documentação visual/informativa de vários momentos e eventos específicos, mas, sobretudo, de uma relação com realidades mitográficas [neste caso, com o mito sebastianista] bastante específicas, como mostram as obras de João Cutileiro e Cristina Motta. Gostava que me falasses um pouco sobre estas relações tendo em conta o contexto algarvio. No teu entendimento, esta região encontra-se ainda num estado de inquietante espera — social, económica, cultural, artística?

 

 

DP: Quando, na folha de sala, escrevi sobre não visar uma perspetiva histórica, quis dizer que a exposição não tentou catalogar uma cronologia das «obras-primas» feitas nesta específica época e sítio [o tal «DO QUE DE MELHOR SE FEZ NA REGIÃO»] ou criar um momento de retrospetiva institucional. Sobre a tal história conjuntural e nacional, não sei se a relação é evidenciada, penso antes em como seria possível ignorá-la tendo em conta o papel de Lagos nas rotas marítimas e nos planos do Infante D. Henrique, bem como a relevância do Algarve nos «Descobrimentos» e o modo como ainda hoje as autarquias lidam com esta violenta história e a usam como moeda de troca turística, muitas vezes sem qualquer contexto crítico e sério sobre o passado colonial portugues, conservando clichês. Os modos como o turismo foi institucionalizado no Algarve espelhou muito bem o que foram os medos, desejos e emoções nacionais da segunda metade do século XX. A transformação do espaço em turístico é um processo político, económico e social que é transversalmente visual. O Algarve, claro, não foi exceção; ergueram-se mitos como se ergueram hotéis e, hoje, a ruína de ambos perdura.
É curioso olhar para trás e pensar como a primeira visita de investigação a Lagos foi feita no verão de 2020, em plena pandemia. A A2 sem trânsito, o centro histórico de Lagos quase às moscas e as praias doseadas de banhistas. Eu, um turista audaz, no meio de outros turistas audazes que escolheram viajar durante a pandemia global; o mood não era a típica silly season de 3 meses. Foi um período revelador das violentas consequências de uma economia totalmente dependente do turismo e também de um silêncio expectante. O turista tornou-se uma figura mítica, uma espécie de D. Sebastião, e todos os monumentos e narrativas nacionais, as heranças do Estado Novo que tanto informam ainda as estratégias de marketing municipal, ganharam notável destaque. Se essa primeira visita tivesse sido feita um ano antes, o projeto teria sido totalmente diferente.

 

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Faltpavillon. Imagens cortesia Diogo Pinto.

 

 

DSR: Para terminar, gostaria que me falasses um pouco mais sobre o projecto que desenvolveste em conjunto, o Faltpavillon, no contexto desta exposição. 

 

 

DP: Faltpavillon [pavilhão dobrável] é um projeto itinerante criado por Michael Ray-Von e Finn Curry. Invés de um espaço de galeria convencional com uma localização fixa, o seu formato consiste num pavilhão pop-up de 3 x 3 metros, normalmente encontrado em festas de casamento, mercados de rua e escavações arqueológicas, entre outros. Para cada edição do Faltpavillon, um artista é convidado a selecionar um novo local onde montar o pavilhão e apresentar obras dentro e à volta do mesmo.
Há cerca de um ano, Michael e Finn convidaram-me a participar no projeto e eu logo vi o convite como uma oportunidade excecional para estabelecer uma ponte, não só entre os meus «meios» artísticos e curatoriais mas também entre o ambiente e geografia que construíram This is a Bar…
O resultado foi a exposição Verão — Été — Verão — Sommer, onde apresentei duas pinturas: uma dentro da tenda em frente ao Pavilhão Branco e outra na Praia da Salema, no Algarve. Mais do que uma exposição, tornou-se um happening celebratório dos 2 anos de investigação para This is a Bar… e claro uma t-shirt souvenir para marcar o evento era indispensável. A pintura que mostrei no jardim do Pavilhão Branco retrata um mosaico que existiu na fachada do «Godot’s Bar», um bar da Praia da Luz, hoje um condomínio descaraterizado, que foi fundado por uns americanos nos anos 60. Vários dos artistas em This is a Bar… por lá passaram e, supostamente, Bravo esteve quase para redecorar o bar. Gosto da sugestão de como, afinal, Godot esteve este tempo todo num bar na Praia da Luz, à espera que o pico do sol algarvio passasse encostado num balcão, para se juntar aos outros turistas na praia numa concessão de pára-sóis. Em plena Praia da Salema, mostrei uma pintura de um girassol. A imagem pintada foi apropriada de um poster turístico português dos anos 70, especificamente uma série que explorou as várias estações do ano em Portugal: um para o inverno, outono, primavera e verão [o girassol]. Foi uma experiência surreal ver uma pintura exposta precisamente no sítio e ambiente que a «fez», com a maré a subir, os curiosos nudistas e a nortada arrasadora. Foi uma câmara de eco estranha, tal como se estivéssemos a bordo de um mini barco de pesca presos dentro de uma garrafa — naquela tarde nós todos éramos um souvenir. Arte, representação e turismo em choque a tempo real. 

 

 

 

 

Diogo Pinto

 

Folha de Sala

 

Pavilhão Branco

 

 

 

 

 

 

This is a Bar…ou Praia de Banhos – Joaquim Bravo, Turismo e o Algarve. Vistas gerais da exposição no Pavilhão Branco, Lisboa. Fotografia: João Neves. Cortesia dos artistas, curador e Galerias Municipais de Lisboa.

 


 

 

David Revés [Lisboa, 1992], curador, escritor e investigador. Frequenta actualmente o Mestrado em Ciências da Comunicação — Culturas Contemporâneas e Novas Tecnologias [FCSH — UNL]. Mestre em Estudos Artísticos [FBAUP]. Enquanto curador desenvolveu vários projectos expositivos, tais como: "gravitas", colectiva na Fundação Leal Rios, Lisboa; Isabel Cordovil x GAS, "The Sunlight Will Break The Party", Rua das Gaivotas 6; Carlos Nogueira, “sobras de vento. entre águas”, Fundação Arpad Szenes – Vieira da Silva, Lisboa; “um corpo, um rio”, colectiva na Galeria Liminare, Lisboa; Rodrigo Gomes, “Whispering Mirrors”, Carpintarias de São Lázaro, Lisboa; “A Hunted Time”, colectiva na Casa do Capitão, Lisboa [co-curadoria com Nicolai Sarbib]; entre outras. Foi o curador e programador da Galeria Painel, Porto, PT [2016-2018], curador residente na Fundação DIDAC, Santiago de Compostela, ES [2019] e integrou a equipa curatorial
do CINENOVA – Festival Interuniversitário de Cinema [2020-2021]. Desenvolve regularmente uma actividade crítica e ensaística com a qual colabora para revistas especializadas, livros de artista, edições académicas, seminários, etc.

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