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Tony Conrad: Maior do que a Arte

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José Marmeleira

 

O sobressalto metafísico de

Tony Conrad

 

 

Na Culturgest de Lisboa, o título da exposição Tony Conrad pode ser lido em dois momentos. O primeiro diz-nos que se trata de uma exposição de um artista, o que, desde logo, sugere a presença de uma componente [auto]biográfica. O segundo é menos genérico, identifica uma figura seminal da arte feita nos Estados Unidos na segunda metade do século XX; da arte — e já agora — da música.

Se estes dois momentos se confundem ao longo da retrospetiva — trata-se da primeira exposição individual de Tony Conrad em Portugal, com a curadoria de Balthazar Lovay — é o segundo que se melhor recorta.

Composta de mais de uma dezena de trabalhos, esta é uma exposição que vem de um passado que se tornou — sob as perceções e os juízos contemporâneos — longínquo. Embora as peças mais recentes sejam de 2016, grande parte das instalações do artista, que deu o nome aos The Velvet Underground, parecem existir noutra época. Talvez seja precipitado fazer análise comparativas, mas ouse-se um pouco. Para começar dir-se-ia que se pressente menos formalidade ou rigidez — não menos rigor — na disposição dos objetos [em especial no chão, mas também nas paredes], que se descobre um humor que se tornou ausente [o da paródia despretensiosa e, no entanto, fina] e que há uma relação quase espontânea com o quotidiano mais mundano. Acrescenta-se ainda a presença de outros artistas que não o próprio Conrad: Tony Oursler e Mike Kelley, representantes de uma sensibilidade artística ao grotesco, à cultura trash e à disfuncionalidade social. Em certo sentido, há algo na exposição que a permite tornar num arquivo: um arquivo de práticas, de diálogos, de tomadas de posição, de cruzamentos, de imagens, ou até de um país — os Estados Unidos — em termos culturais e políticos.

A peça que se encontra no vestíbulo da Culturgest, entre as galerias, é emblemática dessa condição. Trata-se de Studio of the streets [1991-93/2012] e resultou da atividade do Squeaky Wheel Film & Media, comunidade da qual Conrad foi co-fundador.  Crítico insistente das condições e dos efeitos dos mass media nos EUA — e das suas repercussões no campo da arte — o artista realizou, semanalmente, em frente da Câmara Municipal da Cidade de Buffalo [Nova Iorque] um programa onde escutava as preocupações e os anseios dos habitantes da cidade. Sem pretensões científicas ou jornalísticas, levou a televisão para a rua — uma televisão amadora e utópica — a fim de disseminar as suas imagens por canais alternativos. Num pequeno ecrã, vemos pessoas que falam numa rua que se encontra em obras, enquanto no espaço físico da exposição repousam um carrinho de mão, cones de sinalização, barreiras, uma fita, entre outros objectos. Reconstituem a situação original e, se não fossem a vozes dos entrevistados, podiam desaparecer no edifício da Culturgest, como se lhes pertencesse.

A pergunta que nos é deixada, sem ser formulada, pode ser, então, a seguinte: — o que pode a arte, quando nas mãos dos artistas, fazer à vida dos cidadãos?

 

Será precisamente na ausência de uma resposta que Tony Conrad se coloca, construíndo aí um intervalo, entre a crítica e o uso dos mass media, a cultura popular e as vanguardas, a arte e a vida, a imagem e o som. Um lugar e um tempo são importantes a fim de situar esse intervalo: Nova Iorque, anos 60. Nesta cidade e nesta década, empurradas pelos artistas, as esferas das artes visuais e das músicas sobrepuseram-se, cruzaram-se.

Tony Conrad foi, a vários títulos, um protagonista incontornável dessa história. Membro do grupo The Theatre of Eternal Music ou Dream Syndicate com La Monte Yoyng e Marian Zazeela, explorou o efeito de notas longas e estendidas no tempo, o ritmo como base de formas métricas repetitivas, o som sem princípio ou fim, clímax ou antecipação. Estando ali, apenasUm entendimento da música que se manifesta na presença do drone de Four Violins, composição de 1964. Contínuo, proporciona uma experiência meditativa da natureza física do som que, por si só, não chega a ser total e efetiva. A memória é ardilosa: a qualquer momento, imaginamos a entrada de um acorde de um tema do álbum White Light/White Heat dos The Velvet Undergound — enfatize-se a influência artística e musical de Conrad na história da banda de Lou Reed. Por outro lado, a presença, na mesma sala, de trabalhos em papel solicita que suspendamos a presença do som. É agora uma experiência intelectual da visão aquela que nos é pedida. Esses trabalhos refletem sobre modos de produção e composição musical, questionando a ontologia tradicional da obra musical e demostrando uma curiosidade pelas possibilidades que a tecnologias trazem às formas de fazer.

