9 / 20

Hugo Canoilas: Moldada na escuridão

DSC_3244.jpg
Susana Ventura

A incessante experimentação

Moldada na escuridão, exposição do artista Hugo Canoilas, com curadoria de Rita Fabiana, na galeria de exposições temporárias do Museu Calouste Gulbenkian, pode ser considerada parte de um conjunto mais vasto de obras, reunindo mais duas exposições do artista — Pólipos cnidários reparados pelo olhar do observador, na Galeria Contemporânea do Museu de Serralves, e On the extremes of good and evil, no Museum Moderner Kunst Stiftung Ludwig Wien (mumok), ambas inauguradas em 2020 —, dois catálogos — On the extremes of good and evil (Wien: Verlag der Buchhandlung Walther und Franz König, 2020) e Moldada na escuridão/Sculptured in Darkness (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2022) — e um encontro — Treffen in Guincho (Encontro no Guincho) — que se desdobram em séries e linhas de estilo, que se abrem, expandem e interligam em variações infinitas, activando, resignificando, construindo novas hipóteses e mundos possíveis.

Este grau de abertura infinita comprova a imensa plasticidade da obra e do acto artístico, como sendo ele próprio criador infinito, que impulsionado pela variedade e variação intensivas do mundo e dos seus impulsos e estímulos, lhes responde com as suas forças criadoras incomensuráveis, expressão da sua irredutível capacidade de criação heterogénea de Outros. O outro em Canoilas corresponde sempre a um desdobramento duplo: do artista nos outros (e os outros no artista), congregando um fazer colectivo e colaborativo, e o outro que é o desconhecido ou o insondável, conduzindo o artista para territórios indefinidos, auscultados, como uma sonda perscruta o fundo do oceano que o artista evoca, através de uma experimentação incessante (aquela que está na origem das linhas de estilo).

Na exposição On the extremes of good and evil, o chão do espaço expositivo encontrava-se, totalmente, forrado com um feltro grosso de azul forte pintado e salpicado, de onde em onde, com manchas informes coloridas, como fluxos ou torrentes de uma matéria indeterminada, dos quais brotavam criaturas imaginadas de corpos vítreos fluidos, vibrantes sob a luz do espaço e das paredes brancas que o envolviam, quebradas por uma mancha sinuosa (qual linha gótica abstracta) que, unida ao feltro do chão, libertava os limites rectos das paredes (e as próprias paredes), remetendo, novamente, para essa matéria indeterminada animada que alastrava o olhar para, depois, o presentear com as visões assombrosas das suas criaturas. O chão, sempre esse chão expressão de um colectivo (sendo, nesta exposição, igualmente, palco para a performance Becoming Dog, de Elise Lammer e Julie Monot) e um chão que não é uma superfície plana, mas contém uma profundidade oculta, acessível unicamente por um corpo que se faz pleno pela contemplação da obra (contemplação, no sentido de Plotino, em que nos transformamos nas qualidades expressivas do que contraímos), quando esta não existe mais sob o nível do olhar do homo erectus, mas de um olhar que exige do corpo uma flexibilidade e uma plasticidade do pensamento (apropriando-nos da máxima de Beuys), que, induzindo novos gestos e movimentos ao corpo, acciona novas formas de pensar a relação corpo-mundo. Que corpo e que mundo serão estes? Poderemos pensar, por ora, que permanecemos num plano estético, que pressupõe o fazer artístico, a obra e a sua fruição. A obra contemporânea nasceu nesse preciso momento em que estes — o fazer, a obra, a contemplação/recepção — se baralharam, desfazendo as categorias, ao mesmo tempo que se enxertavam neles fragmentos de preocupações políticas, sociais, económicas, entre outras, que passaram de circunstâncias, que poderiam afectar, por exemplo, a produção da obra, a elementos compositivos, aparecendo metamorfoseados, transfigurados, exacerbados, elevados a limites insuportáveis para transformar qualquer vida que se tivesse como serena. Será importante retermos esta passagem para recuperarmos, mais adiante, algumas questões que as diferentes obras de Canoilas têm gerado.

