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Conversa com Jorge Molder

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Cristina Robalo

 

... as coisas em redor ocupam o lugar central — um almoço no Valbom com Cristina Robalo ...

 

“Ai, Margarida,

Se eu te desse a minha vida,

Que farias tu com ela?

— Tirava os brincos do prego,

Casava c'um homem cego

E ia morar para a Estrela.”

 

 

Os versos em epígrafe correspondem a um poema de Álvaro de Campos que Jorge Molder disse, a modo de cântico falado, para testar o som do gravador. Levava comigo um mote de palavras — morte, imagem, transparência, obscuridade, terror, diluição, transporte — com destino a Grandes Planos (galeria Miguel Nabinho, Lisboa, 2023). No desejo de desenhar uma linha, a pequenos traços, como um tracejado que une pontos, pelas sombras e luzes de algumas imagens do corpo de obra de Jorge Molder, ela torna-se bailarina. Movimento entre as palavras, que me acompanhavam — passando por histórias sobre filmes, por poesias cantadas, pela literatura, pela construção —, e as “aproximações e distanciamentos”. E, sem demais palavras, pelas coisas em redor, aquelas que ocupam o lugar central.

No quarto ano da Universidade Clássica tornou-se claro para Jorge Molder que não queria continuar a exercer Filosofia, porque, a partir desse momento, percebeu que havia dois, ou três tipos de actividade — investigação e ensino — que não lhe interessavam. Anos mais tarde sentiu necessidade disso, mas essa falta foi preenchida enquanto director do Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão (1994-2009), através do estudo da obra de alguns artistas e também de poder encontrá-los, estar com os artistas. Organizou diversas exposições, uma delas ainda hoje inscrita em mim – Fantasmas de Marlene Dumas, de quem já era amigo de longa data. Mas antes disso, desde miúdo, passava o dia a ver exposições e via todas as que havia na sua época. Há uma que destaca, a primeira exposição de Artes Plásticas, na Sociedade Nacional de Belas Artes, onde várias obras de Almada Negreiros estavam expostas. Obras essas que pertencem hoje à colecção do Centro de Arte Moderna. Foi com o seu pai e lembra-se de que todos riam. Essa disposição surpreendeu-o muito, mas percebeu, mais tarde, que o riso estava ligado à frase de jeito boçal: “Isso também eu fazia!”

Como artista, representou o nosso país na 48º Bienal de Veneza com a série Nox (1999), foi convidado para a Bienal de São Paulo (1994), ganhou o prémio AICA (2007) e o Grande Prémio EDP (2010), fez inúmeras exposições, mas não há nenhuma que possa eleger, ou escolher como essencial, porque a última exposição é sempre aquela de que gosta mais. No entanto, há uma história que “foi uma grande lição de vida”: em 1978, através de Eduardo Calvet Magalhães, fez uma exposição na Cooperativa Árvore. No fim, Jorge Molder perguntou: “Então, professor o que é que acha da exposição?” Resposta: “Oh Jorge, nem pense nisso! Você agora tem de fazer mais vinte exposições e, nessa altura, será a altura para colocar essa questão.”

 

Na última revisão desta conversa, ao mesmo tempo que organizava as imagens que a acompanha, observei o personagem da fotografia número 11 de Grandes Planos e, por breves momentos, vi, ainda que desasjustado de foco, as zonas riscadas, arrastadas e varridas na pintura de Francis Bacon. Como Jorge Molder disse: “E luz vem sempre a propósito quando se quer fazer transformações.”   

 

 

Jorge Molder [JM]: Vamos começar com uma pergunta que sou eu que faço! Porque é que achou que o meu trabalho tem que ver com a morte?

