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Entrevista a Vicente Todolí

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Miguel Mesquita

 

Esta conversa com Vicente Todolí parte da exposição DIA, de Carsten Höller, patente no MAAT até ao dia 28 de Fevereiro. Todolí é um curador espanhol de arte contemporânea que já dirigiu vários museus e centros de arte internacionais. Com mais de 30 anos de carreira, foi curador-chefe e diretor artístico do Instituto Valenciano de Arte Moderna, em Espanha. Foi, igualmente, director-fundador do Museu de Serralves no Porto e dirigiu a Tate Modern entre 2003 e 2010. Actualmente, e desde 2012, Todolí é diretor artístico da Fundação Pirelli HangarBicocca, em Milão, onde tem apresentado exposições de artistas como Cildo Meireles, Juan Muñoz, João Maria Gusmão + Pedro Paiva, Carsten Höller, Miroslaw Balka ou Mario Merz.

 

Miguel Mesquita (MM): Vicente, a sua relação com Carsten Höller é já antiga. Em que contexto surge o projecto que dá origem à exposição DIA?

 

Vicente Todolí (VT): Este projecto acontece por vontade do Carsten, que me convida para o desenvolver com ele, tornando-se o terceiro de uma sucessão: o primeiro no Hangar Bicocca, em Milão; o segundo no Centro Botín, em Santander; e agora este no MAAT. São projectos que resultam em três exposições muito diferentes mas que têm um factor comum: lidam com o espaço tal como ele é, sem introduzir nenhum elemento que o adultere. Não há paredes acrescentadas e a iluminação é a que existe, ainda que no Hangar Bicocca tenha sido necessário realizar alguns ajustes de iluminação. São as obras que definem o espaço. Quando é necessário construir um muro, a escuridão é esse muro. O desafio é habitar um edifício e transformá-lo através da obra de arte. O edifício não é apenas um contentor, é um espaço que convida e que se transforma momentaneamente por consequência da intervenção artística. Neste caso, houve desde logo a intenção de utilizar todo o espaço numa estrutura orgânica que pressentisse um loop que, de certa forma, remetesse para a estrutura do próprio edifício. Por sua vez, esta estrutura também provoca alguma desorientação. Às tantas já não se sabe se está do lado direito, ou do lado esquerdo, se do Norte se do Sul; há áreas de luz e áreas escuras. Este sentimento de desorientação e incerteza é algo recorrente na obra do Carsten. Encontramos estas influências traduzidas na obra Light Wall: É real? É como a homeopatia? É um placebo? Funciona realmente? É ciência? É Arte? Ninguém sabe. A base do seu trabalho tem sempre a dúvida como início de qualquer investigação científica, e depois cria esta condição instável que faz com que sejamos mais conscientes do nosso corpo. As suas obras são muito físicas mas também muito perceptíveis. A luz como físico e como percepção, algo que no final nos altera ou que funciona como auto-sugestão dessa alteração.

 

MM: Há sempre essa dimensão da experiência no trabalho de Höller que tem muito que ver com o sentir. O sentir do eu e também da descoberta. Isso para mim é particularmente interessante porque traz um lado da arte que não é necessariamente a de uma condição estética. E isto torna-se muito claro se estabelecermos um paralelo entre as intervenções de Höller e de Olafur Eliasson para a Turbine Hall da Tate. Enquanto que o Olafur estabelece uma dimensão visual e estética que provoca uma experiência, o Carsten procura a experiência e cria um objecto para a mediar.

 

VT: É tudo um mal entendido. Bom, vou contar algo que testemunhei, porque cheguei à Tate aquando do projecto do Olafur Eliason. O projecto do Olafur era puramente físico. Na verdade ele queria que as pessoas subissem pelas escadarias mecânicas para verem como estava feito. Converteu-se num trompe-l’oeil por causa de uma jornalista. Para ele era tudo uma questão técnica: o fumo, o espelho, as luzes; ele nunca quis que fosse uma praia nocturna urbana. Foi uma jornalista da televisão que, no dia da conferência de imprensa, chegou, deitou-se no chão com a câmara e disse: “É assim que deve ser visto”. Foi isto que tornou a obra em algo hiper-real, foi assim que as pessoas começaram a chamá-la “a praia nocturna do Tamisa”; foi o produto de um efeito de comunicação. A partir daí as pessoas passaram a vir, traziam canoas e começavam a remar que se estivessem na água, a fazer piqueniques, enfim, tudo, até a fazer sexo. Inicialmente, o Olafur era muito mais físico, depois as pessoas começaram a interpretá-lo de uma forma mais virtual, hiper-real, e trompe-l’oeil, simulador. Mas, no princípio, quando traz o Iceberg da Islândia e o expõe numa galeria, era muito mais físico.