 

O catálogo de On the extremes of good and evil não replica a exposição num meio de representação distinto, constituindo-se, antes, como um outro da exposição, permitindo um desdobramento das obras. As peças assumem outras hipóteses, como por exemplo, uma certa domesticidade, uma proximidade a fenómenos e seres naturais, ou, então, metamorfoseando-se face ao ambiente que as rodeiam (ou seremos nós a encontrar nelas metamorfoses de nós próprios?). Sem dúvida, a obra resultante desloca-nos do lugar da exposição (existindo nesta também essa tentativa, quando, por exemplo, o artista procura desfazer a ordem imposta pela arquitectura do espaço) e coloca-nos em mundos paralelos e coexistentes. Encontramos uma ideia semelhante no catálogo de Moldada na escuridão/Sculptured in Darkness em que as obras, fotografadas por Daniel Malhão, se transformam em outras delas próprias ao habitarem o jardim da Fundação Calouste Gulbenkian. Sob a luz vibrante filtrada pelos ramos e as folhas do jardim a renascer, as obras alteram-se, mimetizando, por vezes, o meio envolvente: camuflam-se, dissolvem-se na água do lago, trepam às árvores, como criaturas vivas. Quando as encontramos na exposição, desconhecendo a ordem das coisas, inevitavelmente, viajamos no tempo.

Na exposição Pólipos cnidários reparados pelo olhar do observador (em termos cronológicos, a segunda exposição), permanecíamos no plano do chão e assistíamos a transformações mais subtis. Ao olhar, era exigido o tempo da atenção minuciosa. A arquitectura da sala era, igualmente, desafiada: a mesa invertida de Álvaro Siza (cuja função original é a de iluminar, indirectamente, o espaço) desaparecia enquanto forma impositiva, abstraindo-se da figura, apenas, a luz que se disseminava pelo espaço em partículas suaves de cor. A pintura de Canoilas (revestindo a outrora mesa invertida) marcava a necessidade absoluta de evasão de todas as estruturas que impõem um limite ao nosso conhecimento e anulam essa capacidade intrínseca a todos os seres de serem outros. O mesmo gesto definia a pintura iluminada que circunscrevia o outrora rodapé da sala. A luz, que atravessava a pintura do tecto e a pintura-rodapé, criava uma massa atmosférica colorida, destruindo as duas dimensões hegemónicas (a vertical e a horizontal), em que, por momentos, habitávamos o mundo criado pelo artista e não mais uma sala de exposições. Esta mudança (que na exposição em Serralves era mais exigente, no que diz respeito à disponibilidade do observador, do que na exposição Moldada na escuridão, em que a atmosfera háptica criada é mais intensa, ou, por outras palavras, as transformações eram mais subtis, podendo escapar a observadores mais apressados e distraídos, enquanto, na actual exposição, essa transformação impõe-se, mal se transpõe o limiar da exposição) é absolutamente necessária para se criarem relações de proximidade e empatia com as criaturas vítreas que habitam o espaço. O encontro nunca é mudo, mesmo que permaneçamos no domínio da representação e da figuração (embora acreditemos que não seja este o lugar destas criaturas, pois estas contêm em si, nas suas formas e cores, muito do caos das forças puras aprisionadas e do acaso do seu próprio processo de formação e cristalização), porque as forças do presente, que ameaçam o mundo aquífero, as águas profundas, agitam já há muito a superfície e as areias, já não tão extensas, onde pólipos cnidários acabam por morrer. Vestígios dos processos ocidentais de controlo, colonização, extracção, exploração exaustiva de recursos naturais, destruição massiva dos solos, dos subsolos, das águas, contaminação, entre tantas outras acções violentas continuadas sobre a Natureza. Necessariamente, o tempo passado entre estas criaturas — esse exigido à sensibilidade —permite elevar o diálogo criado. O olhar, como o artista prenunciava, seria reparado, com uma inversão ao próprio título: seremos nós, criaturas humanas, a necessitar de reparação.

