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Jonathan Monk na Coleção Teixeira de Freitas

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José Marmeleira

 

No catálogo There will never be a door, you are inside — Works from The Coleção Teixeira de Freitas há duas frases que servem de prólogo ao presente texto: a primeira é atribuída a Sara de Chiara: “o colecionador é, ao mesmo tempo, um voyeur e um viajante. Na sua mente, imaginar pode ser análogo a vaguear”. A outra pertence ao colecionador Teixeira de Freitas que, na entrevista à historiadora de arte italiana no mesmo catálogo, diz que “colecionar é uma mistura de ser obsessivo e amar o que se faz”.

Em certo sentido, há algo destas disposições no modus operandi e no imaginário de um dos artistas que melhor abre, aos curiosos, a coleção Luiz Augusto Teixeira de Freitas. Trata-se de Jonathan Monk (Leicester, 1969), conhecido pelo modo, irónico, irreverente e engenhoso que tem de se apropriar de obras fundamentais do Conceptualismo e do Minimalismo. O verbo apropriar deve ser aqui minudenciado. A partir dessas obras, o artista produz obras novas, suas. De algum modo, também Monk, para quem a originalidade é uma qualidade impossível, sente prazer em ver as obras, em viajar pelas obras. O seu apetite é também obsessivo, porque incansável, e reflete um amor pela arte. A diferença entre a sua atividade e a do colecionador reside no sentido de uma frase proferida, há dois anos, numa entrevista: “Gosto da ideia de pegar numa coisa que existiu e torná-la numa coisa minha”. Monk não é um colecionador, mas como o colecionador, é um amante da arte. Por outro lado, não será correto afirmar que se apropria das obras de outros artistas — como alguns artistas se apropriavam de imagens extrínsecas à arte, por exemplo, aqueles associados à Pictures Generation — mas dialoga com elas, faz delas a origem do seu fazer e do seu prazer. E quando se fala aqui de obras — e das imagens e materiais que as compõem — falamos também, ou acima de tudo, das ideias e dos gestos que as despertam.

Jonathan Monk pode ser considerado um eixo da coleção, uma vez que recorta um lugar distinto na cartografia construída por Luiz Augusto Teixeira de Freitas. O artista que estudou na Escola de Arte Glasgow até 1991, evoca, pelo seu gosto, memória e erudição, Sol LeWitt, Ed Ruscha, Bruce Nauman, Lawrence Weiner, entre muitos outros nomes, realçando o modo como esses artistas desmistificaram o processo artístico. Mas, em simultâneo, faz algo que o singulariza: recorrendo a uma certa torção concetual e estética, reinventa esse processo, irradiando os seus humores, o seu pathos. Dito de outro modo, a arte ou, pelo menos, a que interessa a Jonathon Monk nunca está morta. Enquanto referência e eco material é meio privilegiado da sua arte. Ideias, contextos e formas compõem uma matéria-prima que Jonathan Monk persegue com uma paixão desapaixonada, por vezes próxima da tática do flaneur e do fã, mas sempre com uma inteligência divertida, distante, reflexiva. As linguagens são, claro está, as da arte contemporânea, materiais e imateriais: pinturas, esculturas, fotografia, cartas, documentos, desenhos, gestos, ações.

Da sua produção, no início dos anos 1990, quando a arte britânica florescia internacionalmente, duas peças são emblemáticas dessa sentimental metodologia que encontra os seus maiores impulsos no remake e na revisitação: Deflated Sculpture (2009) e None of the Buildings on Sunset Strip (1997-1999). A primeira, que quase replica um dos Balloon Rabbit de Jeff Koons, consiste numa peça de metal polido. Ao contrário dos insuflados coelhos do artista americano, o de Monk ficou sem ar, à beira do colapso, esvaziado. O título é irónico e, todavia, rigoroso, mas o gesto não é iconoclástico. O que se constata é o produto de uma intervenção que, entretecida na história da arte contemporânea, se transforma em coisa-pensamento. Transformar a borracha do balão em metal permitiu a Monk sublinhar a paradoxal vulnerabilidade da peça e afirmar a sua ontologia: é uma escultura frouxa no seu brilho, mas uma escultura. Com None of the Buildings on Sunset Strip (1997-99), o processo estendeu-se no tempo, na sequência de uma viagem e de uma estadia em Los Angeles. Depois de estudar Every Building on the Sunset Strip (1966), o comentadíssimo e analisado livro de Ed Ruscha (1937), Monk fez um novo trabalho noutro contexto. Não se tratou de um tributo, mas da expansão de uma ideia com estratégias e resultados distintos em termos visuais e concetuais. Monk fotografou, numa tarde, os espaços entre os edifícios — as estradas de Sunset Strip — reconduzindo o olhar e as referências dos leitores a outros espaços, tempos e arquiteturas.