 

MM: Isso é muito revelador do impacto que têm os media e o mediatismo sobre a arte, quando se consegue alterar por completo a obra de um artista através do que se comunica.

 

VT: Sim, sim. Quando se trabalha com este tipo de práticas artísticas no final tudo depende da absorção do espectador. São experiências únicas, individuais; digamos que se produz uma espécie de reacção química entre a obra e o corpo e a psicologia do espectador.

 

MM: De certa forma, isso é o que Höller propõe com a sua obra: criar objectos como potenciadores dessa experiência.

 

VT: E também como teste. Teste para ver o comportamento das pessoas. Por exemplo, o projecto que desenvolvemos especificamente para esta exposição, o Lisbon Dots — era um projecto que já estava para ser apresentado na Tate só que a tecnologia ainda não funcionava, de modo que decidimos apresentar esta obra agora, passados dezasseis anos. Digamos que há uma espécie de experiência sobre o comportamento, uma espécie de etologia (sendo que este género de relações com metodologias de investigação científica é recorrente no trabalho do Carsten porque a sua formação base é numa área científica aplicada aos animais). Por outro lado, há uma justaposição entre o industrial e o animal, todas as suas obras passam por esta dialéctica de contradições que geram esta sensação de instabilidade de que falava há pouco. Depois há coisas em que se pode acreditar ou não, como acontece com a pasta de dentes com três cores que faz parte de Insensatus, o kit que é entregue a quem quiser participar na obra Two Roaming Beds. São coisas que não seriam muito diferentes da homeopatia.

 

MM: Será justo dizer que se o museu é um espaço de experiência então os visitantes são cobaias?

 

VT: De certo modo, sim. Nós fizemos uma obra no Hangar Bicocca que invocava muito claramente essa relação porque continha ratos de laboratório; uma obra que, consequentemente, acabámos por ter de retirar por manifestações de organizações pelos direitos dos animais. O que difere em relação à participação dos visitantes é que são conscientes. O artista dá mas também recebe, vai em duas direcções.

 

 

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MM: Essa relação é particularmente expressiva quando passamos pelas camas deambulantes [Two Roaming Beds] e logo ao lado temos os bichos da prata da obra Silberfschenhaus, que Höller desenvolveu em parceria com Rosemarie Trockel. Faz-nos questionar quem está a olhar sobre quem?

 

VT: Precisamente.

 

MM: O que sugere, também, este lado interessante do museu como laboratório. Um museu que não pretende ser apenas um espaço de visita, mas quer ser também um espaço de intervenção, onde há lugar para o espectador poder viver. De certa forma, recupera muito do que é o debate sobre o repensar dos propósitos dos museus na contemporaneidade; como é que conseguimos readaptar e trazer os museus para uma participação mais colectiva e mais pública.

 

VT: O que se passa é que o Carsten é um outsider. É alguém que vem de fora do mundo da arte e isso nota-se. Faz coisas que ninguém se atreveria a fazer por essa mesma razão. A bola sai fora do campo de jogo e ele diz “não há fora nem dentro, é um contínuo”. Tudo é passível de ser contaminado e é esse poder do conjunto, o exterior com o interior, o mundo da arte com o “não da arte”, que cria uma liberdade a que ele se permite porque não está condicionado por uma formação académica. Isso permite-lhe sempre, ir mais além e colocar tudo em dúvida, inclusivamente o que se está a ver, o que se está a sentir e, mesmo, qual é a nossa posição no mundo. Idealmente tem uma acção transformadora, através deste estado de concepção de contrários. Algo que, de resto, é já da filosofia oriental, o ying e o  yang, e muitas das formas seguem essa sinuosidade, ainda que na realidade esta relação lhe surja da sua consciência científica mais do que da filosofia oriental que não é uma influência.

 

MM: Também é interessante porque este pragmatismo faz com que ele veja um mundo muito binário.

 

VT: Sim, sim. É como as luzes da obra Phi Wall II que vão alternando entre as várias componentes luminosas e, no final, há uma que realmente não existe, algo muito material chega sempre ao imaterial. Como a Light Wall é física mas no final é etérea, psicológica, é um exercício de percepção que não é apenas com os olhos mas também com o corpo. No exterior do Museu estás junto à obra a sentir a aceleração dos batimentos rítmicos do ruído, que são também cardíacos; por oposição, quando se entra no museu e vês o Cassius Clay em Moving Image é o oposto; é a penumbra e o movimento falso que se traduz em algo muito mais íntimo e passas a outra esfera.