«On the whole, it was not the crudest, the simplest, the most animalistic and primitive aspects of the human species that were reflected in the natural phenomena. It was, rather, the more complex, the aesthetic, the intricate, and the elegant aspects of people that reflected nature. It was not my greed, my purposiveness, my so-called “animal”, so-called “instincts”, and so forth that I was recognizing on the other side of that mirror, over there in “nature”. Rather, I was seeing there the roots of human symmetry, beauty and ugliness, aesthetics, the human being’s very aliveness and little bit of wisdom. His wisdom, his bodily grace, and even his habit of making beautiful objects are just as “animal” as his cruelty. After all, the very word “animal” means “endowed with mind of spirit [animus]”.»   

George Bateson, Mind and Nature

 

A exposição Moldada na escuridão pode ser entendida (mas não nos iludamos, porque a experimentação de Canoilas continuará) como o culminar desta investigação do artista, incorporando fragmentos e obras das exposições precedentes, que reaparecem num contexto distinto, mas sobretudo informadas pelas acções e experiências que o artista empreendeu entre exposições: o catálogo de On the extremes of good and evil, como já referido, e um conjunto de experiências, quase iniciáticas, prévias à exposição de Serralves, em que o artista leva as suas obras para a beira-mar, num gesto que certamente lhe terá permitido compreender a animalidade a que Bateson se refere: o espírito que estas obras contêm e nos faz reconhecer que a nossa animalidade não é o espelho da crueldade e da bestialidade, mas expressão viva do animus em nós… Denotamos, ainda, vestígios desta acção de Canoilas no Encontro no Guincho, em que um colectivo de artistas[1] criou uma obra conjunta, envolvendo diferentes acções performativas, escultura, vídeo, poesia, terminando no momento em que:

 

«Uma pequena e viscosa criatura de quatro tentáculos é entregue ao mar. O corpo da criatura forma um rosto ou uma vulva e tudo o resto entre uma e outra consideração. Trata-se de um ser desconhecido, vivo ou não-vivo? Estava vivo, ou vai estar vivo quando o devolvermos ao mar? Com um sentido de pertença e o respeito que não nos permite medir a sua vida ou inteligência pelas características humanas, será devolvido ao oceano — a mãe de todas as formas de vida, conhecidas e desconhecidas. Uma criatura desconhecida como esta deve ter aparecido à noite para ver a lua. Veio do oceano profundo, o lugar escuro e do desconhecido. É provavelmente fotoluminescente e constituída de uma elevada percentagem de água, que lhe permite desaparecer na cadeia alimentar. Provavelmente os seus tentáculos e superfície exterior funcionam como um cérebro, e a sua hipersensibilidade permite-lhe compreender o mundo como uno». 

Treffen in Guincho

 