Cristina Robalo [CR]: Sempre achei que tinha alguma coisa que ver com a obscuridade, com o desconhecido e com a morte. Alguns trabalhos têm mais que ver com o sonho, ou estar adormecido… Mas talvez por serem escuros…

JM: Estou de acordo consigo, excepto numa coisa: eu não aproximo, nem identifico a morte com o escuro, ou com o negro… O meu trabalho tem que ver com a morte porque todos os trabalhos humanos têm que ver com a morte, sobretudo se têm continuidade. A passagem do tempo está inexoravelmente ligada a esse fio condutor, que é o fio de Ariadne: um dia vai quebrar e acabou. Mas tenho uma série que tem que ver com a morte e que, exactamente, não é preta, é branca. É a série Pinocchio (2006-2009). Sempre achei que o branco é uma cor de luto, mais do que o preto. O preto é uma cor que se presta a muitas coisas: presta-se à ocultação, presta-se à ilusão, e sei lá eu que mais! A transparência é sempre obscura. Nunca há transparência na claridade. A transparência é mesmo mortal!

CR: Percebo o que está a dizer sobre a luz, esse clarão que invade o papel. Quando vi a série Pinocchio, pela primeira vez, não senti que tivesse que ver com a morte, porque, para mim, aquelas imagens provocaram-me medo e algum terror. É assustadora! As figuras muito brancas… com os ‘olhinhos’…

JM: Com os ‘olhinhos’ quase a sério! São olhos de vidro e, portanto, os olhos têm uma certa existência real por aproximação. Mas, curiosamente, essa série nasce de uma descoberta que teve origem na própria fabricação desses modelos.

CR: A morte foi ao seu encontro durante o processo?

JM: Senti uma experiência claramente mortuária. Foi uma actividade mortificante! Eu já tinha tido ecos disso, através do Anthony Gormley. Em muitas séries que fez, ele não utilizou o seu próprio corpo mas o corpo de outras pessoas, e, essas pessoas tiveram, por vezes, problemas vários, mesmo desfalecimentos, porque essa experiência foi penosa e difícil.

CR: O seu rosto foi coberto com uma gordura e depois com gesso?

JM: Sim, depois há uma pasta de silicone que o vai cobrindo e, digamos, vai-se fazendo uma contra máscara que dará origem ao molde do rosto. À medida que a massa vai crescendo e solidificando, a pessoa acaba por ficar ligada ao mundo, apenas, por dois tubos introduzidos no nariz. Esse procedimento é uma operação semelhante à que se fazia para as máscaras mortuárias. Tem qualquer coisa de ritual que, quase, estabelece uma passagem da vida para a morte.

CR: Quantas máscaras fez?

JM: Fiz dois modelos, um para o Centro Galego de Arte Contemporânea (CGAC, 2006) e outro para a Fundação Telefónica de Madrid (2006).

CR: O Pinocchio é a história que todos nós conhecemos?

JM: Sim, refiro-me ao Pinocchio do Walt Disney. Primeiro, gostei muito quando era miúdo e, depois, por diversas razões da minha vida, regressei a ele, pelas sucessivas gerações, quer das minhas filhas, quer dos meus netos, que foram ao seu encontro e obrigaram-me a reencontrar o Pinocchio. E volto novamente a ele, agora, com a minha neta mais novinha!

CR: O que significa o Pinocchio?

JM: É uma coisa que está entre dois mundos, entre o mundo do inanimado e o mundo das pessoas. Essa passagem, do inanimado ao humano, surpreende-nos sempre, mesmo no caso mais complicado como o de Frankenstein. Talvez tenha sido isso que descobri nessas fotografias do Pinocchio; não era tanto ‘parece que tem vida’ mas ‘que teve vida’. Por isso, elas apontam para uma realidade que está entre um molde inanimado de um modelo e o ganhar vida.

CR: Em outras séries, o escuro ajuda a uma encenação que nos distancia da realidade. Nesta, provoca medo, um medo daquilo que será, atraindo-nos pela força do branco.

JM: E a cara é exactamente branca! É quase um lugar comum dos filmes de zombies, o problema é que no caso dos zombies há mais deformações do que no Pinocchio. Uma das características dessas imagens é, por um lado, a fragmentação e, por outro, a cor. E a cor é uma cor cadavérica, o branco está associado, o empalidecer excessivo, a uma ideia de morte.

CR: O Jorge planeou esta série?

