3 / 14

Marcelo Cidade: Equivalência e desequilíbrio 

Marcelo Cidade - Equivalência e desequilíbrio-12.jpg
Isabel Nogueira

 

Marcelo Cidade (n. 1979, São Paulo) apresenta uma notável instalação na Galeria Bruno Múrias. Chamou-lhe Equivalência e desequilíbrio, e nela convoca questões fundamentais, tanto do ponto de vista das referências estéticas e artísticas — a conhecida série escultórica minimal de Carl Andre — como vivenciais, sociais e políticas — as condições, absolutamente em desequilíbrio, em que o mundo se organiza, sob o holofote de um capitalismo agressivo. No seu trabalho há um depuramento de herança minimalista, e até conceptualista, que se materializa em pintura, escultura ou instalação. Provavelmente, a instalação é a zona mais subversiva de Cidade, por exemplo, quando questiona o ideais modernistas — racionais, depurados, universalistas — da arquitectura modernista, apropriando-se de  espaços e reflectindo sobre o lugar individual e colectivo, mediante uma postura francamente politizada e denunciadora. Debrucemo-nos sobre estas questões.

O movimento da arte minimal surgiu no final dos anos 50, em Nova Iorque, desenvolvendo-se ao longo das duas décadas seguintes, principalmente nos Estados Unidos da América. Estabeleceu-se inicialmente como reacção ao expressionismo abstracto, procurando uma simplificação depurada das formas, às quais era propositadamente retirado o conteúdo expressivo, no sentido de se atingir uma total abstracção, concretizada na redução formal e na produção de objectos em série. Os artistas almejavam estudar as possibilidades estéticas da composição a partir de estruturas neutras — “objectos“ — e da sua relação com o espaço. Neste sentido, foi seminal o texto/ensaio de Donald Judd Specific Objects (1965), no qual estes “objectos” aparecem definidos como pintura e escultura, rompendo com as suas divisões tradicionais. A arte minimal intelectualizou a obra e destacaram-se artistas, tais como, Sol LeWitt, Tony Smith, Dan Flavin, Robert Morris e, claro, Donald Judd ou Carl Andre.

Carl Andre (n. 1935), o artista evocado nesta mostra, iniciara, por volta de 1959, a utilização de unidades pré-fabricadas, industriais, que serviam de unidade modular. A sua obra deixa de ser esculpida para ser soldada, sobreposta, cortada, edificada. Em 1966, foi um dos participantes na exposição que apresentaria ao público vários artistas ligados à arte minimal, intitulada Primary Structures: Younger American and British Sculptors (Jewish Museum of New York City, organizada por Kynaston McShine). Neste mesmo ano, surgia uma das suas séries mais conhecidas: Equivalent. Como o título faz antever, trata-se se uma série na qual todas as oito esculturas que a compõem são constituídas por 120 tijolos refractários iguais. Por outro lado, em 1967, Andre faria uma instalação na Dwan Gallery, Los Angeles, intitulada 8 Cuts. Trata-se de um espaço perfurado com oito fendas geométricas. Esta visualidade assemelha-se — agora não em corte/vazio/negativo, mas em volume/cheio/positivo —, também ela, à instalação de Marcelo Cidade, organizada em oito conjuntos volumétricos.

Cidade dispõe na galeria oito peças formadas por quadrados de betão, iguais entre si, mas com uma perigosa variação. E passamos do território da estética para o da política.

Todos os pequenos blocos estão cravejados de pedras angulosas, ameaçadoras e potencialmente agressivas para quem lhes tocar. Visualmente é uma imagem poderosa. Mas é mais do que isto. Remete-nos, de imediato, para a designada arquitectura hostil.

A arquitectura hostil, também conhecida por arquitectura defensiva, tem por objectivo restringir ou conduzir comportamentos, assegurando uma determinada ordem social e de conduta. É particularmente vocacionada para as pessoas na situação de sem-abrigo, impedindo que se deitem ou sentem em determinados espaços públicos e privados exteriores, muitas vezes, escritórios e bancos. Não por acaso, edifícios representativos do capitalismo dominador. E a conflitualidade torna-se evidente entre os detentores do capital e os que não o possuem, nem num mínimo necessário.

É francamente interessante a relação de crítica social, política, económica que esta instalação estabelece com a arte minimal, por definição, afastada de emoções e, por conseguinte, de uma certa humanidade de fundo. Esta junção torna-se surpreendentemente operativa e feliz. O próprio espectador encontra a resistência do material no seu percurso, obrigando a contornos e a desvios. Como a vida. Aliás, vitalidade é o que, de modo depurado, se respira neste espaço. E, de um modo geral, numa certa matriz da obra de Marcelo Cidade, engajada, viva, questionadora.

Finalmente, esta vivacidade, ao mesmo tempo simples mas não simplista, faz-nos pensar no próprio sentido de uma exposição, em sentido lato, concretamente, numa altura de regressos e reinícios de um ano que nos parou. É eficaz a sua comunicação enquanto objecto artístico? Existe uma ideia/conceito suficientemente forte de fundo? As opções curatoriais são, de facto, causadoras de algum espanto ou inovação (condições associadas à ontologia da arte)? Os dispositivos e opções curatoriais são efectivamente singulares, díspares entre si? Infelizmente, muitas vezes, não. É importante que também a curadoria se reinvente e se auto-supere. Esta exposição/instalação, de um modo sóbrio e depurado mas intenso, conseguiu-o. E, a seu modo, o desequilíbrio assume, afinal, um equilíbrio orgânico e densificador.   

 

Marcelo Cidade

Galeria Bruno Múrias

 

Isabel Nogueira (n. 1974). Historiadora de arte contemporânea, professora universitária e ensaísta. Doutorada em Belas-Artes/Ciências da Arte (Universidade de Lisboa) e pós-doutorada em História da Arte Contemporânea e Teoria da Imagem (Universidade de Coimbra e Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne). Livros mais recentes: "Teoria da arte no século XX: modernismo, vanguarda, neovanguarda, pós-modernismo” (Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012; 2.ª ed. 2014); "Artes plásticas e crítica em Portugal nos anos 70 e 80: vanguarda e pós-modernismo" (Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013; 2.ª ed. 2015); "Théorie de l’art au XXe siècle" (Éditions L’Harmattan, 2013); "Modernidade avulso: escritos sobre arte” (Edições a Ronda da Noite, 2014). É membro da AICA (Associação Internacional de Críticos de Arte).

 

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.

Marcelo Cidade - Equivalência e desequilíbrio-21
Marcelo Cidade - Equivalência e desequilíbrio-18
Marcelo Cidade - Equivalência e desequilíbrio-14
Marcelo Cidade - Equivalência e desequilíbrio-15
Marcelo Cidade - Equivalência e desequilíbrio-10
Marcelo Cidade - Equivalência e desequilíbrio-9
Marcelo Cidade - Equivalência e desequilíbrio-8
Marcelo Cidade - Equivalência e desequilíbrio-7
Marcelo Cidade - Equivalência e desequilíbrio-5
Marcelo Cidade - Equivalência e desequilíbrio-6

Marcelo Cidade. Equivalência e desequilíbrio. Vistas gerais da exposição na Galeria Bruno Múrias. Fotos: Bruno Lopes. Cortesia do artista e Galeria Bruno Múrias. 

Voltar ao topo