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José Pedro Croft: Caminhos Cruzados

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Sérgio Fazenda Rodrigues

Por ocasião do 15º aniversário do Museu de Arte Contemporânea de Elvas, José Pedro Croft apresenta uma exposição individual que integra, aproximadamente, 60 obras pertencentes à colecção António Cachola.

Caminhos Cruzados exibe uma criteriosa selecção de esculturas, desenhos/pinturas e gravuras, articuladas com as diferentes salas do edifício, deixando transparecer o percurso do artista e a longa e duradoura relação que este, ao longo de 25 anos, tem estabelecido com o coleccionador. Em boa verdade, podemos falar numa relação de cumplicidade que é perceptível na origem de algumas obras apresentadas, concebidas especificamente para o local, e na curadoria da exposição, que surge de uma reflexão conjunta, partilhada por ambos.

A exposição inicia-se no piso térreo, apresentando um grupo de gravuras que perscruta uma ideia de densidade, trabalhando a percepção do observador e a sugestão de algo que reside para lá da superfície. Ora num registo monocromático, ora na articulação de duas cores, as gravuras reportam-se a uma lógica de sobreposição e desvanecimento, criando uma camada tendencialmente homogénea e a inscrição de pequenos movimentos que apontam a escala da mão. Deste modo, num campo abstracto e em potência, mas numa acção que referência e mensura a composição, as obras problematizam múltiplas dimensões da imagem, e a forma de a olhar. 

Ao longo do seu trabalho, Croft tem vindo a explorar as relações entre a presença e a ausência, a clareza e a ilusão, a transparência e o reflexo, em estreita ligação com o corpo e o espaço.

Cruzando modos bidimensionais e tridimensionais, atentos à natureza do material (ao corpo da obra), ao local de intervenção (à arquitectura e à paisagem), e ao envolvimento do observador (à atenção e à curiosidade), o seu fazer indaga a dicotomia que as ideias de negativo, duplo ou espelho instauram. Uma dicotomia que não sendo tácita ou maniqueísta, espraia o limite das coisas, ensaiando lugares de complementaridade e transição.

 

 

Quando nos deparamos com as esculturas mais antigas, que também ocupam o piso térreo, percebemos a ideia de um uso que é rapidamente negado. Numa esfera poética, aquilo que questiona o visível funda-se na proximidade dos elementos reconhecidos (um banco e duas cadeiras), e na distância de uma função impossibilitada. De igual modo, na sala seguinte, encontramos uma escultura mais recente em que o artista intervém num elemento preexistente, cruzando-o com outros de natureza contraditória e complementar. Aqui, José Pedro Croft assume a cor, a temperatura, o desenho e o tempo de uma antiga mesa de madeira, mas insere um espelho no seu interior, captando o reflexo do entorno para produzir uma dimensão especulativa. A inclinação que a base introduz ajusta a altura da visão, transporta o observador para dentro da obra (ou o exterior para o interior) e projecta para fora, o que antes estava encerrado. Simultaneamente, aquilo que se eleva revela-nos o que está abaixo (o miolo da escultura, e o pavimento onde o todo assenta) e a ideia de passagem ocorre no horizonte do nosso olhar, mas também na vertical do espaço que a obra manipula.

Reaparecendo ao longo da exposição, as gravuras relacionam-se com as outras obras expostas e com o espaço em que surgem, criando uma teia de referências que alterna a escala e consolida o conjunto. Desse modo, elas variam entre a grande dimensão das peças individuais, que celebram os acessos (as escadas e a entrada da exposição) e pontuam os topos de ambos os pisos, e a pequena e média dimensão das séries que, obedecendo a uma publicação ou a uma grelha, ocupam a antiga capela e as salas principais do andar superior.

As gravuras que surgem na escada retornam a um registo monocromático, próximo do azul que caracteriza os azulejos da capela anexa, induzindo um percurso que nos encaminha ao dito espaço. Se na escada existe uma visão afastada, ditada pela colocação das obras no alto, na capela cria-se um olhar de proximidade, dispondo as obras ao baixo, dentro de três mesas que o artista desenhou. Nelas, várias páginas de Os trabalhos de Persiles e Segismunda, de Miguel de Cervantes, surgem acompanhadas de outras gravuras que Croft concebeu para acompanhar a tradução portuguesa deste livro.

Esta ala é encerrada por uma pequena sala onde se exibe uma pintura sobre papel, em que, à semelhança do anterior livro, assistimos a um conjunto de planos que se juntam para formar um bloco. É desta imagem em diante que, na exposição, o tema da desconstrução ou do desmontar da caixa, reconhecida pelos seus planos, mas também pela sua estrutura linear, assume preponderância.