JM: Não pensei nunca fazer uma série do Pinocchio. Fiz algumas fotografias para documentação e, a certa altura, apercebo-me que, a pouco e pouco, foi-se constituindo um corpo de imagens. É uma série em que não parto de uma decisão ou de uma vontade de fazer qualquer coisa. Portanto, não é ir à frente à procura, mas é ir atrás e ver o que aconteceu! São dois movimentos diferentes. Eu nunca tinha tido essa experiência: de ir à procura nas coisas que fiz uma coisa que viria a ser.

CR: Quantas fotografias fez?

JM: Faço, como sempre, centenas, mas depois aproveitei cerca de vinte e sete, ou vinte oito, fotografias.

 




 

CR: Qual foi a primeira imagem que despoletou no Jorge o desejo de a fixar, ou de criar um corpo de trabalho?

JM: Já referi isso muitas vezes: não se encontra uma razão. As coisas não acontecem, elas vão sempre acontecendo! Mais por acumulação ou por acamação, até que de um momento para o outro.... Acredito que haja coisas na vida que têm características de um corte, mas neste caso não é isso. Na minha primeira exposição fiz uma pequena série de fotografias a partir de Vilarinho das Furnas, que visitei em 1975. Tive a preocupação de chamar à série Vilarinho das Furnas, uma encenação (1975-1977), porque não se tratava de um trabalho de recolha documental daquilo que tinha ocorrido à última aldeia comunitária portuguesa.

CR: Que também tem que ver com a morte, o abandono, a água… As fotografias mostram o que restou da aldeia: os destroços e as ruínas.

JM: É sempre assim com as aldeias submersas, com as fotografias, e por aí fora… Faz-me pensar numa quadra de um poema do Vitorino Nemésio, O Canário de Oiro:

“Tempo, ladrão, dá-me conta do fardo:

As saudades práli! As promessas práli!

O que te vale é o escuro: Eu ainda ardo;

Minhas estopas são embebidas por ti.”

O tempo, a luz e a escuridão, as coisas que a água tapou e que, nessa submersão, ganharam em mistério e em espessura, fazem parte desse mesmo mundo: existe e não existe ao mesmo tempo.

Como não recordar também La cathédrale engloutie.

CR: Os seus trabalhos funcionam como séries pela relação das imagens umas com as outras, ou eles contam uma história, como se houvesse uma narrativa?

JM: Acho que não funcionam como narrativa. Narrativa, narrativa, só encontro num trabalho meu que é O Pequeno Mundo (2000). Nos outros, mais do que propriamente estar a criar histórias diferentes, diria que se trata de terrenos individuados. Quer dizer que se estabelece uma separação entre si e as outras coisas. O que não quer dizer que depois a posteriori não se encontrem formas de convivência entre habitantes de terrenos diferentes. Tenho descoberto, ao longo dos tempos, que, às vezes, há fotografias que se combinam com fotografias de outras séries. Mas, quando estou a trabalhar numa série, sei bem o que é que faz parte desse terreno e o que não faz parte.

As imagens não contam histórias mas fingem muito bem. E como nós estamos sempre à espera do à suivre nunca lhe resistimos. É um bocado como nas nossas vidas: alguns primeiros episódios.

CR: Essa série foi feita na casa A.Molder, onde o negócio de filatelia do seu pai funcionou, e, na actualidade, é um espaço de exposições programado pela sua filha mais nova, a Adriana. O que gostaria de saber é: o facto de ter construído as fotografias de O Pequeno Mundo nesse espaço, certamente afectivo, como é que a ligação entre passado e fim é devolvida num tempo presente, através do corpo de trabalho?

JM: É uma espécie de casa de conveniência. É suficientemente grande, suficientemente misteriosa e, sem demais perguntas, seguramente ligada ao meu passado. E ao passado fica sempre bem uma história que envolva mapas e a procura de um rumo qualquer.

CR: Numa das fotografias em Não Tem que Me Contar Seja o que For (2006) há um anjo azul, ou, talvez seja, uma aura azul que veste um anjo. De onde vem este anjo?

