Biennale Gherdëina ∞
Partilhar o Umwelt e experimentar com o descentramento na Biennale Gherdëina ∞
Uma peregrina com uma indumentária tie-dye e, na mão, um bastão de caminhada talhado a partir de um ramo de árvore leva-me para as florestas de San Cristina, no vale montanhoso de Val Gardena, temperando a viagem com uma vertiginosa mistura de anedotas, observações poéticas sobre a natureza, de uma sensibilidade ecológica e diversas fábulas sobre a fauna e a flora locais. De quando em vez, interrompemos a marcha para nos sentarmos à sombra de carvalhos possantes e beber uma sopa de flores. Mais tarde, ela propõe que me deite sobre o feno de uma iurta de tecido tingido à mão e trabalhado segundo variadas técnicas de eco-estampagem. O rumor meditativo de um regato e as energias naturais circundantes precipitam então um fever dream semântico e sensorial que abre caminho à transformação interior dos participantes. Não foi uma caminhada como tantas outras, não; pelo contrário, tratou-se de uma viagem alucinogénica multissensorial tornada espetáculo imersivo que se coreografou ao longo dos carreiros montanhosos da região — reconhecida desde tempos pré-históricos como um hotspot etnofarmacologicamente relevante —, onde há séculos que a conjunção de uma fauna única e uma exígua intromissão humana faz prosperar uma robusta economia de conhecimento local. A experiência partilhada e a consciência comunitária de se viver num mundo de muitos mundos que alberga um largo espetro de intersecções e enovelamentos inextricáveis com todas as espécies vivas: são estas as coisas que os visitantes sussurram entre si nesta edição da Biennale Gherdëina ∞.
Barbara Gamper, Somatic encounters - earthly matter(s).
You Mountain, You River, You Tree, 2022. Fotografia: Tiberio Sorvillo
O impressionante biótopo florestal do Tirol do Sul, com a sua biodiversidade singular, é o panorama que nos envolve. Surpreendente, tendo em consideração o espantoso efeito que uma observação minimamente mediada das tendências e dos ritmos da vida natural consegue ter sobre nós, este cenário revela-se abundantemente demonstrativo de que os animais e as plantas também possuem um mundo próprio. É inequívoco que as plantas sentem e respondem a um mundo que experienciam, um mundo construído por elas próprias — e, como tal, aqui encontramos a confirmação da existência de um "eles" que se encarrega deste sentir e deste responder, um sujeito e não tanto um objeto, uma espécie de eu, independentemente de quão abstruso se revele, de quão dissemelhante seja daquele que conhecemos. As plantas encontram, acedem, influenciam e são influenciadas pelo mundo nos seus próprios termos e de uma forma que é só sua. A maior parte destas experiências e respostas são-nos e nunca deixarão de nos ser incognoscíveis; mas a audição — uma capacidade que nos é comum — torna-as pensáveis. De repente, ao invés de comporem o pano de fundo, as plantas saltam para o foco da ação, presentes e atentas.
O guia que, ao longo das duas horas de duração deste projeto caminhado, me acompanhou pela realidade alternativa do reino florestal de Val Gardenna faz parte do grupo de performers que desempenham SENTIERO, assinado pelo artista, poeta, jardineiro e coreógrafo Alex Cecchetti. Referindo-se aos seus projetos como encantações, poesias e colaborações com seres mais do que humanos que funcionam como catalisadores de experiências quase-místicas do dia a dia, Cecchetti concebe experiências sensoriais às quais subjaz uma amálgama de interações com comida, cheiros, sons e cores a partir do seu próprio envolvimento com as comunidades e ecologias locais.
Alex Cecchetti, SENTIERO, 2022. Fotografia: Tiberio Sorvillo
Na Biennale Gherdëina ∞, intitulada Persones Persons, com curadoria de Filipa Ramos e Lucia Pietroiusti, muitos dos trabalhos apresentados partilham esta metodologia e atenção à colaboração entre espécies e entidades, entre todas as criaturas vivas ou não vivas e as variadas assemblagens de seres humanos, animais, vegetais, minerais e micológicos que habitam os vales, as montanhas e os céus alpinos da Ladínia. A poética obra de Barbara Gamper reporta a um destes elementos: somatic encounters/earthly matter[s]. You Mountain, You River, You Tree levou os observadores numa caminhada pela paisagem de Vallunga, convidando-os a descobrir e reconectar-se com a história do território por via de um processo de aprendizagem e consciencialização através do qual se assume o corpo como o ponto de partida para alcançar uma consciência mais alargada do facto de que existir é estar em relação. Não admira, então, que o programa da Biennale seja quase integralmente constituído por diferentes sessões de meditação coletiva. O propósito, porém, não é o de recriar ligações perdidas com o eu, a fisicalidade e o espírito, mas antes construir uma ponte com outras espécies não humanas.
