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Four Flags

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José Marmeleira

 

A apropriação da bandeira pelos artistas não é uma prática inédita. No domínio da arte contemporânea, abundam exemplos do seu uso na condição de objeto, imagem, símbolo, superfície. Nesse domínio, basta a sua menção para que à memória assomem Jasper Johns, David Hammons, Daniel Buren ou Alighiero Boetti. Como qualquer outro meio, tem sido explorado, transformado, recombinado visual e materialmente pela atividade artística, mas — e os artistas sabem-no — não é um objeto qualquer. Facilmente reproduzível e disseminável, tem como finalidade aparecer no espaço público, onde comunica crenças e sentimentos e desperta paixões que podem ser mais ou menos violentas. A sua ressonância política e social permanece incólume e, desde a explosão dos nacionalismos no século XIX, nunca mais nos abandonou. Sempre que as sociedades se agitam política e culturalmente, reaparece desfraldada, transportada pela mão, levantada ao alto ou, em momentos de convulsão e revolta, descida dos edifícios, queimada na rua.

Na rua, numa avenida, numa praça, o ato de mostrar ou empunhar uma bandeira dificilmente é interpretado como inocente ou neutro, que o diga o vagabundo de Charlie Chaplin em Os Tempos Modernos.

É verdade que nos espaços brancos da galeria e do museu, a vulnerabilidade do objeto ao panfletarismo e ao fardo da história pode ser amenizada, isto é, problematizada. A bandeira, embora sem perder a sua intensidade simbólica, pode transformar-se numa imagem, ser pintura (por exemplo, em Gerhard Richter), um elemento entre outros (por exemplo, nas instalações de Thomas Hirschhorn). Já na rua, a sua visibilidade expande-se, nomeadamente se nela estiverem impressas/reproduzidas mensagens reivindicativas, de denúncia ou protesto, por mais subtis que sejam. Recorde-se a ressonância e disseminação públicas de African-American Flag (1990) de David Hammons.

Não é finalidade deste texto, dado o seu breve escopo, explorar a relação dos artistas portugueses com a bandeira. Mencione-se, contudo, dada a proximidade temporal, a exposição Ver as vozes dos artistas #2 que, com a curadoria de Miguel von Hafe Pérez e em parceria com a Saco Azul Associação Cultural Maus Hábitos, colocou 30 bandeiras realizadas por vários artistas em edifícios icónicos da cidade do Porto. Patente entre 19 de Outubro e 20 de Dezembro de 2019, o projeto reuniu peças de André Romão, Arlindo Silva, Augusto Alves da Silva, Dayana Lucas, Isabel Simões, Priscilla Fernandes, Sónia Almeida e Susana Mendes Silva, entre outros artistas.

Realizado entre 7 de Julho e 7 de Setembro, na Galeria Zé dos Bois, a itinerância de Four Flags, também mostrou bandeiras produzidas por um grupo extenso de artistas, ao todo 36, mas o contexto e o formato são distintos da exposição no Porto. Concebido em Amesterdão pelos colecionadores Julia Mullié e Nick Terra, Four Flags, procurou dar visibilidade à produção artística numa altura em que os museus e as galerias se encontravam encerrados e as exposições adiadas indefinidamente. Para esse efeito, a bandeira, pelas suas características, apareceu como o objeto apropriado: incitava os artistas a desenhar, a fazer, preservando, em simultâneo, a nobreza pública da arte. Conhecedora do projeto, a curadora Luiza Teixeira de Freitas propôs expandi-lo a Lisboa num contexto em que a precariedade dos artistas se tornava cada vez mais nua. Nunca é demais frisar a importância do carácter solidário de Four Flags, a sua sensibilidade às condições materiais dos artistas: cada bandeira foi produzida numa série de quatro, cujas vendas reverteram na totalidade para os 36 participantes.

Aceite pelos colecionadores, a itinerância veio a contar com a cumplicidade da Galeria Zé dos Bois que, na figura de Natxo Checa, proporcionou o espaço e as condições de apresentação às novas bandeiras/obras. Assim, todas as sextas durante o período assinalado, quatro bandeiras de quatro artistas foram hasteadas, permanecendo ao ar livre durante 24 horas, sete dias por semana, antes de darem lugar a outras quatro. Expostas aos olhares dos transeuntes e dos visitantes ocasionais da galeria, às condições meteorológicas, foram vistas contra o céu, dobradas pelo calor e a humidade, ou levantadas pela brisa do rio e o vento.