Existem, igualmente, neste encontro e, sobretudo, na criação de uma história em torno desta criatura fotoluminescente de matéria orgânica, que se fundirá nas correntes, ecos da influência de Donna J. Haraway, para quem o storytelling é uma operação que permite abraçar a complexidade dos problemas que caracterizam o nosso presente. Não se trata de uma fuga ou evasão do presente através da ficção, nem a criação de uma história-espelho do mundo, eliminando-se os seus males, mas antes a criação de uma potência real a partir da efabulação, seguindo fluxos e territórios desconhecidos, e, contudo, presentes, o que só se torna possível mediante uma agudização da sensibilidade, uma profunda alteração nas hierarquias do conhecimento (e da sua produção) e a imiscuição e afirmação da complexidade. Como escrevem os 13 artistas reunidos no Guincho: “Ouvimos o oceano e sentimos um passado desconhecido e uma abertura para o futuro”. Será sempre entre estes dois tempos, compreendidos a partir dos seus limites porosos e indefinidos, que a efabulação pode ser fértil (também no sentido de gestação de novos seres ou de novas sensibilidades em seres existentes). Será, igualmente, através desta que ultrapassamos a figuração, que ameaça cobrir as obras de Canoilas. As obras não mimetizam, não representam, o oceano, a vida e os ambientes marinhos. Elas constituem-se nos interstícios destes, inacessíveis a um conhecimento ordenador, ao mapeamento científico (ainda que exista um fascínio do artista pelos robôs que perscrutam o fundo dos oceanos), alimentando-se da fantasia, da imaginação, das texturas, das cores, do acaso, entre outros tantos elementos, que o artista cria e manipula. De forma semelhante, podemos compreender a referência ao texto “Os primórdios sombrios”, de Rachel Carson (publicado no catálogo da exposição), no qual a autora, apesar da fundamentação científica decorrente da sua formação e do seu conhecimento especializado, identifica zonas vagas e incertas deste conhecimento, criando várias aberturas que permitem apropriações do texto através de narrativas outras.[2] A escuridão (entendida duplamente, como ausência de luz, como sucedeu na formação dos oceanos e, por conseguinte, das primeiras formas de vida, e como característica do que é sombrio e permanece oculto) actua nesse importante limiar onde os artistas contemporâneos têm procurado colocar-se, trazendo para a obra de arte a sua condição de urgência e de revolução, atenta aos desenvolvimentos científicos, mas, sobretudo, às zonas cinzentas ou obscuras destes, onde se poderá constituir igual a si mesma (que lhe permitirá a sobrevivência) como proposta estética.

A anteceder a exposição, Canoilas e Fabiana optaram por prescindir do texto introdutório, substituindo-o por uma selecção pelo artista de cinco obras pertencentes à colecção Gulbenkian, que funciona como um preâmbulo visual da própria exposição, estabelecendo ligações ao processo, como sucede com o filme Destruição, de Fernando Calhau, de 1975, onde há uma anulação dos significantes, restituindo o filme à matéria que o constitui, ou, num plano mais alegórico, convocando os elementos e as forças da natureza, o movimento, a imprevisibilidade, a variabilidade, a germinação, o erotismo, entre outras, como depreendemos da obra Nuvem com superfície variável - III, de René Bértholo, de 1967, e da pintura A romã, de Ana Hatherly, de 1971, ou ainda, fornecendo uma importante pista para se compreender a exposição e as obras no território da imaginação, abraçando o encontro com o outro, sempre disponível se se anularam as hierarquias do conhecimento, como na obra The territory of imagination is not the property of a privilege group, de Susan Hiller, de 1982, e que podemos, também, em parte auferir da obra Sala Preta, n.º 1, um estudo para instalação sonora, de Túlia Saldanha, de 1974-1977. Esta última obra (na sequência é a terceira) funciona, simultaneamente, como uma espécie de advertência e antevisão da experiência da exposição (que pode ser, igualmente, entendida como obra única) que se segue,[3] pois ambas exigem uma abertura do corpo (e não, apenas, dos sentidos) para se experienciar a obra nas suas várias dimensões, remetendo, ainda, para as qualidades expressivas do próprio espaço (a penumbra, a luz ténue, o som…).