Ao passo que Memory Garden, de Ignota, fundamentado na mnemotécnica e numa associação ao ciclo lunar, que possui a forma de um círculo — e é ativado através da meditação em grupo junto a uma fogueira ao pé da torre de um castelo medieval, — foi concebido como um espaço ritualístico para sarar. A performance de Hylozoic/Desires, para quatro instrumentos de sopro, duas vozes e um regente — intitulada an omniscience: an atmos-etheric, transnational, interplanetary cosmist bird opera spanning seven continents and the many verses —, convidou os visitantes para uma sessão de observação de aves, através dos seus binóculos, salientando assim a noção de coletividade, um conjunto de movimentos sociais e formas não lineares de ser. Tanto a escala galáctica destas energias e substâncias fluidas como a fluidez transcendente do verter dos objetos e sujeitos, uns sobre os outros, constituíram temáticas centrais para Angelo Plessas, que, na abertura da Biennale, apresentou a sua Meditation of All Beings, composta por uma espécie de cerimónia de técnicas de respiração [no fim, bebeu-se, inclusivamente, um elixir] e firmada numa interligação e interdependência gerais para estabelecer relações singulares com a Terra e o Cosmos.
1-2 Ignota, Memory Garden Ritual, 2022. Fotografia: Tiberio Sorvillo
3-4 Hylozoic Desires [Himali Singh Soin and David Soin Tappeser], an omniscience, 2022. Fotografia: Tiberio Sorvillo
Também se integram mecanismos de meditação idênticos em peças de um carácter mais concreto, como é o caso de Spathiphyllum Auris, uma escultura de grandes dimensões de um lírio-da-paz instalada no vale de Vallunga. Eduardo Navarro, o artista, vê esta peça não somente como um lugar onde os visitantes podem descansar e um dispositivo de recolha de água da chuva para os pássaros beberem, mas também como uma ferramenta absurdista de contemplação que incita as pessoas a desfazerem-se de quaisquer ideias preconcebidas que detenham sobre aquilo que observam.
Eduardo Navarro, Spathiphyllum Auris, 2022. Fotografia: Tiberio Sorvillo
Há outros trabalhos na Biennale que, em vez de vociferarem esta ideia de partilha com os outros de um mundo que não é uniforme nem singular, preferem sussurrá-la ternamente — como as aplicações e os bordados da autoria da estrela do projeto principal da Bienal de Veneza, Britta Marakatt-Labba, que retratam as particulares sensibilidades do povo Sami, ou a surpreendente diligência do Karrabing Film Collective no seu mais recente vídeo The Family and the Zombie, perspetivando a luta dos direitos indígenas no Território do Norte australiano como uma sátira trecartinesca centrada num grupo de futuros antepassados que vivem o rescaldo da atual crise ecológica.
Karrabing Film Collective, The Family and the Zombie, 2021. Fotografia: Tiberio Sorvillo
Existem muitos mundos — mundos vivos, ruidosos — e muitos deles não nos incluem de todo. A experimentação em torno da construção de mundos por meio desta polifonia de vozes artísticas inspira novas tentativas de descentramento da cada um de nós e da experiência humana — capacidades que precisamos de aprimorar se quisermos viver melhor e de forma mais responsável num mundo mais do que humano. Este descentramento, que é uma forma de reconhecer que há mais para lá da raça humana, jamais implicará qualquer redução do nosso mundo; pelo contrário, tal como acontece quando alargamos a virtude da inteligência a outros seres, acrescentar ao nosso mundo outros de uma natureza vegetal enriquece cada uma das partes. Até os mundos em que não participamos acrescentam à totalidade de sensações e experiências que enformam a Terra viva e fervilhante em que vivemos e de que dependemos. A própria existência de outros mundos, de múltiplos mundos imbricados onde variadíssimos tipos de coisas e variadíssimas formas de ver e ser são possíveis, deveria ser motivo de entusiasmo.
Estes mundos não são apenas possíveis: na verdade, já existem em presença. Reconhecer a existência de outros mundos múltiplos, os mundos dos outros, é essencial para nos desenredarmos de nós mesmos e ressurgirmos na companhia de uma cosmologia que contenha maior significado e compaixão.
