Perfil: Maja Escher
"O criar e fazer em conjunto é parte integrante da peça ou a peça em si."
Artista cujos projetos e obras surgem de um momento de partilha, de uma conversa, de uma música ou de um objeto encontrado ou oferecido, Maja Escher recebeu a Contemporânea no seu atelier. Para uma conversa sobre o seu processo artístico, o significado da sabedoria popular e a relação da arte e do conhecimento com o mundo natural.
Há um mês que Maja Escher não ouve a chuva, o bater das gotas nas superfícies, o rumor da água sobre a terra. Nascida e criada no Alentejo Litoral, teme o silêncio que a seca traz à Terra enquanto recorda o que ainda lhe vão contando entre as freguesias de Corte Malhão e São Martinho das Amoreiras. Dizem que às vezes a água que se acumulava debaixo do chão era tanta que brotava à superfície, que jorrava. Mas que isso vai acontecendo menos, cada vez menos.
A manhã de sábado já se declina, quando a artista nos acolhe no edifício dos antigos armazéns da Água Castello, na freguesia da Penha de França, de costas para o Tejo. “As pessoas do bairro chamavam-lhe a Fábrica das Águas. Mudei-me para cá em Julho do ano passado”, revela. “É um espaço recente e plural com vários artistas a trabalhar. Vai haver uma área expositiva comum, um estúdio de som, ateliers e uma horta no terraço”. Seguimos a artista por passagens e corredores. Paramos na carpintaria e na área partilhada dos fornos onde fazem as queimas das peças de cerâmica.
Até que a luz de claraboias ilumina um espaço, o seu atelier. Canas verticalizadas em terra, ferragens de cerâmica nas paredes, ramos secos. Sobre estantes vemos livros folheados, cadernos abertos nas mesas, nas paredes folhas que sustentam desenhos. Também se discernem objetos cujo sentido nos escapa. Serão artísticos ou de trabalho? Algo lhes parece ser comum: a frugalidade dos materiais de que são feitos — canas, barro, tecido, corda, papel — e a sua, talvez aparente, fragilidade, ou dir-se-ia antes, leveza.
Encostados a uma parede, há uns que, irrequietos, despertam a atenção. Exibem frases ou expressões como Ciclo da Vida ou Stop taking the water away. “São bandeiras e faixas pintadas com terra que fiz em conjunto com as pessoas presentes no primeiro Encontro pela Água”, esclarece a artistas. “Foram usadas na Marcha pela Água que aconteceu em Odemira no dia 17 de Outubro de 2021. Caminhámos ao longo do Rio Mira em defesa do seu caudal, pela regeneração ecológica bioregional e por um modelo agrícola sustentável”, explica, antes de acrescentar: “Faço parte de um grupo que está a criar uma Aliança Regional pela proteção da água.”
Os Encontros pela Água e Projetos relacionados com o Rio Mira surgem na sequência da Residência Artística How to make it Rain (in 5 steps) realizada no Verão 2021 na Worlding em Londres com apoio da Fundação Calouste Gulbenkian. Durante esta estadia a artista investigou métodos industriais e alternativos de integrar a água nos ciclos humanos e trabalhou a problemática da barragem de Santa Clara onde grandes quantidades de água (91%) estão a ser usadas para irrigar a agricultura intensiva e estufas no litoral alentejano, cortando o acesso aos pequenos agricultores e pondo em risco o fluxo do caudal do rio. “A barragem chegou ao seu volume morto, a partir do qual já não é possível extrair água por gravidade e se torna necessário acionar bombas. Pensando a escultura e a tridimensionalidade, fiquei fascinada pela ideia do volume que morre. Quis fazer peças que devolvessem vida ao volume.” Longe fisicamente do que estava a acontecer na barragem, sentiu a necessidade de reagir, conectando imagens, esculturas e palavras com uma dimensão vocal. Daí resultaram os trabalhos Carimbos de Protesto em terra, Faixas de Protesto, Ferramentas Amplificadoras de Som e um Manto de Chuva.
Uma relação com a natureza
Maja Escher é uma artista com um percurso marcado por viagens, residências artísticas e encontros. Estudou em Lisboa, Londres e na Alemanha, trabalhou em Cabo Verde e no Brasil, mas a experiência da vida local não-normativa (com a qual cresceu) continua a guiá-la em termos vivenciais, culturais e artísticos. Citando Lewis Mumford, poder-se-ia dizer que a sua arte assenta numa busca: a de uma harmonia com a natureza que nos rodeia, de uma alegria da existência pura, da vida consumada e concentrada no momento. Filha de mãe e pai alemães que, há mais de trinta anos, decidiram viver no Alentejo, cresceu num monte que atualmente se encontra cercado pela monocultura do Eucalipto. A paisagem foi alterada radicalmente e, nesse processo, enterraram-se histórias, experiências, narrativas, saberes. “Estabelecer uma relação com os lugares e as pessoas é essencial para o meu processo de trabalho. Frequentemente, os meus projetos surgem de um momento de partilha, de uma conversa, de uma música ou de um objeto encontrado ou oferecido.”