JM: Esse trabalho correspondeu a um convite de um homem que me acompanhou quase toda a minha vida, o João Bénard da Costa. Primeiro como professor do liceu e depois como um dos grandes impulsionadores da minha paixão pelo cinema. Estou a pensar nos ciclos de cinema na Gulbenkian e depois, evidentemente, na Cinemateca! O João Bénard convidou-me para fazer um trabalho sobre cinema sem nenhumas restrições e eu fiz um conjunto de fotografias. Algumas dessas imagens são tiradas de filmes em que introduzi modificações e outras são imagens minhas, ecos de filmes. O David Lynch foi convidado a fazer uma selecção de obras mostradas pelas diversas galerias que participaram no Paris-Photo 2012. Escolheu duas fotografias minhas, numa delas sou eu a imitar uma figura do filme dele, Twin Peaks: Os Últimos Sete Dias de Laura Palmer (1992). A outra fotografia foi feita a partir do filme Belarmino (1964), de Fernando Lopes. Essa fotografia, quando foi mostrada em Lisboa, deu azo a uma história muito engraçada. O Fernando Lopes disse-me assim: “Tens aqui uma fotografia que me diz muito, muito. E não sei porquê?!” Respondi-lhe: “É natural, foi tirada de um filme teu!” É uma imagem lateral, onde há um combate. O que fotografei foi o árbitro que caminha para o centro da cena. Ele não se lembrava. Num filme que tem milhares de imagens era impossível lembrar-se, sobretudo anos depois.

CR: O Jorge conheceu o David Lynch? Tem um filme preferido dele, ou gosta de todos?

JM: Nunca o conheci. Acho que, ao fim e ao cabo, ele só fez um único filme, do que conheço, com muitas partes e um apêndice estranho e comovente, The Straight Story (1999).

CR: Voltando ao anjo…

JM: Esse anjo é uma figura acidental e não sei se é um anjo ou uma fada. É uma figura que está numa gravura, num quarto, de um filme de Sacha Guitry. Não me lembro bem se é do filme Mon Père avait raison (1936), mas estou convencido que sim. Sou um grande admirador de Sacha Guitry. Tem filmes fabulosos e inventou muita coisa que toda a gente utiliza e nunca faz referência. Por exemplo, fazia genéricos em que os comediantes começavam a chegar ao estúdio para trabalhar: “a senhora X que vai fazer de…, mas chegou um bocadinho atrasada…; agora, chegou o homem da música…; o electricista…, e por aí fora.” É um dos autores da minha vida. Estou a pensar num filme de que gosto imenso, Mémoires d’un tricheur (1935). É a história absolutamente genial de um menino que rouba uma moeda e é apanhado, ficando de castigo. Ao jantar, ele fica sentado no topo da mesa sem comer, enquanto a família toda saboreia um prato de cogumelos. Durante a noite morrem todos.

CR: Restou ele…

JM: Toda a vida dele vai ser isso. Sempre que tenta ser sério tudo lhe corre mal e de cada vez que tenta, de algum modo, ser tricheur, tudo lhe corre bem. É um filme fabuloso! Tem alguns filmes geniais como Le diable boiteux (1948), Si Versailles m’était conté (1954), Napoléon (1955) e tantos outros. Sacha Guitry fazia tudo, foi realizador, escritor, actor; foi um homem com uma presença muito discreta e silenciosa durante a Segunda Guerra Mundial que o comprometeu bastante. Deixou pairar algumas dúvidas…

 






 

CR: Li numa entrevista (Jornal Sol, Março de 2022) que o Jorge não gosta de símbolos, mas gosta de metáforas, aliás, também refere na conversa filmada com Miguel Nabinho (Grandes Planos, 2023). E a palavra ‘metaphorá’ dá nome aos transportes públicos na Grécia. O movimento de ir de um lado para o outro está relacionado com o processo e com o caminho?

JM: Sim, é transporte! É engraçado que não nos passa pela cabeça que a palavra ‘metaphorá’ quer dizer isso. À medida que nos deslocamos vamos construindo de certa maneira o nosso percurso e, essa maneira, de construirmos o nosso percurso, acaba por ser mais importante que o próprio percurso. Isso é que é a literatura e tudo o resto. Não é o que se diz, mas é a maneira como se diz. Por exemplo, aqueles versos, que o Camané canta e para os quais o Laginha compôs a música, escritos pelo Álvaro de Campos, como ele disse, “em estado de inconsciência alcoólica”, continuam por ali fora. A última estrofe é assim:

“Mas, Margarida,

Se este dar-te a minha vida

Não fosse senão poesia?