Nas restantes salas deparamo-nos com um equilíbrio entre armações e superfícies que, apesar de fixas, actuam numa dimensão cinemática. Abrindo e fechando perspectivas, duplicando vistas e tridimensionalizando linhas de contorno, estas obras escondem e mostram numerosas presenças do observador, enfatizando a desmultiplicação do tempo e do espaço. Contrariamente ao piso inferior, onde as esculturas ganham expressão com a densidade do material (pelo uso da madeira ou do gesso), falamos aqui de dispositivos lineares que abstratizam a superfície e geram uma extrapolação espacial. Algo que, desenhado pela orla metálica da moldura, pela face do espelho, do vidro, e também pela sua ausência, transporta a imagem para fora do limite, questionando o seu entendimento cartesiano. Assim, privilegiando o modo como (se) dão a ver, as esculturas começam e terminam para lá do seu corpo físico, assumindo-se como construções que engendram momentos de passagem.

Na sala maior encontramos uma obra que foi desenvolvida especificamente para aquele espaço, ocupando os seus quatro cantos, de forma a marcar os pontos que o limitam e o nomeiam. As partes dialogam entre si, reagindo à perspectiva horizontal da entrada e ao atravessamento da sala, mas também à sala seguinte, espelhando(-se) (n)a obra que ocupa esse compartimento, e à própria rua, reflectindo a sua imagem no interior. Esta obra dialoga ainda com as gravuras que, dispostas em grupo, exploram igualmente a sobreposição de diferentes camadas e o modo como estas transformam a percepção de um volume. Dir-se-ia que, de modo cruzado, a experiência das obras acontece com a fugacidade do olhar ou com a natureza transitória do que vemos, e que, se na bidimensionalidade do papel indagamos a legibilidade de espaço tridimensional, na tridimensionalidade das esculturas exploramos a planificação ilusória do espaço.

Croft apresenta-nos ainda uma outra escultura, de grande dimensão, que volta a adoptar os mesmos elementos para, desta vez, ocupar o centro da sala adjacente. Concertando perfis metálicos, vidros e espelhos, a obra desdobra o espaço e, verticalmente, complementa a experiência da escultura anterior. Na mesma sala encontramos ainda um outro trabalho que, empregando barrotes de madeira, vidros e espelhos, extrema a verticalidade previamente anunciada, levando o observador à proximidade de um vórtice. A sequência destas salas engendra uma deslocação do olhar, pondo em diálogo tempos e materialidades distintas; o tempo relativo à concepção da primeira obra, feita para a inauguração do museu e o tempo da sua revisão, na obra nova que é agora apresentada; a materialidade abstracta dos perfis metálicos, pintados, próximos da linha tridimensionalizada de um desenho, e o lado concreto da densidade da madeira que estrutura e delineia a terceira obra, estabelecendo uma ponte com a que se apresenta no piso de entrada.

A exposição apresenta ainda uma última escultura que induz uma torção ao longo de um eixo longilíneo, manipulando o movimento e a tensão associada à possível queda de duas vidraças (que se travam com pequenos pontos de apoio). Dir-se-ia que, quando as peças adoptam uma leitura diagonal, seja pelo movimento encenado das partes, pelo calço que lhes é inserido, pelo ângulo que adoptam, ou por qualquer outra via, dramatiza-se uma leitura que amplia a escala do acontecimento e a visão do observador.

Ao não seguir uma ordem cronológica e ao diversificar a escala, e a natureza das obras apresentadas, a exposição mostra-nos, inteligentemente, a abrangência do trabalho de Croft. Uma abrangência que, explorando a tensão entre a materialidade e a imagética, abre um campo de investigação onde se cruzam os caminhos do artista, das obras, do local e dos visitantes.

 

 

José Pedro Croft: Caminhos Cruzados. Vistas de exposição, 05 de fevereiro — 03 de julho 2022. Fotografia: Bruno Lança. Cortesia do MACE, Museu de Arte Contemporânea de Elvas.

 

 

 

 

 

José Pedro Croft

 

 

MACE — Museu de Arte Contemporânea de Elvas

 

 

 

Outros artigos sobre o artista:

 

José Pedro Croft: Campo/Contracampo

— José Pedro Croft - Conversa a dois: entre dois desenhos e duas esculturas

Medida Incerta

 

 

 


 

 

 

Sérgio Fazenda Rodrigues é Arquitecto e Mestre em Arquitectura (Construção), foi doutorando em Belas Artes e é doutorando em Arquitectura, onde investiga as relações espaciais entre Arquitectura e Museologia. Faz curadoria de arquitectura e artes visuais e integrou a direcção da secção portuguesa A.I.C.A. Desenvolveu, com João Silvério e Nuno Sousa Vieira, o projecto editorial Palenque. Foi consultor cultural do Governo Regional dos Açores, tendo a seu cargo, nesse período, a construção da colecção de arte contemporânea do Arquipélago: C.A.C.

 

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

 

 

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