Seis anos passados desde o início do reboot da Biennale protagonizado pelo curador checo Adam Budak, prestando particular atenção às estratégias de construção de mundos, oriundas de algum conhecimento popular e tradicional, a última edição mantém-se centrada na exploração da site-specificity histórica e geográfica da região. Este enfoque é evidente na peça Sister, de Chiara Camoni, uma escultura que se afigura a um ídolo sagrado e que foi construída com materiais recolhidos em Val Gardena, incluindo dolomite branca, minerais de Vallunga e cinzas dos pinheiros que se encontram entre Ortisei e Selva. Porém, a ambição que a fundamenta pretende alcançar fins maiores, transcendendo a localidade por meio de uma transferência para o nível planetário universal e mediante uma abordagem de questões bioéticas, da subjetividade mais do que humana e da existência para lá da inteligência humana.
Chiara Camoni, Sister, 2022. Fotografia: Tiberio Sorvillo
Em última instância, o foco da Biennale coloca-se não na concessão de pessoalidade ao não-humano mas antes no reconhecimento e na valorização da sua animalidade — e da sua vegetalidade, e da sua subjetividade, e da sua condição de ser. Esta abordagem implica que se permita ao não-humano ser ele próprio, ao mesmo tempo que com ele se trabalha para, em conjunto, se estruturar o mundo para proveito de todos nós. Tendo isto em consideração, devemos pensar não na escala do cubo branco, de um laboratório ou de uma cidade mas antes na das florestas, das cordilheiras, da tundra, dos oceanos e dos continentes. E em Paleness, sem deixar de se referir ao passado oceânico e pré-histórico das Dolomitas e de pintar de azul a fonte do castelo de Ortisei, a dupla de artistas Revital Cohen e Tuur Van Balen discute o capitalismo global e apresenta uma crítica da Big Pharma traçando as ironias do destino dos caranguejos-ferradura [Limulus polyphemus]. Esta espécie precede os dinossauros e sobreviveu a várias eras glaciais, quatro extinções em massa e um evento de impacto; ainda assim, foi recentemente incluída na Lista Vermelha da IUCN, tudo por causa da extração em grande escala de espécimenes do seu habitat natural para recolha do seu sangue azul, rico em cobre, que é depois usado biossensor para individuação de bactérias e desenvolvimento de vacinas.
Albergue dos principais espaços da Biennale [Sala Trenkel, Hotel Ladinia e Castel Gardena], Ortisei é uma das mais velhas cidades na província de Val Gardena, dispondo igualmente de um resort de ski — um exemplo maior do ponto de vista turístico, acolhendo mais de um milhão de visitantes nos meses de verão. Levando este cenário em conta, a Biennale Gherdëina ∞ encerra uma nova perspetiva sobre esta região, bem como a oportunidade de propor qualquer coisa nova que divirja da costumeira investigação em torno de uma geografia exótica — que se tem vindo a tornar, por um lado, um sustentáculo de e, por outro, uma fonte de acusações dirigidas ao movimento bienal contemporâneo, reverberando alegações da aplicação deliberada de uma abordagem colonial, perante a descoberta de lugares exóticos e pristinos que ainda não se encontrem sob o jugo do mercado de arte internacional.
A Biennale também acompanha as antigas e futuras memórias dos caminhos batidos pelas pessoas, pelos animais, pelas plantas, pelas narrativas e pela matéria nos diferentes sistemas de migração, movimento sazonal e transumância desta região, ecoando-lhe as paisagens ao criar uma nova vaga de migração de amantes de arte. Em particular, os curadores parecem obter especial inspiração nas práticas de rebanho de Val Gardenna, através das quais as pessoas, o gado e todos os seus apetrechos reiteram os sistemas milenares de deslocação entre a erva fresca das pastagens montanhosas no verão e as resguardadas planícies do vale no inverno.
Desde a sua primeira iteração, enquanto evento paralelo da Manifesta 7, em 2008, que teve lugar em Itália (em Trentino-Alto Ádige, para ser mais preciso),
a Biennale encontra a sua identidade na ruralidade, escapando não só ao meio urbano mas também à ultrapassadíssima mentalidade antropocêntrica em virtude da "era das criaturas vivas" — uma era que exige que recentremos a nossa forma de ver a realidade para incluir a totalidade da natureza: do ar que respiramos às plantas, à água, à neve, aos animais e, claro, aos seres humanos.