— Então, filho, nada feito.

Fica tudo sem efeito.

Nesta casa não se fia.”

 

CR: Por exemplo, como é que se faz um trabalho, em que no decorrer do percurso há um momento de ausência, à semelhança dos sonhos?

JM: Os sonhos têm uma importância muito grande na nossa vida, embora na maior parte dos casos não damos conta disso, porque nos esquecemos ao acordar. Mas por vezes não esquecemos, e, esses sonhos, perduram, acompanham-nos. A história dos sonhos lembra-me sempre uma coisa que o João Bénard da Costa contava e que é absolutamente deliciosa. Havia um grande realizador de cinema que durante a noite tinha sonhos extraordinários. Sonhava com argumentos e quando chegava a manhã não se lembrava de nada. Vivia um bocadinho triste por esse esquecimento e teve a ideia de pôr um bloco e um lápis junto de si; nessa noite teve logo um sonho para um argumento fantástico. Acordou, escreveu tudo e voltou a adormecer. No outro dia olhou para o papel e dizia: “rapaz encontra rapariga e apaixonam-se.” O sonho dá-nos uma ilusão que podia ser, se nos lembrássemos mais profundamente, motivadora ou auxiliadora das nossas capacidades criativas, mas naturalmente não nos lembramos, a não ser do que é essencial numa história: rapaz encontra rapariga e apaixona-se, ou apaixonam-se!

CR: E depois tem de se construir tudo o resto.

JM: É engraçado que tenho pensado muito nisso. A literatura é um bocado isso, depois é ir desdobrando uma espécie de camadas, que são um bocado sinonímicas, em que se vai, digamos, desenrolando a história para ela durar um pouco mais e ser mais complicada. Essa fórmula é unicamente um desenvolvimento. Mas o fio condutor, de facto, não é esse, é qualquer coisa muito parecida: o rapaz apaixonou-se por ela ou ela por ele, a grosso modo é o Romeu e Julieta. Não há grandes possibilidades de variação, o que há é ‘o construir’. Isso é a literatura! Construir as coisas em redor. E as coisas em redor ocupam o lugar central. O que nós chamamos literatura não é exactamente a história.

CR: No livro Un Dimanche, publicado por ocasião da sua exposição em Vila Nova de Famalicão, o Jorge salienta a diferença entre vidro, vidraça e espelho. Gostava que falasse da transparência aí presente, que já disse ser obscura. Mas há o reflexo e, talvez, a desfocagem?…

JM: Não é uma desfocagem, mas há uma certa transformação… Não é a mesma coisa! Ver sem vidro ou ver com vidro. Claro que o vidro pode ter características diferentes entre si, como a espessura, a qualidade, o índice de refracção. O espelho é muito anterior ao vidro, começa com a água e com a história de Narciso, mas não sei se começa logo com uma percepção imediata de que tudo é transformado. O espelho transforma exactamente tudo porque inverte sempre a imagem. Mas é curioso, inverte-a no sentido horizontal. Nunca tinha pensado nisso! Podia ser invertido no sentido vertical, mas não! De facto, a nossa mão esquerda torna-se direita, o nosso coração passa para o outro lado… O vidro não! Podemos conceber um vidro mais transparente, que talvez não alterasse assim tanto a imagem, mas… as transformações que os reflexos trazem podem ser igualmente decisivas. Veja-se de Bacon a Pistoletto.

CR: Por outro lado, não nos dá a ver nitidamente o reflexo de nós próprios… Os reflexos podem criar uma imagem sobre outra imagem!

