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Carta a um amigo

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Eduarda Neves

 

 

O silêncio e as coisas

  

Há alguns meses que não te escrevo, querido amigo. Uma estadia em Paris atrasou a nossa habitual troca de correspondência. Encontro-me a dois passos do 35, Boulevard des Capucines. Constato que o edifício no qual Nadar abriu a porta do seu estúdio a mais de uma centena de artistas independentes é, actualmente, administrado por um grupo económico que anuncia operar em contexto que promova uma inclusiva, fluída, maior e simples área urbana. Recordo o Salon de 1863 e noto que à minha volta, no campo da arte, os Refusés aspiram cada vez mais à arte do goût officiel, apesar da intensa mobilização social dos franceses contra a reforma das pensões. Os manifestantes, incluindo os jovens, não se deixam persuadir pelos argumentos governamentais. A avant-garde, tornada démodé, projecta-se na forma da oposição cívica. A actualidade mostra-nos que, ao longo da sua história, alguns artistas e o território da arte, apesar de 1884 e da célebre divisa “sem júri nem recompensas“, só com muita dificuldade, e apenas em determinados momentos, conseguiu sobreviver ao poder agonizante da clientela. É esta a natureza das coisas, diria Lucrécio. 

Querido amigo, há já algum tempo que não visitava o museu do Louvre. “Nem aparência nem ilusão “ —  citação de Nietzsche — é o título de uma antiga instalação de Kosuth (2009) apresentada ao longo das paredes do Louvre medieval. Através de quinze frases distribuídas espacialmente em néons suspensos, que cruzam a história, a arte, a arqueologia e a experiência do espectador, o artista ilumina a relação entre as palavras e as coisas. Um dos enunciados declara que “pedras e palavras juntam-se para produzir uma parede e um texto”. A filosofia e a arte estiveram sempre próximas de acabar; porém, o fim é o que não podemos dar como seguro já que o encontraremos sempre num outro lugar, como uma passagem em vias de se constituir nos interstícios do que ainda não sabemos responder. 

A vida em todo o lado — LES CHOSES. Une histoire de la nature morte. O pensamento da finitude. Diria, como Michel Foucault, que é nesse espaço que pensamos. Querido amigo, esta exposição, igualmente no Louvre, entre limões, espargos, nabos, flores, moedas, fruta, animais, seres marinhos e múltiplos objectos do quotidiano que configuram o nosso espaço simbólico, produz algum encantamento e convoca-nos para uma certa poética difusa do anti-monumento. O objecto — o que nos afecta, o que nos perturba. Leio no catálogo que o óleo sobre tela que Anne Vallayer-Coster[1]aqui apresenta, foi exposto publicamente no Louvre para o Salão de 1771, quando ainda era uma jovem artista acabada de integrar a Academia real de pintura e escultura, assim se juntando ao escasso grupo de mulheres que  a consagrada instituição admitia. Poderia sublinhar o  carácter inovador desta e de outras obras de artistas aqui apresentadas, como Clara Peeters ou Louise Moillon; todavia, é o facto de esta exposição não ser imprevisível no que diz respeito a nela podermos confirmar que não foi o distanciamento da representação de temas nobres ou permitidos apenas a homens, e até mesmo a não pertença a classes privilegiadas que, historicamente, constituíram factores de exclusão das mulheres do território da arte. É talvez a importância do “direito de dizer”, “totalmente ignorado pelas mulheres” — como assertivamente escreveu Marguerite Duras — que, tantos séculos depois, continuamos a reivindicar. É a mulher que, paradigmaticamente, a natureza morta nos dá a ver como resto. Um fora de campo da imagem. Entre duas pinturas, o fragmento de um texto de Santa Teresa dʼÁvila: “coragem, minhas filhas, não desespereis (...). Mesmo na cozinha, deveis compreender que até entre as panelas anda o Senhor.” Das representações do mundo às coisas que as povoam, é todo um agregado de circunstâncias que se desdobra em leis e taxinomias do íntimo e da ordem. As casas e as mulheres. Ali se faz a nossa história. Nunca de lá saímos. Talvez encontremos beleza nesse lugar primeiro, no qual começamos a experimentar o amor e a violência, o tempo e o medo, o dia e a noite, o riso e o imprevisível, a liberdade e a troca. Foi ainda Duras quem disse que “o homem está ocupado com um trabalho, uma profissão, tem uma responsabilidade que não abandona nunca, que faz com que ele não saiba nada das mulheres, nada da liberdade das mulheres. Muito cedo na história, o homem deixa de ter liberdade.” Em França, está anunciada, para 8 de Março, uma greve feminista contra a alteração da idade das reformas. Leio nos cartazes que não se trata apenas das mulheres mas de todas as vidas. É isso o feminismo. Querido amigo, ainda acredito que a vida pode ser uma obra de arte.