A sala encontra-se numa penumbra quase total, quebrada, tenuemente, por luzes coloridas sobre os objectos, cujas superfícies reenviam as suas cores para a atmosfera, transformando as criaturas, que repousam nalguns dos objectos, em seres luminescentes e radiantes. A adaptação dos nossos olhos à escuridão é gradual, o que permite uma descoberta subtil do espaço, das obras, dos pormenores, exigindo ao corpo e à sua atenção um tempo mais lento, que nos reenvia para esse início da vida descrito por Carson, em que o denso manto de nuvens, gerado pela humidade resultante do arrefecimento da superfície extremamente quente da Terra, não permitia a passagem dos raios solares, criando uma penumbra total, enquanto os continente e as bacias oceânicas iam encontrando os seus primeiros contornos e fixando o seu lugar. Com o arrefecimento da crosta terrestre para temperaturas mais amenas, o manto denso desapareceu, transformando-se em chuva, no grande dilúvio que encheu as bacias oceânicas durante séculos. Na penumbra da sala, ouvem-se pingos de água compassados. Os objectos revelam-se: conchas-poças-taças-bacias contêm água na depressão colorida e brilhante que se agita, alterando os reflexos que se projectam no seu interior e na atmosfera. São movimentos, extremamente, subtis, quase imperceptíveis, se não nos detivermos na obra com o corpo plenamente aberto. Esta é uma daquelas obras que exige essa transformação da superfície do corpo em superfície plástica, colorida, luminescente, rugosa, cravada com pequenos detritos, focos de uma outra atenção, quando os reconhecemos como vestígios de marés, mas também de anos continuados de exploração das áreas costeiras: conchas, pequenos ramos, pedaços de plástico, entre outros, ressoam, com forças distintas, no nosso corpo, entre sedução e repulsa, admiração e perplexidade.

A relação com a arquitectura do espaço é, como nas exposições anteriores, muito importante para Canoilas, que optou por pintar a sala hipostila com pistola, assumindo a gestualidade do corpo na pintura e no contorno informe, que criou perto do tecto. O preto adquire uma outra viscosidade e plasticidade, opondo-se à rigidez da malha arquitectónica. É outro ritmo que nasce e contamina a atmosfera do espaço, um ritmo que nasce do corpo e o encontra, novamente, quando este o faz por descobrir. Efectuamos, muitas vezes, este movimento, que é um movimento-pausa, entre a contemplação do grande espaço em penumbra (qual massa oceânica primordial) e os lugares mágicos que o pontuam, formados por forças escultóricas e pictóricas de fragmentos daquele que, inicialmente, fora o manto azul que cobria a sala de On the extremes of good and evil. Os pedaços de feltro resultantes encontraram um novo lugar, formam obras novas, rugas de uma superfície informe, uma topografia intensiva de ilhas (poderão ser ilhas, ser montanhas ou colinas, poderão ainda receber outros nomes por inventar) ou criaturas tentaculares que se movimentam pela superfície da água, subindo, por vezes, à camada terrestre (encontrando, novamente, ecos do texto de Carson). Não existe qualquer hierarquia, a deambulação deseja-se livre. Será o corpo a seguir as forças energéticas que emanam destes lugares e dos objectos-criaturas que os povoam e dizem.

O maravilhamento provém, igualmente, da matéria de que estes objectos-seres são feitos e, à semelhança do que podemos denotar de obras anteriores, não são alheios a essa outra experimentação a que o artista se entrega para criar desvios e rupturas nas grandes tradições escultóricas e pictóricas. Notam-se indícios de alguns métodos, como por exemplo, no recurso a máquinas escavadoras para retirar grandes porções de terra de zonas costeiras (prática comum a artistas da tradição da land art ou earth art) ou na técnica de dripping para revestir os montículos formados com resina acrílica. As forças geradas no processo de formação da escultura criaram texturas opostas: um lado poroso (que se transforma em poça-bacia) e um lado liso (que fica oculto, sendo este a superfície de contacto com a resina). A escultura resultante corresponde ao espaço negativo do montículo inicialmente formado, em que a resina permitiu fixar todos os detritos que o acaso cristalizou na obra, seguindo-se o processo de pintura com pigmentos.