 

MM: E também há o caso do Lisbon Dots que opõe a individualidade ao colectivo, estabelecendo uma premissa de jogo e, por extensão, de competição, com rewards e upgrades.

 

VT: Sim é um jogo, mas também tens a referência da cultura popular. Por um lado, a combinação de luzes remete para a ideia de uma discoteca e por outro, para a de um carrossel e de um parque de diversões. Mas depois, é claro, ele subverte essas referências. Um carrossel que, em lugar de ter um sentimento de aceleração, desloca-se a uma velocidade exasperadamente lenta.

 

MM: Olhando para esta nova obra, realizada especificamente para esta exposição, e para a sua complexidade torna-se notório o quão tecnicamente desafiantes são as obras de Höller. Esse factor teve influência nas decisões curatoriais?

 

VT: Sim, sim. Não é viável fazer uma exposição do Carsten só com obras novas, teve que se incluir obras já existentes. Aqui as sinergias foram, quase totalmente para a produção de Lisbon Dots, esse era o grande desafio. O Carsten tem várias equipas técnicas especializadas. Mas há algumas peças de luz, como a Light Corridor, Double Neon Elevator e Light Wall que foram desenvolvidas pela empresa Inelcom, que tem uma colecção de arte da qual eu sou assessor. A Inelcom é uma empresa de tecnologia e os seus gestores são Engenheiros, pelo que quando comecei a trabalhar com eles, disse-lhes que para a arte nada é impossível. Ao trabalhar com artistas desenvolve-se coisas que, de resto, nunca se iria desenvolver. E isso está a acontecer. Já incorporaram na empresa experiências do Carsten, de forma a desenvolver outras tecnologias. É também muito interessante ver a forma como ele se dirige a um Engenheiro e diz, “eu quero fazer isto, e isto, e aquilo e mais isto. É possível?” e ver que lhe respondem “não sabemos, mas vamos tentar”. Por vezes não é mesmo possível, mas muitas vezes faz com que estes técnicos saiam da sua zona de conforto, tal como faz com os espectadores. Força-nos sempre a sair do mundo cómodo e a confrontar outros mundos possíveis.

 

MM: Já que falou no seu trabalho com a Inelcom, gostava de aproveitar para reorientar esta nossa conversa. Neste momento, o Vicente é Director Artístico do Hangar Bicocca, Presidente do Comité para as Artes Visuais do Centro Botín e Assessor do Centro Bombas Gens. Retorna agora a Portugal para realizar esta exposição no MAAT, também um museu de uma fundação privada. Qual a sua impressão sobre o protagonismo e a presença determinante que um número, cada vez maior, de entidades privadas tem vindo a atingir no circuito das Artes Visuais e da cultura a nível internacional?

 

VT: Quando saí da Tate Modern assumi, para mim próprio, que passaria a trabalhar apenas com instituições privadas, porque é onde se é realmente livre. Digamos que os Museus públicos tomaram um papel cada vez mais comercial no qual o que importa são os números. Se te preocupas com esses números não és livre, se não és livre não és independente. Fazes o teu programa para alcançar determinados números; se propões algo que achas que é interessante tens que enquadrar os números. Ao passo que nas instituições privadas, não. Aí tens liberdade absoluta porque os números já estão garantidos pelas empresas que detêm as fundações. Por exemplo, quando o Pirelli me contactou sugeriu que se cobrasse entrada, ao qual eu respondi: “Não. Vocês não vendem arte, vendem pneus.”. Ali não há negócio, nem tem que haver objectivos comerciais. O objectivo é apoiar a criatividade, os artistas e a criação artística. Fazer um serviço aos artistas e não servir-se dos artistas, como fazem a maior parte dos museus hoje, que se servem dos artistas para sobreviver. Antigamente os museus eram livres, mas o dinheiro vinha do Estado sem condicionantes. Imagina um Hospital que seguia a lógica de “tenho que ter um milhão de doentes por ano para receber dinheiro”. Tratavam apenas constipações e gripes, que há muitas. Já doenças raras não, porque não trazem pessoas. Então como não tens que te preocupar com as restantes doenças para teres dinheiro, a investigação desaparece (como desaparece também não se tratam as outras doenças portanto as pessoas só se vêm tratar das que sabem poder ser tratadas) e assim ficas destinado à procura popular. É algo absurdo! E este é o ponto em que estamos, porque cada vez mais os Governos dão menos dinheiro à cultura e aos museus. Não consideram que é um hospital da alma mas sim um serviço a pagamento e, assim, perderam a sua missão.

