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Back of my Hand

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José Marmeleira

 

Exposição com uma curadoria sagaz, Back of My Hand, nas Carpintarias de São Lázaro, mostra obras surpreendentes de artistas pouco vistos no circuito de exposições local. Um espaço no qual as obras se transfiguram, livres, em sons e imagens, um desenho expositivo que permite ao visitante reservar a necessária solitude a cada experiência. A partir de um tema: a mão.

 

 

Não é fácil fazer curadoria a partir de um tema. As obras podem ser tratadas quais ilustrações, contra a sua autonomia intrínseca. Ou, num sentido oposto, escaparem em direcções não desejadas pelo curador. Qualquer exercício de curadoria deve ter presente estas hipóteses distantes, senão contrárias. De outro modo encontrará dificuldades em — parafraseando Thomas Hirschhorn — ligar, entre si, coisas que à partida não sugerem qualquer tipo de conexão, no interior de um discurso coerente, singular e — não menos importante — subtil. 

O tema — seja qual for — pode libertar e multiplicar a leitura das obras, ao mesmo tempo que pode ser problematizado pelas obras. Dito de outro modo, o trabalho de curadoria será tanto mais fértil se, entre o tema e as obras, assegurar um diálogo dinâmico. Para tal, será conveniente evitar asserções retumbantes, observar a imaginação e o conhecimento do espectador, exigindo-lhe e dispensando-lhe tempo.

São estas condições que a exposição colectiva Back of My Hand, com curadoria de Sara Castelo Branco assegura nas Carpintarias de São Lázaro. Reunindo um leque heterogéneo de artistas, privilegiando o filme e o vídeo, encontra e toca o seu acorde a partir de um tema que é um contexto, uma imagem, uma parte do corpo, um órgão, um gesto: a mão. Embora já tenha organizado [e co-organizado] screenings de cinema experimental — por exemplo, Under the Ground no Cinema São Jorge e aquele que deu origem a esta exposição, na galeria Zé dos Bois, em Julho passado — é a primeira vez que Sara Castelo Branco trabalha directamente com os protocolos da arte contemporânea. 

Back of My Hand mostra obras surpreendentes de artistas pouco vistos no circuito de exposições local, um espaço no qual as obras se transfiguram, livres, em sons e imagens, um desenho expositivo que permite ao visitante reservar a necessária solitude a cada experiência. Dir-se-ia um feito improvável, tal a diversidade de propostas que, e citamos a curadora, exploram a ideia do gesto da mão enquanto ferramenta expressiva e elemento narrativo, e como veículo para convocar temáticas como as dinâmicas do arquivo, o colapso de fronteiras e geografias, ou, a gestualidade formulada pelas máquinas contemporâneas.

 

O projecto é ambicioso, mas a sagacidade da curadoria — incluindo o trabalho com a arquitetura do espaço — compõe o equilíbrio necessário entre a irredutibilidade das obras a um só discurso e as questões que o olhar levanta sobre o tema. Antes da sala principal, descobre-se um trabalho magnífico, o vídeo Revers [2017] do artista tunisino Ismaïl Bahri. No ecrã, mexem-se as mãos do artista. Amassam, amarrota alisam uma página de uma revista de moda, ou para sermos mais exactos, uma imagem. Os movimentos são firmes, mas delicados e de tão repetidos vão transformando a imagem original noutra imagem. O que resta é uma superfície monocromática produzida pelo gesto. O enquadramento torna evidente o carácter performativo do movimento dos dedos — elemento que regressará noutros trabalhos — e em especial a sua capacidade fabricadora e instrumental. Na sua economia, presta-se a uma constante polissemia. De uma [pós] crítica da cultura, à experiência da manualidade, passando por uma ideia do artista demiurgo, abrem-se várias janelas ou portas de sentido. 

Localizado num espaço que solicita a concentração solitária do visitante, o vídeo de Ismaïl Bahri encontra no vídeo de João Tabarra Mind da Gap [2007] uma companhia inesperada e frutuosa. Do movimento real de um gesto [que não é apenas uma acção], passamos para um gesto que sabemos, à partida, ser ilusório. Uma mão — a palma virada para o espectador — mergulha no horizonte do mar [ou esconde-se num plano?], mas não o revolve. Há algo de lúdico, de maravilhoso na relação — artesanal, sem o ser — que as duas imagens inventam. Mas o artista não prescinde um de olhar arguto — à beira do desencanto — sobre o modo como estas mesmas imagens, na sua escala e relação, aparecem.

 

Se há uma paisagem neste belíssimo vídeo, há várias noutro notável trabalho. Trata-se de Landscape Series #1 [2012] de Nguyễn Trinh Thi [1973, Vietname] que introduz o tema do arquivo na exposição. Esta artista vietnamita retirou da Internet imagens onde pessoas apontam para paisagens distantes e próximas. As fotografias dão pistas sobre os lugares e nacionalidades dos retratados — Vietname — e os gestos são indicativos: pretendem dizer algo que as imagens não dizem. O quê? Que ali esteve qualquer coisa, que ali aconteceu qualquer coisa. A ficção insinua-se a reboque da mão, extensão da visão e órgão que dá significado humanizante e físico ao olhar. Não será despropositado ligar Landscape Series #1 ao archival turn que Hal Foster analisa em Bad News — Art, Criticism, Emergency: um passado não dito — misterioso, difuso — assombra a sequência de slides, mas Nguyễn Trinh Thi não encerra o espectador numa lição da história. Na companhia daquelas testemunhas — personagens de um arquivo — ele pode imaginar outras relações, outros futuros.