Regressada a Portugal. Ainda não te falei sobre a minha última visita ao estabelecimento prisional de Custóias e as imensas plantas trepadeiras que um artista pintou ao longo do muro de um jardim. Como no filme de Werner Herzog, Heart of Glass, aqueles presos pareciam estar hipnotizados. Por momentos, imaginei-os a ocupar o lugar das plantas e a saltar o muro. Reterritorializar a pegada geológica e as alterações climáticas. As marcas sabe-se lá de onde vêm. Não há prática artística que evoque o antropoceno e o capitaloceno capaz de dar conta desta melancolia, da violência da imagem que nos chega, capturada naquele interior. Altos voos para corajosas fugas, mesmo quando “o coração é lento a acreditar”, afirma Bobin. É sempre provável encontrarmos as vozes do silêncio num qualquer outro museu imaginário.

Ao fim do dia, neste país que não é o teu, dizem-me que uma mulher engravidou através do processo da inseminação pós-morte. Sémen criopreservado do  marido já falecido. Demasiado tempo de espera. “O que amamos nós naqueles que amamos?” pergunta Christian Bobin. Israel foi mais veloz a atacar alvos na Síria depois de este país ser atingido por um sismo.  Aferidos os mortos. O rigor da contabilidade. As casas e as pessoas. As coisas. A moral petrificada assegura o abalo.  A arte recolhe-se com a  certeza de que a vida não dura mais que o tempo de um abandono. Continuará à espera, desconhecendo o que nos salva. 

Enquanto atravesso a rua é noticiado que uma mulher partiu acidentalmente uma escultura de Jeff Koons avaliada em quarenta e dois mil dólares. Um Balloon Dog, azul. A feira de arte ficou em choque mas foi imediatamente garantido que o objecto de arte tinha um seguro e dado como certo que o cão não morreu de causas naturais. Na madrugada de vinte e seis de Fevereiro mais um naufrágio na costa italiana. Como um empirista que repete a experiência, o Mediterrâneo tornou-se a aventura da morte. A continuidade assegura a realidade. Os artistas talvez prefiram esconder-se da história. A impotência é uma mágoa  lenta que se dispersa com a passagem do tempo.

Começou a ARCO Madrid. Talksmeetingszoomsinvitationsspeakers. Múltiplos nomes para o negócio. O sistema da arte tem cor — energia verde e economia azul. A feira. Não saímos disto, de um punhado de aparências que nos rondam. Cada vez mais festivas, cada vez mais infiéis. A promessa de muitas obras por fazer. A folie sem paixão afunda-se, tal é  o que acontece a toda a arte doente. 

Percorro o cemitério. O caminho é longo. É habitual nas conversas que por aqui tenho com o meu pai aprender mais uma lição sobre o silêncio. Observo que uma mulher coloca duas tulipas no jazigo do marido. Pergunto-lhe a idade. 83 anos. Hoje é o dia dos namorados, responde. Sempre as palavras e as coisas, como no livro do filósofo. Les chosesStill life. A imobilidade e a vida tranquila. O silêncio.

Querido amigo, quando receberes esta carta estarei em Barcelona. Acompanhada, certamente, por um colectivo de artistas. Chamo-lhes artistas “menores” — no grandioso sentido deleuziano. Estarei feliz.

 

Impression, soleil levant

 

 

Eduarda Neves. Professora, ensaísta e curadora independente. A sua actividade de investigação e de curadoria articula os domínios da arte, filosofia e política.

 

A autora escreve segundo o anterior acordo ortográfico.

 

 

 


Nota:

[1] Anne Vallayer-Coster (Paris, 1744 — Paris, 1818), Panaches de mer, lithopytes et coquilles, óleo sobre tela, 130 x 97cm, 1769.

 

Imagem: Anne Vallayer-Coster (1744-1818), Still Life with Mackerel, 1787. Kimbell Art Museum.

 

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