JM: Se falarmos em termos do que se passa no nosso mundo é natural que os vidros muito fininhos, tipo vidraça, introduzam um conjunto de defeitos muito grandes que outros mais refinados não traduzem. Simplesmente, esses vidros muito refinados, quando são muito grossos, muito especializados para uma série de finalidades, alteram a nossa visão do mundo. Mas alteram-na de uma maneira curiosa, porque nada deixa de ser como é e tudo passa a ser diferente daquilo que é. Se nós formos à procura do que é que muda, temos muita dificuldade em dizer o que mudou, mas percebemos que mudou. É um bocado como o tempo em Santo Agostinho.

CR: O Jorge também falou de um tecido que se vai desgastando com a passagem do tempo e deixa passar a luz. Esse tecido, que se desfaz, tem uma semelhança com o vidro, dando origem a imagens que, não sendo desfocadas, são deformadas. Esta deformação remete-me para a marca feita pelo lápis ou pelo pincel. As imagens impressas são fotografias?

JM: Não são de certeza desenhos e não são de certeza gravuras… Para mim, elas são fotografias, porque nasceram de um objecto… A minha relação com as máquinas fotográficas é uma relação de peso! São cada vez mais leves. Vou sempre trocando; a minha última máquina é relativamente pequena, cabe no bolso. O fundamental é que eu possa registar tudo, que as imagens tenham uma certa qualidade e o peso da máquina não iniba o meu funcionamento normal de vida.

Agora, os algoritmos permitem a grande transformação da imagem, simulam a imagem inicial, acrescentam densidade e peso. E, portanto, ela tem um alcance muito maior, como se fosse feita com uma máquina muito mais potente e pesada. Mas não! É feito por aproximação.

CR: Já não é preciso o analógico?

JM: Sobretudo no processo de fazer imagens. O processo analógico – falo dos grandes formatos – é um processo extremamente cansativo, não se pode trabalhar duas horas, tem de se trabalhar doze horas com imagens pesadas. E já não consigo. Por outro lado, encontrei no digital recursos que se ajustavam muito bem àquilo que ia fazendo.

CR: Retomando o tecido que deixa passar a luz. Ele aproxima-se do papel de algodão que, por sua vez, é próximo do corpo, é mais orgânico e é feito à mão.

JM: Há duas coisas que são extremamente importantes: há uma fotografia que é visual e há outra que é orgânica. A diferença entre uma e outra tem que ver com a dimensão. Nós temos uma  relação de leitura com uma imagem próxima e temos uma relação de enfrentamento com uma imagem grande. É diferente ver uma coisa que tem o meu tamanho ou uma coisa que olho de perto, como um livro. Por outro lado, há uma grande diferença entre a fotografia analógica e a fotografia digital. As fotografias analógicas quando estão bem em pequeno, também estão bem em grande, há questões de compensação mas se está feito em pequeno, está feito! Depois é ampliar. A fotografia digital não é assim! Para ser grande tem de ser feita em grande, porque aparecem sempre coisas inesperadas; coisas que em pequeno não se notam, mas assumem uma presença inesperada em grande formato e, na maior parte das vezes, incómoda. De maneira que a única hipótese que há é fazê-las e ver o que acontece.

CR: Na série Grandes Planos, em exposição na galeria Miguel Nabinho, as imagens fotográficas surgem cada vez mais diluídas, ou quase deformadas. São fotografias, mas a marca, o traço, o risco, a impressão em papel de algodão de 600 grs…