 

MM: Mas, retomando o papel do Vicente como assessor e gestor de colecções: não corremos o risco de que as empresas que detêm colecções, tendo elas espaços com programação que ditam aquilo que são as tendências da Arte Contemporânea, possam usar uma estratégia de valorização de activos? Não haverá aqui um conflito de interesses?

 

VT: Aquilo que eu faço é que imponho uma condição sine qua non para a minha participação: as colecções que eu faço não podem colocar obras no mercado. Se colocam alguma obra no mercado eu saio. Eu tenho propostas de fundos de investimento que não aceito. A mim não me interessa o mercado da arte, aliás a mim nem me interessa o mundo da arte, interessa-me a arte em si. Porque o que se passa muitas vezes é que a preocupação é com o que está no entorno e esquece-se o fundamental, que é a arte. Para além de que também há museus públicos que vendem. Na América é uma prática comum e na Europa esse debate também já chegou, com a desculpa de que essa venda sustenta o funcionamento do Museu. O que, ironicamente, é totalmente contrário ao propósito de um Museu, já que a sua função de repositório e gerador de opinião e conhecimento passa a servir para um modelo de negócio.  

 

MM: Para terminar gostava de recuperar o tempo da sua chegada a Portugal. Quando o Vicente inicia Serralves define a estratégia da colecção e, de certa forma, um eixo orientador ou um ponto de partida para o Museu. Ocupando Serralves um espaço tão central nas instituições portuguesas, criou-se uma geração que é muito influenciada pela própria composição e premissa do Museu e pelos conteúdos que lá são apresentados. Como é que, 19 anos passados, o Vicente olha para Portugal e para o desenvolvimento da cena artística?

 

VT: Portugal mudou imenso desde que aqui cheguei em 1996. É outro país. Primeiro, não existia a Ryanair, o que pode parecer uma piada, mas na realidade é muito importante, porque alterou drasticamente estes contextos. O Porto está muito mudado. Quando eu cheguei era uma cidade muito especial, um pouco decadente mas com muita personalidade; parecia de outra época. Houve uma grande alteração. Portugal entrou em moda e, com os benefícios fiscais, agora está cá toda a gente, entre artistas, actores, enfim todos compram cá casa. Houve uma grande transformação, mas na arte está tudo igual. Não surgiu nenhuma instituição nova relevante a não ser o MAAT que ainda assim, incorporando as áreas da arquitectura e da tecnologia, não está exclusivamente centrado na Arte Contemporânea. Sobre esta questão da influência, vou contar-vos uma história verídica. Há uma dupla de artistas de Valência que se mudaram para Londres quando eu estava na TATE. Um dia eu fui almoçar com eles e, durante a conversa, eles fizeram-me a seguinte observação em jeito de confissão: “Nós tornámo-nos artistas porque vimos o teu programa para o centro do IVAM em valência. Nós estudávamos no Centro de Artes e Ofícios, ao lado, e esse programa fez-nos querer ser artistas”. Este é o melhor elogio que se pode receber; que anos mais tarde te digam que o que fizeste lhes mudou a vida. Quando estava a iniciar Serralves defendi sempre que começar um programa e uma colecção de um Museu é como atirar uma pedra a um lago; faz uma onda, e outra, e outra, mas a última não sabe quando é, nem onde chega. Mas tens que acreditar na última onda e não no primeiro impacto. O primeiro impacto não pode ser outra coisa que não aquilo que se vai gerar; é isso que é um Museu e uma Colecção.

 

 

Carsten Höller

DIA

MAAT

Vicente Todolí

 

Miguel Mesquita é licenciado e Mestre em Arquitectura pelo Departamento de Arquitectura da FCT da Universidade de Coimbra e Mestre em Estudos Curatoriais pelo Colégio das Artes da Universidade de Coimbra. Em 2013 integrou o Centro de Estudos Sociais como Jovem Investigador em projectos interdisciplinares com foco nas áreas de arquitectura, sociologia e arte. Entre 2014 e 2015 estagiou no Museu de Arte Contemporânea da Fundação de Serralves. Foi Director Artístico da galeria BAGINSKI, entre 2015 e 2018. É director e fundador do projecto PARTE: Portugal Art Encounters

 

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

 

 

 

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Carsten Höller, DIA, vistas gerais da exposição no MAAT, Lisboa 2021-2022. Fotos: cortesia do artista e MAAT/ Fundação EDP. Carsten Höller, Lisbon Dots, 2021, instalação / exposição DIA no MAAT. Fotos: Attilio Maranzano. Cortesia do artista e Fundação EDP /MAAT. 

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