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Homo Kosmos (cough cough)

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José Marmeleira

Uma agitação no corpo e no espírito.

É este o estado que o visitante poderá experimentar logo que entra em Homo Kosmos (cough cough), de Tiago Borges e Yonamine, na Galeria Avenida da Índia. Sobre o seu corpo projetam-se imagens, vindas de lugares diferentes, enquanto o som de um instrumento acústico circula pelo espaço, impondo a aflição de um transe que, só por instantes, se atenua. As obras expostas desenham um percurso não geométrico, fragmentado, disperso, composto de pequenas clareiras nas quais pululam sombras, imagens, desenhos, objetos. Na verdade, não é rigoroso falar de obras. Homo Kosmos (cough cough) é uma só obra, ou melhor, um só ambiente, no qual a assinatura dos dois artistas se torna indistinta. Prosseguindo a colaboração iniciada em São Paulo, com o projeto AfroUFO, Tiago Borges (Luanda, 1973) e Yonamine (Luanda, 1975) voltam a propor uma mundivisão que é política, estética e visual. O racismo, a tecnologia, as histórias da história de África na segunda metade do século XX, o fim ou a mutação imprevisível do humano são questões sujeitas a uma reflexão intempestiva, quase caótica, que se materializa no espaço, sem direções ou orientações claras. Não há em Homos Kosmos uma tese.

Há, todavia, dois elementos que sobressaem discretíssimos. A alusão autobiográfica, à Guerra Civil em Angola, que forçou os artistas a uma vida de confinamento e de exílio, às experiências pessoais de racismo (com o trauma que acarretam) e aos encontros miscigenados com outras culturas e imaginários, nomeadamente o soviético. E a referência insistente ao humano num mundo dominado e transfigurados pelos processos da técnica e da tecnologia. Portanto, é entre o passado e o futuro, num presentismo difuso, complexo que o Homo Kosmos (cough cough), de Tiago Borges e Yonamine emerge.

homo kosmos é, também, uma figura que surge amiúde na exposição. Vemo-la na forma de uma marioneta violentada, um boneco desfigurado, totem fragilizado, presença ubíqua mas tímida. Assinala, pese embora a sua inumana aparência, uma potência, uma promessa: a de uma humanidade, não predatória, solidária, consciente da sua humildade face ao cosmo, e neste, face ao lar, à casa que é a Terra.

Não se busquem utopismos extraplanetários, viagens ao planeta Marte, delírios trans-humanos. O mundo evocado na rocha suspensa, com a qual o espectador se depara, é terreste, familiar, natural. O da água, do mar, do rio, do sol refletido, da terra, em imagens que circulam pelas paredes, no teto. Com efeito, todo o espaço foi tornado pelos artistas num caleidoscópio de aparições, movimentos, luzes, sombras que invadem, suavemente, o visitante. Um Gesamtkunstwerk composto de vários Lichtspieles. Aquela rocha — objeto ameaçador e não entanto imóvel — acolhe e projeta imagens e estas incidem sobre o nosso corpo. Na exposição, a bem dizer, estão quase sempre connosco, fugidias, irrequietas, movem-se. Mas os artistas permitem que repousemos, diante de molduras de vidro estrategicamente colocadas na galeria. Observatórios, cápsulas, nos quais observamos imagens adiante (no futuro) e atrás (no passado).

No vidro de uma das molduras, refletem-se espectros pendurados numa das clareiras da exposição. Provém de trajes e capuzes inspirados no Klu Klux Klan, mas o plástico transparente, utilizado por Yonamine para fazer as tenebrosas vestes, transforma as figuras em demónios frouxos, asséticos, sempre insidiosos. Nas paredes, rodopiam outras imagens, agora de África: cidades, corpos, cores, numa vertigem que, sob o som do instrumento (um hungo, antecessor do berimbau, tocado pelo músico e mestre de capoeira angolano Kabuenha) induz a um transe. Os capuzes transparentes e aquelas imagens confundem-se, umas são superfícies das outras, fundem-se umas nas outras. É (quase) impossível separá-las.

Se a violência psicológica e física do racismo é sugerida na instalação, aberta a uma polissemia que se torna mais premente com as atuais circunstâncias sanitárias, o trabalho gráfico traduz um simbolismo mais sincrético. Uma projeção de acetatos imprime uma série de desenhos sobre a parede: mãos cujos dedos culminam em chamas e em pictogramas da cultura digital, um Mickey Mouse sinistro — metáfora da modernidade ocidental disseminado pelas técnicas de comunicação nos primeiros decénios do século XX — e, de novo, a figura do homo kosmos. São imagens que reaparecem no resto da exposição, em serigrafias, sobretudo nas paredes de uma black box. E, diante destas, é como se o espectador descesse à rua.

Com efeito, uma das mais notáveis qualidades da exposição reside na energia punk do grafiti, da arte urbana que num rasgão irónico e juvenil, em frases e dizeres, irrompe pelo espaço.

A sua raiva não é niilista, mas dirigida à destruição do Amazonas, às derivas fascistas, à acumulação destruidora e imparável do capitalismo. Na sua expressão visual e pictórica, são a antítese das imagens da rocha, apontando já a um mundo destroçado queimado pela guerra e pela predação da terra. À volta dos ramos e troncos, que os artistas pintaram de negro, no chão ou pendurados, só as imagens da água que circulam nas paredes, parecem ter um sentido reparador.

A maior parte das serigrafias cobre a superfície da black box no interior da qual repousa a obra mais forte da exposição, uma instalação para qual convergem todas as imagens, todos os desenhos, todas as inscrições: contemplamo-las no escuro, iluminadas por tubos de néon. Misto de caverna e clube noturno, é um espaço de catarse e revelação, para o qual os artistas nos convidam. No centro, um vídeo agita-se numa torrente de memórias, de sobreposições, de colagens, de temporalidades. O coletivo e o individual cruzam-se, as narrativas individuais dissolvem-se no tempo histórico. Por momentos, parecemos estar dentro do cérebro dos dois artistas, à beira das suas almas, a tocar os seus anseios, medos, esperanças e sonhos (abundam as referências à experiência pós-colonial, ao imaginário soviético, à conquista do espaço, às apropriações da cultura pop). E no centro desse vórtice, parecemos vislumbrar, vislumbrar apenas, os contornos desse homo kosmos.

 

Tiago Borges

Yonamine

Galeria Avenida da Índia

 

José Marmeleira. Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação (ISCTE), é bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) e doutorando no Programa Doutoral em Filosofia da Ciência, Tecnologia, Arte e Sociedade da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, no âmbito do qual prepara uma dissertação em torno do pensar que Hannah Arendt consagrou à arte e à cultura. Desenvolve, também, a actividade de jornalista e crítico cultural independente em várias publicações (Ípsilon, suplemento do jornal PúblicoContemporânea Ler).

 

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Homo Kosmos (cough, cough), vistas gerais da exposição. Galeria Avenida da Índia. Fotos: Guillaume Vieira. Cortesia dos artistas e Galerias Municipais/Egeac.

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