 

 

Esta deambulação interessada pelas fontes prévias, pelos outros artistas, pelas relações tecidas entre os artistas, as suas ideias e aquilo que fizeram com elas, resplandece nos trabalhos de Jonathon Monk presentes na coleção. Deles, destacam-se The Missing Letters (2006), 4 Dessins Isomètriques (Afrique Cubique) e My Left Arm Piece (2007). O primeiro trabalho surgiu do encontro com obra de Alighiero Boetti (1940-1994) e, em particular, Viaggi postali (1969-70). Representativa do artista italiano, este projeto lida com questões caras às propostas do concetualismo, como sejam a imaterialidade e a existência não visual da obra. Alighiero Boetti começou por conceber itinerários de viagens imaginárias para 25 amigos. Depois endereçou a cada um desses amigos uma carta, como se esta pudesse chegar ao respetivo destinatário nos primeiros locais das viagens. Inevitavelmente, os envelopes foram-lhe devolvidos, mas o processo não terminou nesse momento. O artista fez fotocópias das cartas devolvidas e colocou-as em envelopes maiores para as remeter, desta vez, às paragens seguintes dos imaginários itinerários. O trabalho só ficaria concluído com o fim das quiméricas viagens, proporcionado uma reflexão subtil e desprendida sobre o tempo e o espaço, a intenção e o acaso, o aparecimento e o desaparecimento da obra.

Jonathan Monk que, como o colecionador, gosta de ver as ideias e as obras dos (outros) artistas, repegou na reflexão de Boetti e enviou seis cartas àquela que era conhecida como a morada, em Roma, do artista italiano. Dessas seis, cinco voltaram e uma não regressou. Nessa ocasião, o artista inglês deu ao seu trabalho o título de The Missing Letter, antes de, em 2006, fazer um remake da mesma peça. Agora de Nova Iorque, voltou a remeter as seis cartas para a morada de Roma, com outro desfecho: só uma carta regressou, pelo que, imaginamos, as restantes terão chegado ao seu misterioso destino. The Missing Letter daria, assim, lugar a The Missing Letters (2006), a peça que faz parte da coleção Luiz Augusto Teixeira de Freitas. Se o trabalho se materializa numa moldura que enquadra o espaço vazio dos envelopes fantasmas e o envelope que regressou, é a ideia que interpela espectador, declinando-se em várias perguntas: O que aconteceu às cartas. Onde estarão? Regressarão no futuro? O que aconteceu?

Associados a um período determinado da história da arte da segunda metade do século XX; Alighiero Boetti e Sol LeWitt são dois artistas entre os quais é possível encontrar correspondências. Não apenas formais (por exemplo, pela presença simultânea da grelha nos desenhos de parede do americano e nas obras em têxtil do italiano), mas afetivas. Sol Le Witt colecionou obras de Alighiero Boetti e os dois artistas trocaram correspondência. Ora se Alighiero Boetti “era um artista de Sol Le Witt”, “os dois artistas são artistas de Monk”, como “este é um artista de Luiz Teixeira de Freitas”[1]. Em 4 Dessins Isomètriques (Afrique Cubique), de 2017, outra peça de Jonathan Monk, na qual recriou 24 dos 42 desenhos isométricos de Sol Lewitt e, pela serigrafia, imprimiu-os sobre padrões das estampas de cera africanas. O resultado é uma síntese do concetual com o decorativo ou visual, das formas geométricas com as cores. E este palimpsesto não se restringe aos princípios da arte, mas alude a significados que são também sociais, culturais e económicos: é que as estampas não são originalmente africanas. Provém de uma técnica de impressão indonésia que a Holanda industrializou para a produção de produtos, entre as quais as estampas (que são depois exportadas para Africa). Produto de diálogos, justaposições e cruzamentos e traduções, 4 Dessins Isomètriques (Afrique Cubique) combina o desejo de ver (com as suas ilusões), de colecionar (com os seus encontros e acasos) e de pensar (com as ideias).

My left Arm Piece (2007), o trabalho de Jonathan Monk que completa esta trilogia, consiste num conjunto de esculturas em ferro que surgem dispersas, quais fragmentos, no espaço. Há algo de cómico e frágil na sua presença desordenada e não é difícil pensar em referência das histórias da arte (certos desenhos de Mondrian, de novo, a grelha modernista, a relação do minimalismo com a experiência do espaço), mas estas esculturas representam também uma série de autorretratos abstratos do próprio artista. Isto é, cada um representa Jonathan Monk. Depois de calcular o peso do seu próprio corpo, aplicou-o aos elementos individuais do seu braço esquerdo (mão, dedos) e com a colaboração de um canalizador produziu as esculturas. Feitas de ferro envelhecido e sujo, em posições diferentes, formam um corpo no espaço, um desenho no chão, e são, numa dupla e subtil tautologia, retratos de um ver, pensar e fazer arte.

 

Jonathan Monk

Coleção Teixeira de Freitas

 

José Marmeleira. Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação (ISCTE), é bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) e doutorando no Programa Doutoral em Filosofia da Ciência, Tecnologia, Arte e Sociedade da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, no âmbito do qual prepara uma dissertação em torno do pensar que Hannah Arendt consagrou à arte e à cultura. Desenvolve, também, a actividade de jornalista e crítico cultural independente em várias publicações (Ípsilon, suplemento do jornal PúblicoContemporânea Ler).

 

 

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Missing Letters

Nota:

[1] Vale a pena mencionar a realização de um trabalho do artista para a colecionador: “Three Piece” (2007-2017). Jonathan Monk ofereceu à coleção, durante dez anos, vinte árvores que plantou em lugares específicos e que foi documentando em fotografias. Estas eram enviadas depois ao colecionador, mas era o ato de plantar as árvores a verdadeira forma da peça, ato que, embora real, não era tornado visível.

 

Imagens: Jonathan Monk, My Left Arm Piece (2007); Tree Piece, 2007-2017. Fotografia. Dimensões variáveis. Esta obra é composta por 20 polaroids (2 por cada ano). Dessins Isométriques Afrique Cubique (2017); Imagens cortesia do artista e da Coleção Teixeira de Freitas.

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