De facto, em Ortisei, uma cidade habitada sobretudo por ladinos, da etnia romanche, com italianos e alemães a perfazerem respetivamente 5 e 11 por cento da população, a exposição, que é divulgada em quatro idiomas, evidencia nuclearmente uma abordagem internacional da tradução cultural. Quando se descobre o folclore e as tradições das populações locais, converte-se então numa viagem fascinante a um vale exótico de conto de fadas numa experiência transformativa que se integra numa narrativa alternativa sobre os animais e as plantas. Aqui, as lendas e histórias que se ouvem sobre aqueles também são contadas em sua virtude, numa tentativa de experimentar a sua subjetividade e o seu Umwelt.
Como o artista e escritor James Bridle sugere no seu recém-publicado Ways of Being: Beyond Human Intelligence — um livro fascinante — o nosso reconhecimento da existência de mundos não humanos, e por consequência da existência de um mundo partilhado, é algo que nos ajuda a navegar por entre as tendências geminadas em que arriscamos cair quando pensamos no mundo além-humano: o antropocentrismo e o antropomorfismo. O primeiro configura o perigo de pensarmos que estamos no centro de tudo o que existe; o segundo, o perigo de, ao tentarmos aceder à experiência não humana, a transformarmos numa sombra incompleta da nossa própria experiência. O ato de reconhecer por inteiro que as plantas, os animais e outras entidades não humanas possuem os seus próprios mundos, que são fundamentalmente diferentes do nosso e que nos são integralmente incognoscíveis, constitui o início do fim do excecionalismo e do suprematismo humano. Os seres humanos não são o centro do universo.
Se nos retirarmos da ribalta, podemos começar a imaginar um mundo no qual não somos a coisa mais importante e olhar a riqueza dos mundos não humanos nos seus próprios termos.
A lista de artistas, contando com apenas 24 participantes, e a inclusão de peças já previamente apresentadas [neste caso, da Coleção Museión, em Bolzano, onde também está patente uma pequena exposição sob a égide da Biennale] configuram dois bons exemplos de uma economia do gesto que é não só altamente relevante para uma curadoria sustentável e amiga do ambiente mas também especialmente apropriada para um mundo pós-pandémico, imerso em ruído e ecocídio. A jovial alegria minimalista impera aqui, representada especificamente por duas divertidas pinturas de Etel Adnan que, como diz Simone Fattal [cujas peças estão expostas ao lado das de Adnan], "transpiram e dão energia […] protegem-nos como se fossem talismãs […] ajudam-nos a viver a nossas vidas quotidianas". Ainda que tenha falecido recentemente, Adnan continua a ser uma voz incrivelmente poderosa e compassiva naquilo que toca ao que significa existir nesta Terra, enquanto ser humano e, também, mais do que humano. A poética do eufemismo e da moderação, elevada ao absoluto pela presente encarnação da Biennale e conjugada com um amor e uma compaixão irradiantes por todas as coisas vivas, deixa bastante espaço para a fantasia — trate-se do lendário Reino de Fanes, que em tempos idos terá circunscrito a cordilheira de Fànis, nas Dolomitas, ou de novas formas de ver e compreender o mundo mais do que humano.
Tradução ENG/PT: Diogo Montenegro.
Alexander Burenkov [1987]. Curador de arte contemporânea, produtor cultural e escritor com foco na sobreposição entre tecnologia, ecologia e práticas sonoras, investigando as transformações ambientais e os seus impactos nas estruturas sociais e na produção cultural, foi coordenador do curso de Práticas Curatoriais na Escola de Arte Contemporânea de Moscou. Ocupou cargos de Curador da Fundação V-A-C [2014−2016], Curador Chefe da Galeria ISSMAG [2016-2017], Curador Senior do Desenvolvimento Regional do Centro Nacional de Arte Contemporânea Rússia [2017−2018], Curador do Khodynka Galeria Municipal [2019], curador da fundação Cosmoscow para o apoio à arte contemporânea [2019-2020], diretor artístico e curador-chefe da fundação Ayarkut [2021-2022]. Os seus textos foram publicados no Artforum, Kommersant Art, Russian Art Focus, Esp, Aroundart, Colta, Artgid, Art Magazine, The Calvert Journal, East East, Dialogue of Arts, Strelka magazine etc. É curador residente na AIR351, Cascais.
Vistas de exposição, Biennale Gherdëina 2022. Fotografia: Tiberio Sorvillo