Recolha e encontro: o processo de trabalho e as obras de Maja Escher fazem-se à volta destas noções e práticas. “o meu trabalho tem uma dimensão coletiva e híbrida em que desenhos, objetos encontrados, práticas colaborativas e métodos de trabalho de campo fazem parte do processo de desenvolvimento de projetos de investigação e instalações. Interessa-me a sabedoria popular. Perceber, por exemplo, o que existe na tradição oral da relação entre a geografia e meteorologia do próprio lugar. São coisas que vou colecionando e anotando.” A prática de Maja Escher não é apenas sensível a uma abordagem dialógica, que integra a alteridade (do não-artista ou do não-fabricador, segundo a acepção moderna e técnica do artista). É mais do que isso. Exprime uma sintonia com a matéria dos seres e das coisas. Reconhece como condição da vida do mundo a interdependência que o sustenta. Quebrada essa interdependência, é o mundo que se desarranja. Por isso, é pertinente falar de ecologia. Maja pega num livro, abre-o e folheia-o. Trata-se de Lo-TEK Design by Radical Indigenism de Julia Watson. “Lembra-nos da existência de um conhecimento ancestral e ecológico que foi enterrado pelo capitalismo e pelo consumismo, e do qual não nos lembramos. Nos lugares onde vou trabalhando, interessa-me investigar esse conhecimento ancestral e a relação com os ecossistemas, a interconexão das coisas. Seres, pedras, árvores, canções, histórias, sementes, esculturas.”
Maja Escher está a construir uma “Máquina da Chuva”, um projeto ou, antes, uma investigação que se desdobra em vários momentos: “Podem ser conversas, performances ou exposições que resultam de residências artísticas, instalações que dependem dos lugares onde são instaladas”. A ideia surgiu no contexto do Projeto Individual em Cerâmica que a artista estava a realizar enquanto bolseira no Ar.Co – Centro de Arte e Comunicação Visual em Almada, e na sequência de uma ida à Horta do Pragal em Almada: “Passava muito tempo nas hortas [da Quinta de São Miguel] a perceber os sistemas de rega e os engenhos construídos para recolher água da chuva. E o Sr. Capela, que me levou às hortas pela primeira vez, contava-me advinhas que eu ia apontando”. De relações de amizade surgiram novos rumos. “Na mesma altura, outro trabalhador, o Sr. Luís que fazia queimadas na horta ao final da tarde, contou-me a adivinha que deu início ao projeto da “Máquina da Chuva”. Qual é a coisa qual é ela que quanto mais alta está, a mais facilmente se chega? É a água do poço. Há uma água que vem de cima e uma água que vem de baixo. A ideia de ciclo.” A máquina da chuva de Maja Escher não é uma máquina funcional, mas uma série de ideias, objetos, gestos que têm implícitos uma perspectiva crítica e reflexiva: “É uma provocação ao paradigma mecanicista e à visão dualista que nos faz entender o mundo e a natureza como algo que nos é exterior e que queremos fragmentar e controlar.”
As exposições Estação Meteorológica (Ar.co Xabregas, 2019) e Quatro Ventos (Galeria Otoco, 2019) foram os primeiros momentos de investigação sobre a água e a chuva. “Pensei nas várias maneiras de prever o tempo e na relação entre prever o tempo meteorológico e o tempo futuro. Por exemplo, pelo comportamento de certos animais que nos podem indicar se vai chover ou não, pelas fases da lua, pelas formas das nuvens, pelo vento. Criei instrumentos de medição do vento, pluviómetros e antenas de chuva. Pensei que seria possível que a engrenagem da máquina da chuva, aquilo que a fizesse andar, pudesse ser a sabedoria popular. O trabalho de recolha de ditados, adivinhas, canções e histórias sobre água e chuva levou-me à ideia de a adivinha ser ela própria um engenho.”