Os trabalhos dos restantes artistas nacionais interrompem, com a sua fisicalidade, o fluxo das imagens. Sem título — Mão de Diogo Evangelista é uma peça que materializa a réplica fluorescente, feita de resina, de uma mão. Sugere conexões formais e conceptuais com outros trabalhos [por exemplo, The Enemy do artista equatoriano Oscar Santillán ou Revers de Ismaïl Bahri], sem deixar de ser uma proposta autónoma. Representação de um órgão humano e, em simultâneo, objecto que, se diria, animado por uma vitalidade não-humana [ou pós-humana], não se furta a uma crítica anti-fetichista. Não por acaso, traz à memória outra mão: a escultura homónima de Cruzeiro Seixas [1960-1970]. 

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Hugo de Almeida Pinho apresenta duas peças de 2022 que decorrem de pesquisas críticas à volta de diferentes acepções da mão. São instalações que exigem uma atenção mais demorada do corpo e da visão, que espoletam o movimento do visitante. A primeira, intitulada Dois Sóis, articula elementos da ciência, tecnologia, mitologia e natureza e pode ser descrita como uma experiência técnica e cénica na qual participam objectos, sombras e imagens projetadas. Nessa experiência, evoca-se o espaço que medeia a nossa relação — humana e transhistórica — com o Sol: algures entre o fascínio temeroso e o desejo de domínio ou controlo. A mão — entendida metafórica ou literalmente — encontra-se precisamente no meio. Ora é atraída pela luz e pelo desconhecido, ora se petrifica, antes de recuar face a uma força não domável e mortal. Ora é, precisamente, algo dessa experiência sensorial e intelectual que a outra instalação, Pièce de Résistance, pretende tornar sensível. A mão aparece representada [no trabalho anterior, era uma imagem a manipular, outras imagens] em esculturas de ferro que remetem para formas ancestrais e místicas. Montadas sobre estruturas biomórficas, iluminam-se atraindo o toque humano, mas o calor que emanam acende a dúvida. No interior dos turbos que as compõem, a eletricidade produz um curto circuito que resiste a qualquer aproximação humana e, poder-se-ia acrescentar, terrestre.

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Com outro conjunto de trabalho notáveis, descemos ao chão da história humana: One Image, Two Acts, 2017-2020 de Sanaz Sohrabi, The Fairest Heritage de Uriel Orlow [1973, Suíça] e Deep Sleep, 2014 de Basma Al-Sharif [1983, Kuwait]. O tema do aquivo regressa nos dois primeiros trabalhos, com a mão ora a revelar, ora a adicionar, poeticamente, sujeitos e corpos excluídos das narrativas da história. Em One Image, Two Acts, 2017-2020, é a mão da artista que, quase fora de campo, faz a montagem avançar. Vemos imagens que revelam palavras e lemos palavras que revelam imagens. Mas não se vê apenas a mão: escuta-se uma voz que indicia a presença de um ser individual. Sem essa voz, aquele arquivo não seria o que é na exposição: uma narrativa de narrativas sobre a exploração da empresa British Petroleum no Irão, no Iraque e no Kuwait. Uma narrativa de narrativas que não é outra coisa, afinal, senão uma contra-narrativa que destapa, numa dorida e resistente placidez, a predação de economias, de territórios e de culturas entre as décadas de 1950 e 1980. The Fairest Heritage é um trabalho silencioso, mas não mudo. Vemos imagens realizadas em 1963, por ocasião do 50º aniversário da fundação Kirstenbosch, o Jardim Botânico Nacional da África do Sul na Cidade do Cabo. E eis que sobre elas descobrimos outras imagens: as de uma mulher negra, a actriz Lindiwe Matshikiza. É ela que se debruça sobre as imagens do aniversário, encontradas pelo artista no sótão da biblioteca do jardim botânico. Vemo-la a apontar para os retratados, a observas as cenas, a inclinar-se sobre os planos do passado, em poses admiradas diante de rostos e cenas. Como as mulheres e os homens brancos, protagonista daquele filme de 1963, está do lado de lá da imagem. E é uma imagem que fala sobre outras imagens. O que podemos dizer dela e com ela, sobre outras imagens, eis a pergunta que Uriel Orlow deixa no ar, tão fantasmática quanto aquelas aparições do arquivo.

Do trabalho final podemos dizer que é aquele que nasce de um arquivo pessoal, íntimo. E no qual a mão é, afinal, o corpo. Basma Al-Sharif é uma artista e cineasta de descendência palestiniana, criada entre a França, os EUA e a Faixa de Gaza. Impedida de viajar para a Faixa de Gaza fez Deep Sleep, um filme-desejo em que as imagens do corpo se sobropõem as das paisagens de vários lugares, construindo, devagar, um efeito onírico de hipnose. A mão, como noutros trabalhos, aponta para espaços, despertando desejos, memórias, emoções, sem nunca sair do corpo. Filme situado num lugar e numa vida individual, entre viagens, permite ao visitante envolver-se com as suas memórias — sem lhes tocar — enquanto corpo e ser ali. 

 

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Back of my Hand, Carpintarias de São Lázaro, Lisboa. Vistas de Exposição. Fotografia: Photodocumenta. Cortesia de Sara Castelo Branco.

 

 

 

 

 

Carpintarias de São Lazaro

 

 

Sara Castelo Branco

 

 

 

 


 

 

 

José Marmeleira é Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação [ISCTE], é bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia [FCT] e doutorando no Programa Doutoral em Filosofia da Ciência, Tecnologia, Arte e Sociedade da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, no âmbito do qual prepara uma dissertação em torno do pensar que Hannah Arendt consagrou à arte e à cultura. Desenvolve, também, a actividade de jornalista e crítico cultural independente em várias publicações [Ípsilon, suplemento do jornal PúblicoContemporânea Ler].

 

 

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