JM: São 640 grs. É um papel feito à mão. Para mim o que é fundamental é o seguinte: sempre fiz fotografia mas nunca achei que era fotógrafo. Isto remete-me para uma música genial de David Byrne, Office Cowboy, em que ele canta: “It’s all right, It’s all right, It’s all right, It’s all right, estou roubando mas não sou ladrão.” É absolutamente espantosa! Isto porquê? Porque sempre tive uma relação ambígua com a fotografia. Não fazendo parte do grupo das pessoas que diziam: “eu uso a fotografia mas não sou fotógrafo”, que é uma atitude de todos os conceptualistas na minha geração. É uma atitude que vem claramente da Alemanha e que vai mais ou menos espalhar-se para todo o lado. Nos anos sessenta e setenta aparecem artistas que utilizam a fotografia para documentar o próprio corpo, como a Gina Pane, o Hermann Nitsch, entre outros; ou para quem a fotografia desempenha um papel extremamente importante em todas as artes performativas. Nesse caso, a fotografia é mais um documento do que outra coisa. Por outro lado, mais tarde, aparece uma geração, em que talvez me inclua mais, que tem que ver com uma certa afirmação da fotografia como uma forma de arte, por direito próprio. Estou a pensar, no Craigie Horsfield e em todos aqueles alemães como Thomas Ruff, Thomas Struth, Andreas Gursky, Axel Hütte… Esses afirmam-se como fotógrafos de uma fotografia que não é documental, nem é uma fotografia no sentido tradicional. Para eles, a fotografia é o seu capital, é o seu objecto, mas não são fotógrafos no sentido mais clássico. O que é que eu penso? Para mim, a fotografia tem um lado desinteressante, que é um lado um bocado corporativo, em que há um culto pelos aparelhos fotográficos e por toda aquela parafernália…

CR: Da técnica, da impressão, das aberturas, do objecto…

JM: Penso que ultimamente compreendi tudo melhor, podia ter sucedido mais cedo… O filme que vi de Jean-Luc Godard, Le livre d’image (2018), vi-o como uma lição absoluta sobre a liberdade de produzir imagens. E, acho, como diria o outro: “Mais vale tarde do que nunca”. Aprendi muito sobre essa deseducação, que é fundamental. Digamos, há um momento em que a curva normal de desenvolvimento entre sombras e luzes altas fica estabelecida como uma espécie de boa prática, como uma espécie de dever, de ser sempre assim. E há um momento de estabelecer, como orientação, a desorientação.

Godard dá-nos muitas lições! Ontem descobri uma coisa absolutamente extraordinária que lhe vou contar porque fiquei encantado com isso: quando o Godard fez À bout de souffle (1960), filmou demais e tinha de reduzir o filme; sabe quem é que ele foi buscar para o ajudar?

CR: Para lhe cortar o filme? François Truffaut?

JM: Não, não! É fantástico! É um dos meus realizadores franceses preferidos! Foi o Jean-Pierre Melville. Deve de ter sido o último trabalho que Melville fez, porque ele morreu com cinquenta e cinco anos e Godard devia ter vinte e tal anos, talvez trinta. Ando a rever a filmografia de Melville. Os filmes dele são todos bons, excepto um que é a história de um padre.

CR: O que é que é importante na imagem para si?

JM: No último momento, corresponder àquilo que procuro. E depois desse momento há uma espécie de desinteresse.

CR: Depois passa para outra imagem?

JM: Sim. É engraçado, porque, ao longo da minha vida conheci muitos artistas por todas as razões e mais algumas, encontrei pessoas que são como cães: não largam o osso. Nunca! Digo isto no sentido da observação. Há pessoas que fazem uma coisa e não largam. E depois há pessoas que alcançam aquilo que lhes interessa e já não lhes interessa mais. Sou mais deste tipo. Não é que ponha as coisas de parte, volto sempre a elas. O que costumo dizer é que tenho uma relação infiel com as minhas coisas: às vezes gosto mais de umas, outras vezes gosto mais de outras e outras vezes vão borda fora. E há outras! Que são aquelas que são recuperadas quando já se pensava que tinham morrido. Portanto, não tenho um estatuto constante de dizer: “isto é assim e o resto não é.” Há sempre flutuações.

CR: E a imagem final corresponde à primeira imagem que viu, ou que pensou?

JM: Quando vejo que a imagem que obtive é aquilo que em última instância esperava… Às vezes quando fazemos uma coisa não sabemos exactamente o que esperávamos, acontecem imensos acidentes e incidentes que fazem com que o nosso espírito de espera se vá alterando. Vamos ajustando, como os homens da guerra fazem com as miras anti-aéreas: vemos se ajustamos a arma ao avião e lhe acertamos mesmo em cheio. Essa expectativa vai sofrendo transformações, mas há um momento em que dizemos: “Está aí!” Ou então, esse momento nunca chega, também acontece muitas vezes, e passamos a outra.