Encontro, partilha, cocriação
À nossa volta, as coisas permanecem e aparecem nas mesas, nas prateleiras, nas paredes. Retratam, na forma de fragmentos, um percurso, uma biografia artística. Conta-nos Maja Escher que a sua formação na Faculdade de Belas-Artes de Lisboa se realizou no campo dos Audiovisuais, antes de seguir o caminho atual. “Sob a orientação de Susana Sousa Dias, desenvolvi um trabalho sobre o cante ao baldão [um tipo de cantar de improviso do concelho de Odemira] que se transformou num projeto colaborativo, mais do que um filme. Não me interessava tanto a ideia do objecto-filme, mas o trabalho de campo, o processo cocriado, coparticipado. O criar e fazer em conjunto é parte integrante da peça ou a peça em si”. Outro momento fundamental, que assinala esta posição face à arte e ao mundo, ocorreu em 2015 quando a artista foi convidada por Virgínia Fróis a realizar uma residência artística nas Oficinas da Cerâmica e da Terra em Montemor-o-Novo. O projeto Zénite e Nadir (Montemor-o-Novo, 2015) começou com trabalho de campo junto dos moradores do bairro de São Pedro, de modo a recolher formas e saberes ancestrais relativos a bailes de mastro, festividades e outros elementos de cariz popular. A ideia era a preparação, construção e celebração conjunta em torno de um mastro de festa em honra de São Pedro, de quem se diz mandar no tempo, e que não se realizava há muitos anos. “Limpámos o terreiro, limpámos e pintámos a ermida e construímos um mastro de festa. Nesse processo, modelámos as bandeiras de cerâmica para o mastro”. A criação destes elementos de carácter festivo e sagrado funcionou como um ritual, forma de experimentar e (re)descobrir diferentes técnicas e processos na cerâmica: formas, cores e engobes. “Foi o meu primeiro trabalho no espaço público. Tem a essência do que me interessa aprofundar. A ideia de encontro, partilha, celebração, cocriação”.
Dos projetos que realizou nos anos que seguiram, destaca-se o Mastro dos Vizinhos na Casa da Cerca (2019) e Um dia choveu terra, realizada na Galeria Municipal de Almada, com a curadoria de Filipa Oliveira em 2020. A exposição Um dia choveu terra evocava a figura do vedor, habitualmente designado de pesquisador de nascente de águas. “Gosto de pensar a relação entre espiritualidade e ciência. Para mim o vedor une a polaridade entre o científico e o empírico, entre acreditar e esperar. Lida com essa dificuldade que temos em lidar com o invisível e o cientificamente inexplicável.” Considerada uma pseudociência, a atividade do vedor situa-se no cruzamento do método de adivinhação com o método científico e é precisamente nesse cruzamento que a esculturas de Maja Escher nascem. “No meu trabalho, o Vedor aparece como uma espécie de xamã, alguém que profere, que cumpre um ritual. E esse ritual é a procura pela água. Interessa-me a componente da magia e adivinhação. Desenvolvi sistemas de elevação de água, instrumentos e ferramentas do vedor que mostram uma transição entre realidade e ficção, entre histórias inventadas e recolhidas.” Esta série é composta por varetas e pêndulos, instrumentos de detecção de água, ferramentas de adivinhação e dispositivos que atraem a chuva. “Gosto de brincar com a função dos objetos e das ferramentas, com o facto de já não termos a memória dos objetos, de já não sabermos identificá-los”.
Os desenhos sobre a mesa de trabalho revelam o novo projeto no qual se encontra a trabalhar. À noite cantamos a sussurrar é um mapa cantado das margens do rio Mondego que está a desenvolver em colaboração com Norberto Lobo e Artur Pispalhas: “Estou a fazer uma escultura para o caminhar, uma escultura bolsa que carrega sons, histórias e objetos, para ligar encontros e lugares.” À nossa volta, as esculturas de Maja Escher, quais adivinhas sem resposta, interpelam-nos na antiga Fábrica das Águas. São e não são objetos utilitários, estão dentro e fora da arte. São perenes e podem desaparecer. São de Maja Escher e podiam ser nossos.
WORLDING é uma residência artística localizada em Elephant and Castle, em Londres, fundada por Joana P. R. Neves, curadora e diretora da feira Drawing Now, e Diogo Pimentão, conhecido internacionalmente pelo seu trabalho inovador no desenho contemporâneo.
José Marmeleira é Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação (ISCTE), é bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) e doutorando no Programa Doutoral em Filosofia da Ciência, Tecnologia, Arte e Sociedade da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, no âmbito do qual prepara uma dissertação em torno do pensar que Hannah Arendt consagrou à arte e à cultura. Desenvolve, também, a actividade de jornalista e crítico cultural independente em várias publicações (Ípsilon, suplemento do jornal Público, Contemporânea
Imagem de capa: Maja Escher, vista de instalação How to make it rain (in 5 steps), Residência Artística WORLDING Londres. Foto: Ingrid Pumayalla. Imagens do estúdio da artista na Fábrica das Águas, Lisboa 2022. Fotos: Mário Rainha Campos. Cortesia da artista.