Inevitavelmente, lembramo-nos que, de quando em quando, na história da arte e, sobretudo, na pintura, surgem várias alusões à escuridão, quase sempre como oposição à claridade, à luz, às certezas, aos ideais absolutos. Abrem-se percursos tacteantes (ontologicamente, só o poderão ser) para o desconhecido e o oculto, que, inevitavelmente, a escuridão encerra. Com efeitos dramáticos mais ou menos acentuados, da intensidade cromática violenta dos tons escuros do romantismo, quase sempre para retratar a opulência incontrolável das forças da Natureza, à melancolia das paisagens nocturnas de vários artistas do século XX (de que Edward Hopper será uma das referências mais imediatas), podemos pensar a tradição pictórica a partir da dialéctica luz-sombra ou luz-penumbra, porque a penumbra faz soltar as sombras dos objectos, dando-lhes uma vida própria. Canoilas absorve, claramente, esta tradição, manipulando-a, contudo, começando por associar os processos pictóricos à escultura proveniente da tradição da land art. Estes objectos-seres, taças, poças ou bacias, foram cuidadosamente pintados com cores hipnóticas (à semelhança da romã de Hatherly, uma pintura-luz das forças de germinação e de vida), capazes de reflectir a luz e inebriar o olhar por entre a penumbra, revelar as texturas de que são compostos e fazer o espaço reverberar na cor, nos reflexos e nas sombras informes que a superfície e o movimento da água concebem. Na luz clara do dia (como poderemos observar nas fotografias de Daniel Malhão), os objectos-seres metamorfoseiam-se, absorvendo a luz e aprisionando as sombras. Como se fossem seres vivos, expandem-se na escuridão, retraem-se sob a claridade, movimento contrário ao das plantas, por exemplo, e que parece revelar, em si, o tal mistério dos primórdios sombrios. Este movimento será exigido, por último, a todos: um regresso ao oceano que transportamos em nós (como relembra Carson).

 

Hugo Canoilas

Fundação Calouste Gulbenkian

 

Outros artigos sobre o artista:

— Hugo Canoilas: Pólipos cnidários reparados pelo olhar do observador

— A Gruta: Theodora or The Progress: Becoming Dog 

 

DSC_3233
DSC_3225
DSC_3369
DSC_3257
DSC_3252

Hugo Canoilas: Moldada na Escuridão. Vistas de Exposição. Fotografia: Pedro Pina. Cortesia do Artista e Fundação Calouste Gulbenkian.

 

 

 

Susana Ventura (Coimbra, 1978) Arquitecta de formação (darq-FCTUC, 2003), contudo prefere dedicar-se à curadoria, à escrita e à investigação, cruzando diferentes áreas do conhecimento. Gosta de pensar sobre arte, arquitectura, fotografia, cinema e dança, e ensaiar, ora em textos, ora em exposições, outras possibilidades de pensamento. (Por isso, também, doutorou-se em Filosofia, na especialidade de Estética, FCSH-UNL, 2013, sob orientação científica de José Gil). Foi co-curadora de Utopia/Distopia, no Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia de Lisboa (MAAT). Recentemente, foi curadora da exposição Corpo Radial de Mariana Caló e Francisco Queimadela na Galeria da Boavista, em Lisboa.

 

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.

 

 


 

1 Treffen in Guincho é uma obra colectiva de Filipe André Alves, Hugo Canoilas, Clothilde, Vasco Futscher, Sophia Hörmann, Fernando Mesquita, Thea Möller, Sofia Montanha, Nikolai Nekh, Pedro Diniz Reis, Maddison Rowe, Andreia Santana e Anna Schachinger.

 

2 Carson escreve, por exemplo: “Não sabemos de que forma o mar produziu a matéria misteriosa e maravilhosa a que chamamos protoplasma. Nas suas águas quentes e tenuemente iluminadas, condições desconhecidas de temperatura, pressão e salinidade terão sido ideais para a criação de vida a partir de não-vida. De algum modo, foi possível produzir aquilo que nem os alquimistas com os seus cadinhos nem os cientistas modernos nos seus laboratórios conseguiram alcançar” (Rachel Carson, “Os primórdios sombrios”). 

 

3 No desenho de Túlia Saldanha, lê-se: “Sala com tecto, chão e paredes pintados de preto. Nos quatro cantos superiores sai uma pequeníssima réstia de luz. A sala está vazia. Povoam-na ruídos e conversas de café, anónimas e incaracterísticas”. 

Voltar ao topo