 

 

 

Tony Conrad repousa indecisivamente, ainda que confrontável, numa tensão. O desejo de desmontar criticamente convenções e conceitos anda a par de curiosidade pela invenção. Uma posição crítica de observação e análise — a raiar a iconoclastia — convive com o prazer de fabricar coisas novas ou que antes não existam. A sala que reúne os instrumentos musicais criados pelo artista advém dessa tensão, como também os seus Yellow Movies produzidos em 1972 e 1973 que se poderiam descrever da seguinte forma: filmes sem imagens em movimento. Assinalando o interesse de Tony Conrad pela duração, consistem em telas que replicam as proporções e as qualidades tácteis dos ecrãs do cinema. Preenchidas por tinta de esmalte barata, as superfícies não recebem a luz da máquina, apenas a passagem do tempo. Não é cinema o que aqui vê — embora a sua memória não esteja distante — mas filmes puramente visuais [e materiais]. A interrogação crítica e continuada do aparato cinematográfico — e a ilusão que ele produz — culmina nas peças Roast Kalvar e Deep Fried, formando uma contracampo orgânico, háptico e material do próprio cinema, e talvez mais do que o cinema, da máquina de produção e reprodução de imagens que esteve [e está] no coração da cultura dos Estados Unidos.

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Foram as estratégias da arte — moderna e pós-moderna — que serviram a Tony Conrad para construir uma crítica que não é apenas visual e conceptual; é igualmente, estética. Interessa-lhe, na sequência, do que havia feito com o som e a música, proporcionar ao espectador — em cuja autonomia confiava — outras formas, outras imagens, outros espaços. Eis o que espectador pode encontrar em Yellow TV [1977] ou nas séries sem título produzidos com cantos [de papel] para fotografia [do mesmo ano]. Numa e noutras persiste a mesma obstinação em colocar em causa convenções, representações, sentidos, imagens e memórias.

 


 

Volvidas décadas, é legítimo perguntar se estes trabalhos não terão perdido a irreverência e se, afinal, não encontramos outra coisa no lugar dessa irreverência: os efeitos da passagem do tempo sobre práticas, experiências e propostas artísticas. Com efeito, estes trabalhos — sem prejuízo das suas qualidades poéticas e do humor que as anima — permitem à comunidade artística confrontar-se com as dialéticas da própria arte contemporânea, e observar, numa espécie de retrovisor — num jogo irónico, cândido e plácido — um pouco do que foi a segunda metade do século XX.

Uma certa dureza assombra os trabalhos seguintes: duas instalações que ocupam a totalidade das salas e a série Underwear [2009]. O tom paródico, agora hesitante, dá lugar a um desconforto que coloca o visitante num lugar indefinido. Panopticon é uma instalação sobrecarregada visualmente, no limiar da ilustração, enquanto Wip beneficia da projeção do vídeo Jail Jail [com Mike Kelly e Tony Oursler] para representar a manifestação material e opressiva de uma violência: a da prisão. Ao reproduzi-la numa instalação e no espaço, é a história de um país, mais do que da arte, que o artista intima e sem condescendência.

 

 

Tony Conrad despede-se com a obra mais humana, mais despida. Em quadros de cortiça, o artista pendurou diversas peças de roupa interior que nos obrigam levantar os olhos e a cabeça. Metade das paredes estão cobertas de azulejo branco semelhante aos que vemos num hospital ou num consultório das urgências. Regressa a reflexão sobre a duração e o tempo, o gosto pelo uso de materiais impróprios, originários da vida mais chã, mas introduz-se algo que está para lá da mera experiência artística: um sobressalto metafísico.

 

CULTURGEST

 

 

 

José Marmeleira é Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação (ISCTE), é bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) e doutorando no Programa Doutoral em Filosofia da Ciência, Tecnologia, Arte e Sociedade da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, no âmbito do qual prepara uma dissertação em torno do pensar que Hannah Arendt consagrou à arte e à cultura. Desenvolve, também, a actividade de jornalista e crítico cultural independente em várias publicações (Ípsilon, suplemento do jornal PúblicoContemporânea Ler).

 

 

 

 

Tony Conrad: Maior do que a Arte. Vistas de exposição, 12 de Março — 03 Julho 2022. Fotografia: António Jorge Silva, Renato Cruz Santos. Cortesia da Culturgest, Lisboa.

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