CR: A verdade é que existem várias imagens ao longo do processo de fazer. Elas desdobram-se e multiplicam-se. Mas a última imagem, aquela que fica impressa no papel de algodão, será também ela que reúne em si a duplicidade de todas as que ficaram para trás?

JM: E quem é que sabe? Posso ter suspeitas, mas sou um testemunho comprometido, diria mesmo, duvidoso.

CR: Como director do Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão convidou Marlene Dumas para fazer uma exposição (1998). Fui à procura do catálogo da exposição e encontrei o meu sublinhado nas palavras que o Jorge dedicou aos desenhos de Dumas: “[…] encontra-se-lhe no trabalho uma espécie de fixação arquetípica, como se se tratasse de um registo de seres pelos quais se passou, procurando não esquecer os traços, apenas os traços que evitem o seu cair mais que provável nessa dimensão bem maior do que a memória, o esquecimento.” E mais à frente escreve: “Alguma coisa que não sendo necessariamente nossa conserva ligações com o nosso mundo.” Essa dimensão maior, o esquecimento, lembra alguma coisa que não reconhecemos, ou esquecemos. O que está aí conservado?

JM: Não são bem as pessoas. É como o vento ou as coisas que passaram. Sempre achei que era isto que a Marlene queria dizer e por isso lhes chamou (eram três séries fantásticas de retratos) Fantasmas.

CR: Em Grandes Planos, o branco volta a estar presente com intensidade, mas aqui, ao invés de Pinocchio, parece-me surgir de duas maneiras: uma, pelo arrastamento da luz; outra, pelo clarão que incide no rosto. Gostava que falasse da presença do branco nesta série.

JM: Não está, de facto, presente do mesmo modo que no Pinocchio. Pode haver luzes extremas nos rostos aí mostrados, mas são modos de iluminação, não são modos de ‘morte’. São modos de alteração e de modificação. O espaço é o meu espaço escuro do costume, mas, como creio atrás ter referido, a luz só é visível no escuro! É algo de que me lembro sempre que falo de luz: a  conhecida ideia de que um raio de luz só é visível num espaço mergulhado na escuridão [San Juan de la Cruz]. E luz vem sempre a propósito quando se quer fazer transformações.

CR: Nas vinte e duas fotografias, em cada um dos rostos, os olhos fixam-se a nós, espectadores, de maneiras diferentes. Houve uma preparação, ou encenação, para a construção dos personagens fotografados?

JM: Há naturalmente um exercício de preparação. Os olhos estão já lá a olhar para nós. Há, então, que reforçar a sua intensidade, aumentando ou atenuando a sua força, a sua forma, a sua opacidade ou a sua limpidez.

CR: Quem é o personagem número 11 da fotografia Grandes Planos?

JM: É um ser intermédio entre um, que sou eu, e um todo indistinto; como esse estranho personagem que atravessa os tempos e de que fala Gil Vicente, Hugo von Hofmannsthal, James Joyce e tantos outros: “o todo o mundo e ninguém, o Jedermann, o here comes everybody…”

É feito de aproximações e de distanciamentos, não ocupa um lugar parado e estável.

É sempre movimento.

A 11, por acaso, está mais para cá do que para lá. Touché!

 

 

Jorge Molder

Galeria Miguel Nabinho

 

Cristina Robalo vive e trabalha em Lisboa. Artista, doutorada em Arte Contemporânea pelo Colégio das Artes da Universidade de Coimbra
(2021-2011), mestre em Filosofia, na área de Estética pela Universidade Nova de Lisboa (2010-2008), frequentou o Plano de Estudos Completo em Desenho e o Curso Avançado de Artes Plásticas pelo Ar.Co, Lisboa (2000/1994). Em 2019 iniciou o projecto editorial, “Conversa em
torno do desenho com Cristina Robalo”, em parceria com a Sistema Solar/Documenta. 

 




Imagens: © Jorge Molder. Cortesia do artista. The Sense of the Sleight-of-Hand Man (triptíco), 1994; The Secret Agent, 1990; Pinocchio, 2006-2009; O Pequeno Mundo, 2001; Não tem que me contar seja o que for, 2006; Grandes Planos, 2023. 


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