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José Leonilson e Tomás Cunha Ferreira: Pequenos Fogos 

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José Marmeleira

 

A exposição Pequenos Fogos do artista brasileiro José Leonilson, falecido em 1993, vítima de SIDA e de Tomás Cunha Ferreira (1973), patente na Brotéria até 26 de Fevereiro, pode ser descrita assim: é um lugar onde as palavras e os desenhos, aparecem na condição de sinais, traços, marcas, quase vestígios. Como tal, conduzem-nos pelo espaço, ainda que sem nos ditarem quaisquer caminhos ou direções. Encenam uma ligação precária e silenciosa entre dois universos geográficos, artísticos e temporais, ligação que se observa, se tateia, se experimenta e se descobre a cada movimento no interior da arquitetura da galeria. Também se poderia, mais prosaicamente, falar de um encontro, representado nos objetos, que o visitante tem o privilégio de testemunhar.

A ideia de reunir os trabalhos dos dois artistas partiu do curador João Sarmento, sensível ao significado de um facto: Tomás Cunha Ferreira já havia visto trabalhos de José Leonilson. Desse episódio, o artista, que viveu no Brasil, dá conta, em depoimentos que se lêem na folha de sala, de uma sensação dupla: a de desaceleração do tempo e de uma intensificação. Diz, ainda, sobre José Leonilson que “é um artista que nos impõe com candura o tempo, colocando-nos num lugar de intensidade vulcânica”, observação justa, pois os desenhos do artista (que terá em Março uma exposição retrospetiva em Serralves) pedem que sobre eles nos debrucemos, que a eles nos dirijamos. Como se possuídos por uma força centrípeta, chamam a si olhar de quem passa. Não se trata de uma mera interpelação que suscita curiosidade e perguntas. Ao vê-los, não estamos apenas conscientes de que podemos ver, de que temos a faculdade de visão, mas que estamos a vê-las ali, num certo tempo. E de que temos um corpo, um rosto, olhos.

Distribuídos pelo espaço da galeria, os trabalhos de José Leonilslon pertencem a várias a coleções e ao contrário dos de Tomás Cunha Ferreira encontram-se identificados. Na parede principal da galeria, aparece o desenho Pequenos Fogos (Coleção Luiz Teixeira de Freitas) que anuncia alguns dos elementos da obra de José Leonilson: a simplicidade formal, a economia concentrada do gesto, a intensidade da cor, aquilo que as palavras fazem ao desenho e vice-versa. É um desenho pequeno, tão pequeno — como o maravilhoso e colorido Three Stones searching for your eyes (vindo da mesma colecção e que aparece na sala final), que parece amedrontar-se quando dele nos aproximamos. Serenamente, quieto, recebe-nos do alto, na parede. É um pequeno fogo que o nosso olhar não apagará. 

O tamanho não é um elemento despiciendo. Estes desenhos de José Leonilson são reduzidos (nunca redutores) e simples, mas nascem de uma veemência que, delicada, explode na experiência de quem os descobre. A tinta da china ou a guache, crava-se no papel como na memória. Pequenos, estes desenhos espantam pela sua inesquecível grandeza formal, poética e visual.  E, sentido o espanto, o visitante vai explorando, devagar, outros lugares na obra do artista. Contemplará o lirismo erótico de Rapazes com Flores (Coleção Leda Catunda), o desenho a tecer formas em Pequenos Fogos, a graciosidade do sopro expansivo da pintura (um trabalho sem título, da Coleção Luiz Zerbini, que evidencia as qualidades da composição das formas e das cores) ou uma certa poética da intimidade (à qual não falta humor).

Por esta altura, será oportuno perguntar pelas afinidades entre os dois artistas, pelos territórios que partilham ou pelos pontos em que as duas sensibilidades se tocam. Talvez se possa afirmar que em ambos há uma modéstia sincera, um desprendimento avesso à definição, à soberba, ao espetáculo, à arrogância (os ecos do infantil, no sentido de uma experiência primeira também podem ser evocados). São trabalhos que se podiam esconder (embora não se escondam), que não se importam de passar despercebidos, que deixam ao visitante e ao espectador o desejo de ver ou olhar. Não se lhes impõem, estão ali apenas, com o seu tempo. Em certo sentido, com outra amplitude, é isso o que as propostas de Cunha Ferreira fazem. Por vezes, estão beira de desaparecerem na condição de obras de arte, para serem outra coisa, num limiar indiscernível, mas sempre tangível. Afinal, não desaparecem. Vemo-las sobre o mármore dos parapeitos, nas paredes, do tecto, a transfigurarem materiais pobres ou a conduzirem o visitante na descoberta das obras e do espaço, por vezes de um modo que suspende a sacralidade da arte. Com efeito, há peças (em especial as de pano) que se oferecem ao gesto do visitante, como se as pudesse manipular e usar (uma, de facto, ele usará, mas não é feita de pano). Outras há que revelam aquele que foi o gesto do próprio Tomás Cunha Ferreira: uma colagem, uma adição, um acrescento, produtos de um trabalho mínimo na busca de afinação certa.

Percebem-se assim os nexos que entre José Leonilson e Tomás Cunha Ferreira se desenham na exposição; mas talvez se deva falar de linhas que se cruzam ou até de tangentes. É o que acontece quando contemplamos Cara e Coroa (Coleção da Caixa Geral de Depósitos), uma pintura sobre pano de José Leonilson. Com uma escala que contrasta com os desenhos, é também um biombo que coloca o espectador numa espaço de uma contemplação de cores e superfícies, abeirando-o do efeito da ilusão pictórica. Por instantes, a tela parece madeira, o castanho declina-se no verde. A pintura é uma pintura e é um objecto, ali.

 

José Leonilson

Tomás Cunha Ferreira

Brotéria

 

José Marmeleira é Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação (ISCTE), é bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) e doutorando no Programa Doutoral em Filosofia da Ciência, Tecnologia, Arte e Sociedade da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, no âmbito do qual prepara uma dissertação em torno do pensar que Hannah Arendt consagrou à arte e à cultura. Desenvolve, também, a actividade de jornalista e crítico cultural independente em várias publicações (Ípsilon, suplemento do jornal PúblicoContemporânea Ler).

 

AJS2201-GB1-A01 (3058) [L] Galeria Brotéria
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António Jorge Silva 2201-GB1-A12B (3060) [L] Galeria Brotéria
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José Leonilson e Tomás Cunhas Ferreira: Pequenos Fogos. Vistas gerais da exposição na Brotéria, Lisboa. Fotos: António Jorge Silva. Cortesia de Brotéria.

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