Durante meses, observou-se a singularidade de cada universo autoral, a engenhosidade empregue em cada trabalho, a abordagem à geometria da bandeira, o gozo manifesto de experimentar com os limites e as possibilidades do suporte.

Um aspecto recortou-se com particular intensidade na sequência de trabalhos: a ausência de uniformidade nos objetos ou, por outras palavras, a irredutível diferença de cada um. No lugar do que seria uma perspectiva predominante na arte portuguesa, revelou-se uma pluralidade de perspectivas que foram habitando o mesmo espaço. E essa pluralidade manifestou-se na concepção que os próprios artistas fizeram dos objetos. Por exemplo, alargando e mostrando territórios estéticos e visuais (Alexandre Estrela, Gabriel Abrantes, Joana Escoval, Jorge Queiroz), reivindicando a experiência do discurso político (Carla Filipe, Fernanda Fragateiro, Gisela Casimiro, Pedro Neves Marques, Susana Mendes Silva), suscitando exercícios irónicos e deceptivos (Ana Jotta, Francisco Tropa, Gonçalo Pena) ou explorando a materialidade poética da bandeira (Bélen Uriel, Sara Bichão). Todos fizeram do suporte um modo de aparecer no espaço público — em certa medida, um exercício de cidadania — examinado as questões e as possibilidades intrínsecas aos próprios trabalhos, recorrendo a uma miríade de elementos linguísticos, conceptuais, gráficos e visuais.

A passagem de Four Flags por Lisboa também nos legou um documento de tempos profundamente incertos e ameaçadores em termos políticos, sociais e sanitários, permitindo aos artistas falar pelas obras uns com os outros e com os espectadores. Nesse sentido, e pela sua localização, foi também uma exposição que se confrontou com a sua própria acessibilidade, que interrogou modos de ver no espaço público, sem prescindir da frágil e digna firmeza da arte. Na Rua da Barroca, durante vários meses, as bandeiras representaram os artistas e, sobretudo, assinalaram a presença concreta de um lugar, de um território em que a imaginação não deixou de resistir ao vazio das ruas. Uma morada da arte, sempre aberta para rua, como se verificou no passado dia 31 de Julho, quando o poema-bandeira de Gisela Casimiro se juntou à manifestação de protesto contra o assassinato racista de Bruno Candé. Chegada ao espaço público, qualquer bandeira feita por um artista pode ter uma segunda vida, circular no mundo, levada por outras mãos que não as que a fizeram.

 

 

Taffimai

ZDB: Galeria Zé dos Bois

José Marmeleira. Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação (ISCTE), é bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) e doutorando no Programa Doutoral em Filosofia da Ciência, Tecnologia, Arte e Sociedade da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, no âmbito do qual prepara uma dissertação em torno do pensar que Hannah Arendt consagrou à arte e à cultura. Desenvolve, também, a actividade de jornalista e crítico cultural independente em várias publicações (Ípsilon, suplemento do jornal PúblicoContemporânea Ler).

Ana_Jotta
Belem_Uriel
CF
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JM
João_Maria_Gusmão
Jorge_Queirós
Kiluanji_Kia_Henda
MD
Pedro_Neves_Marques
Rodrigo_Garcia_Dutra
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Yonamine

Projecto Four Flags. Galeria Zé dos Bois (ZDB). Imagens: cortesia de ZDB e Taffimai.

1ª imagem: Sara Chang Yan.

2ª imagem: Gisela Casimiro.

Slideshow de imagens: Ana Jotta, Belén Uriel, Carla Filipe, Fernanda Fragateiro, Francisco Tropa, Joana Escoval, João Marçal, João Maria Gusmão, Jorge Queiroz, Kiluanji Kia Henda, Mattia Denisse, Pedro Neves Marques, Rodrigo Garcia Dutra, Sílvia Prudêncio, Yonamine.

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